- sejamos fiéis à Memória, senhores, à Memória -
Entre quarta e quinta-feira desta semana, o Supremo Tribunal Federal decidiu pela manutenção da Lei da Anistia, norma que remonta ao ano da graça de 1979, quando a Ditadura Militar já agonizava, mas ainda não estava claro no horizonte próximo o que se sucederia em seu lugar. No período de 15 anos entre o pérfido golpe de 1º de Abril de 1964 e a data de sua promulgação, a Ditadura Militar se mantivera no poder a base do esmagamento violento da oposição, seja tanto a pacífica quanto aquela que pegou em armas contra ela alguns anos mais tarde - a Lei de Anisitia, por sua vez, cobria um período que ia de setembro de 61, mês subsequente à queda de Jânio e a ascenção de Jango. O Estado brasileiro, ali ocupado por uma corja de usurpadores, jogou sujo, praticou toda sorte de torturas em seus porões: Tivemos desde sessões de choques até estupros.
O clima político brasileiro dos fins dos anos 70, quando o modelo econômico elevado à potência pela ditadura tinha chegado ao limite e a comoção nacional provocada pela assassinato de Wladmir Herzog e de Manoel Fiel Filho nos porões minavam o regime, permitiram uma retomada de fôlego que a esquerda não tinha desde o AI-5. Ali, se passou a reivindicar uma Anistia Ampla, Geral e Irrestrita, que servisse como primeiro passo para uma saída negociada para o fim da Ditadura, permitindo que aqueles que estavam presos, na clandestinidade ou no exílio pudessem voltar à vida pública - e isso era uma reivindicação fruto de um equilíbrio de forças que não permitia sequer a hipótese de uma derrubada do regime (mesmo que decrépito).
O resultado foi uma Anistia estreita, específica e restrita que, ainda assim, permitiu o início do fim do regime, a base para aquilo que viria a se tornar o movimento pelas Diretas e, mais tarde, na bola de neve que resultou na Constituição de 88. No entanto, os torturadores passaram incólumes, enquanto muitos presos políticos continuavam nos porões, afinal, o texto da lei previa claramente o seguinte:
Art. 1º É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares [grifo nosso].
§ 1º - Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política.§ 2º - Excetuam-se dos benefícios da anistia os que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, seqüestro e atentado pessoal [grifo nosso].§ 3º - Terá direito à reversão ao Serviço Público a esposa do militar demitido por Ato Institucional, que foi obrigada a pedir exoneração do respectivo cargo, para poder habilitar-se ao montepio militar, obedecidas as exigências do art. 3º.
Portanto, a própria Lei não foi feita para proteger ninguém que tenha agido em nome da Ditadura. No máximo ela cobriria os militares que, no decurso do Governo Goulart, articularam o Golpe - mas como se sabe, praticamente ninguém foi punido por esse motivo, isso não faria sentido. Nenhum torturador do Regime foi prejudicado por ato institucional algum e não foi sequer admitida tortura nos porões do regime, no máximo, algum laranja aqui ou ali sofreu alguma punição esparsa, mas nem ao menos se admitiu a prática sistemática de tortura nas prisões - em suma, como assim dizer que isso anistiou quem sequer foi investigado por conta da natureza do regime?
O "crime político" em questão, aliás, nada mais, nada menos, do que as afrontas à Lei de Segurança Nacional - outra infâme aberração jurídica do regime. Crimes como terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal não foram cobertos, portanto, o que faltou ao país foi vontade política de mexer nos recônditos dessa época obscura para trazer à tona os crimes contra a humanidade que aconteceram no período e transcendem ao direito posto no momento - até porque a ordem instituída era meramente factual e a própria responsável por todo estado de coisas do regime, além de que o que estava em jogo na ADPF 153 era, claramente, um pedido de reinterpretação da norma em questão.
Longe de mim acreditar que o punitivismo é o melhor caminho para resolver o que quer que seja, mas é razoável imaginar que evidentemente, ali se trata de um caso extremo. Também é curioso como um país que ainda se ostenta no em sua Legislação Penal o crime de vadiagem - e se pretende moderno e respeitável - consiga ter juristas que produzam discursos tão sofisticados em prol da "conciliação" como se viu nos dois últimos dias na plenária do Supremo é no mínimo um espetáculo exótico. Assistir a um voto como o dado por um Eros Grau - um sujeito que foi perseguido pela ditadura como ele - foi repugnante. De repente, ele soltou algo como "a mesma OAB que lutou pela mesma Anistia que agora quer derrubar" - sim, cara-pálida, a conjuntura ali era igualzinha: Quando se equipara lutar por uma tentativa de normalização das relações políticas (o que obviamente deu errado porque a Anistia evidentemente não foi ampla, nem geral ou muito menos irrestrita) com uma tentativa de trazer à tona crimes contra a humanidade (pois, ainda que tivesse sido ampla, geral e irrestrita, não cobriria crimes desse escopo) algo de muito grave está acontecendo.