domingo, 5 de outubro de 2014

O Porvir do Brasil III: Às Portas da Votação e sob o Signo de Getúlio

Jo Davidson, enviado por Roosevelt para esculpir busto de Getúlio 1939
Daqui a poucas horas, teremos a votação do primeiro turno das eleições gerais. Como ocorre de quatro em quatro anos, renovaremos um pacote quase completo, com os representantes parlamentares estaduais e federais assim como a Presidência da República e governos estaduais e do Distrito Federal. Tudo isso, em um sistema problemático, que começa a dar sinais severos de colapso. A tal "reforma política",  apoiada por todos os brasileiros médios, não saiu, travada que se encontra pelo peemedebismo -- sua não ocorrência, aliás, já se faz sentir e cobra seu preço.

Disso decorre uma eleição peculiar, tensa, delicada e ao mesmo tempo pouco animada -- embora certamente mais mobilizadora do que se supunha de antemão. A discussão, contudo, entre o petismo e o anti-petismo, isto é, entre a aliança policlassista, pluripartidária e desenvolvimentista versus a ortodoxia privatista e conservadora capitaneada, desde 1994, pelo PSDB. Algo quer seria Dilma versus Aécio hoje.

Marina Silva surgiu como elemento novo, ainda que menos inovadora do que, talvez, tenha sido sua campanha em 2010. E em vez de disputar os sentidos -- e o destino -- do Lulismo do qual veio, Marina preferiu se apresentar como síntese da polaridade ou, em outros momentos, como melhor nome da oposição liberal -- e talvez tenha pago por isso, perdendo a dianteira da corrida presidencial e, segundo os principais institutos de pesquisa, até a vaga em um eventual segundo turno.

E Dilma, é certo, lidera. Se isso parecia obviedade há um ano e meio, desde Junho de 2013, se tornou enigma. Depois das mega-manifestações, veio uma recuperação parcial nos fins do ano passado, seguida por nova queda às vésperas da Copa do Mundo e, novamente uma recuperação -- que foi eleitoralmente interrompida com o retorno de Marina Silva para o jogo, até ocorrer uma nova recuperação de Dilma, numa resposta que talvez nem ela, nem seu partido, fossem capazes de crer.

O mito de Dilma Rousseff, a presidenta não-política e não-afetiva que se sustenta em meio às mais diversas adversidades, parece se explicar pela ideia de que ela é fiadora da justiça social na economia em crise e, também, por contraste, pela falta de quem se mostre capaz de supera-la. Se é certo que os estrategistas do governo superestimaram a popularidade da presidenta -- o que se mostrou claro nos últimos meses, mas apenas confirma o que falávamos desde seu primeiro ano -- o mesmo se pode dizer dos adversários dela, em sentido inverso, que não só a subestimaram como a subestimam. A dimensão verdadeira de Dilma, parece certo, reside em um ponto além das duas ilusões de ótica.

Dilma surge se afirma no imaginário brasileiro como uma espécie de Thatcher trabalhista. Para alguns, ela é a guardiã indomável das conquistas sociais, para outros, um mal necessário. Mas a melhor palavra para entender o Brasil de hoje é, certamente, o adjetivo que lhe melhor lhe cabe: trabalhistaE o tal trabalhismo, como herança do recorte à esquerda de Getúlio Vargas, é literal. Muito antes do PT, ela esteve junto com Brizola na construção do PDT, o que seria o campo getulista democrático. E como o PDT, ela crê na condução desde cima, evolucionista, planejada. O que lhe vale não poucos atritos com o PT -- e também a reedição de velhos dramas inerentes ao velho getulismo.

Se a História, a esfera mais irônica da vida humana, pregou mais uma de suas peças ao fazer o trabalhismo voltar por dentro do PT -- que nasceu, afinal de contas, para redimir os erros do Partidão e do movimento revolucionário brasileiro --, mais curioso ainda é ele ter pela frente o único e último resquício genético da UDN, inclemente e moralista opositora de Getúlio: o PSB onde Marina veio parar é, pois, o racha à esquerda do partido de Lacerda e Jânio, o que não impediu aquela agremiação de se aliar com sua antiga matriz em outros momentos. Já o fato do PSDB de Aécio, nascido como cisão à esquerda do PMDB, ser na prática contrário à social-democracia que traz no nome, talvez resida mais precisamente no campo do sarcasmo: e é aliado ao conservadorismo mais radical que se encontra o ex-governador mineiro.

O confronto em jogo é dos mais delicados. Mas se ele encontra em 2014 uma trincheira aparentemente quente, é certamente a partir de 2015 que tudo tende a ficar mais grave. A economia de crise que se tornou regra geral do mundo, sob a falsidade de uma "crise econômica" -- que deixou de se prolongar para, ela própria, se tornar meio de explorar riquezas -- avança. E avança sobre o Brasil. Tampouco Aécio consiga retornar o Brasil para o pré-Lulismo, como talvez pretenda, ou Marina tente pôr em prática seu novo projeto. Dilma, por sua vez, terá de enfrentar a situação junto e acima dos setores que lhe sustentam.

P.S.: Darei votos animados e convictos para o Adriano Diogo (1368) como deputado federal e para deputado estadual ao Renato Simões (13813); Suplicy, obviamente, para o Senado (131).


segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Eleilções 2014: Levy e a Maldade Banal da Política Brasileira

Angelus Novus_ Paul Klee
Levy Fidelix, o eterno candidato nanico do aerotrem, foi o destaque do debate entre presidenciáveis de ontem. Por si só, tal fato já seria grave. No entanto, a maneira como isso  aconteceu tornou tudo mais acintoso: ao ser perguntado pela candidata do PSOL, Luciana Genro, sobre direitos para a comunidade LGBTT, ele teve em um surto de homofobia no qual equiparou homossexuais a pedófilos, atacou o casamento gay e falou que "nós" -- as pessoas de bem? -- deveriam ir pra cima "dessa minoria" -- isso tudo num país no qual os crimes de ódio contra homossexuais, travestis e transsexuais motivados simplesmente por sua orientação sexual, vestimenta ou identidade de gênero ocorrem, cada vez mais, aos montes.

Pior ainda, Luciana não respondeu à altura, tampouco os outros candidatos se importaram em  usar de seu tempo para repreendê-lo. Passou batido -- mas não pelas redes sociais, nas quais a hashtag #LevyVoceENojento é, nesta manhã de segunda-feira, o assunto mais abordado no Brasil pelo Twitter, nem pela imprensa internacional, como o Guardian da Inglaterra não nos deixa mentir

Enfim, no penúltimo debate antes da votação do primeiro turno, a pior eleição presidencial da (breve) história (quase) democrática brasileira encontrou seu momento emblemático. Não, não poderia ser pior, mas dificilmente seria mais ilustrativo. Não que as coisas tenham ficado ruins agora, ao contrário. 1989, por exemplo, foi nossa primeira e melhor eleição, dali em diante a situação só piorou. Mas essa piora talvez tenha a ver com a maneira como aquele eleição terminou.

Cheia de gigantes da política brasileira -- e muitos campeões da luta por liberdade e justiça social --, aquele pleito foi vencido pelo pior, mais despreparado só que mais bem financiado candidato, Fernando Collor. A história todos conhecem: dali em poucos anos, Collor foi destronado, mas o mal que ele representa jamais foi revertido. As reformas privatistas continuaram, aceleradas com mais competência por FHC e depois mitigadas com Lula e Dilma; as eleições, dali em diante, se tornaram caríssimos espetáculos de propaganda, norteados por debates superficiais e recuados.

FHC e Lula, embora tenham sido eleitos já nesse esquema, superavam em parte o processo pelo peso político de ambos. No pós-Lula, a crise ficou mais patente. A maneira como o debate não tem consistência, não é apresentado claramente e se mantém envergonhado nas entrelinhas é um espectro que envolve todos os principais candidatos. Os pretendentes folclóricos, hoje, se bandearam para jogar com frases vazias de extrema-direita. Os pequenos candidatos de esquerda, derrapam.

A distância registrada nos últimos anos entre o sistema político e as demandas é imenso. As convulsões de 2013 já deixaram isso bastante claro. Depois, se dizia: que protestem nas urnas. Mas como? As eleições, este breve momento -- o entretempo entre os mandos, onde o poder real é anomicamente mitigado --, se esvaem normalizados, esvaziados diante da irracionalidade fascista. Só havia uma saída: xingar Levy, dizer-lhe um simples "cala boca, idiota" (sim, Lucas, você tem razão). Nada aconteceu, contudo.

É fato que alguma reação vá acontecer agora, para além da indignação da rede. E é bom que ocorra. Mas do que isso se trata é outra coisa: essa perplexidade letárgica que, nesse caso, se manifestou na normalização da homofobia como "opinião" -- ainda que "folclórica" --, o que se estende para uma série de outras condutas. Sim, foi um "instante" que passou e deixou, pelo menos uma parte de nós, de queixo caído. Mas um instante, e nada mais, é o necessário para matar uma pessoa ou o mundo todo.

É a partir dessa naturalização (lenta, gradual...) do absurdo que se instaura o pior dos mundos. Devagar ocorre, mas quando elas vêm, chegam rápido como um aerotrem. É preciso, como Benjamin, aprender com o anjo da História: talvez de um jeito menos depressivo, mas sem deixar de ser trágico.



segunda-feira, 22 de setembro de 2014

O Drama Barroco de Haddad: Por que não pôr fim à Operação Delegada?

O Enterro de Cristo -- Roldán
Um camelô morreu atrapalhando o trânsito. No meio do caminho da democracia, havia o corpo morto de um camelô. À bala. Tiro certeiro na cabeça, bem no meio da avenida. Poderia ser eu (e era, por que não?). A rebelião que se instaurou, um pequeno levante, ao mesmo tempo em que é marcado pela névoa de gás (lacrimogêneo, com se precisássemos disso para chorar) que sobe, faz descer, por paradoxo, outras cortinas de fumaça.

Uma pausa, um corte, uma narrativa.

Fernando Haddad, em seu breve governo, se viu em meio ao epicentro do Junho de 2014, ousou políticas inovadoras, esteve no meio de um debate para o bem e para mal. O fato é que sua aprovação -- alta para os padrões paulistanos nos cem primeiros dias -- caiu como ocorreu com todas as autoridades e instituições na esteira das Jornadas de Junho, mas ela não registrou nenhuma recuperação ao contrário do que aconteceu com a presidenta, governadores e demais prefeitos.

Há poucos dias, contudo, a popularidade do prefeito registrou sua primeira recuperação em mais de um ano, animada pelo sucesso da política pró-ciclofaixas: a ampla adesão às faixas de bicicletas somada às faixas de ônibus seriam a "resposta definitiva" no campo da mobilidade e do transporte urbano, o rompimento da barreira que impedira o prefeito de melhorar seus índices. São Paulo, terra do automóvel como elemento de promoção moral e dignificação, se tornou como um delírio anarquista do Provos: autônoma e alegremente pedalante.

Por outro lado, dois eventos bombásticos -- literalmente -- tomaram as ruas e os noticiários: a desocupação do prédio de um antigo Hotel no Centro e a execução de um ambulante na Lapa. Nos dois casos, a polícia militar agiu com sua habitual truculência e despreparo, aumentando um confusão que ela deveria dirimir. A cidade virou uma praça de guerra.

No primeiro caso, a prefeitura não mediou como deveria. Embora, de fato, a reforma do prédio fosse demasiadamente cara, como apurou a prefeitura, com a ordem judicial da reintegração de posse, é de se esperar que a retirada de quase mil pessoas, com presença de contingentes policiais, seria problemática. Não havia um plano de contingência, a truculência veio e um massacre policial durou quase um dia todo no Centro.

No segundo, a polícia militar, agindo sob os auspício da Operação Delegada, um convênio aberrativo entre Prefeitura e Polícia Militar criado na gestão Kassab, acabou executando um camelô de forma vil e covarde. A missão que resultou na execução consistia no exercício, pela PM, de função de repressão ao comércio ambulante.

Acerca do primeiro caso, Haddad acenou com a tese de que os sem-teto foram usados por oportunistas. Sobre o segundo, que a execução foi um caso isolado. É fato que os sem-teto não são oportunistas, ele não têm oportunidades ou opções -- e mesmo que se considere a ação de algum agente provocador, possivelmente não eram os sem-teto ou os seus dirigentes os maiores interessados. No segundo caso, mortes de pobres pelas mãos da polícia não é algo ocasional -- nem pelas mãos do próprio policial, que já respondia a processo por homicídio.

Haddad, com muito pouco, faz e ousa bastante. É um prefeito consideravelmente melhor do que a média -- e um dos melhores que São Paulo já teve. Mas não consegue lidar com crises, porque as crises são imprevisíveis, não cabem em planos ou planejamentos -- nem são solúveis por qualquer política pública, mas por um processo político, um método político. 

Se a gestão não aceitar isso, sobretudo num cenário de profundas crises -- e, pior, de alta complexidade e custos (não só financeiros) para a resolução dos problemas --, fatalmente se pegará frequentemente apostando suas fichas na repressão policial -- o que, em matéria de Brasil, é uma escalada para o desastre.

A ideia de Haddad como seu duplo, o prefeito de esquerda corajoso e competente que anima a todos e, ao mesmo tempo, um tecnocrata frio e insensível toma conta do imaginário e dos debates. O fato é que a aparente quimera -- dizer que Haddad são os dois ao mesmo tempo seria como falar em "bola quadrada" -- esconde a maneira como ele se ajusta: a exemplo da social-democracia alemã, ele põe a concretude das relações materiais abaixo do Plano.

A realidade não se verga ao ideal, salvo à força. O que põe qualquer político de esquerda numa encruzilhada ética (em um sentido). O nazismo não ascendeu na Alemanha por pura ignorância, ou necessidade, daquele povo, mas em parte porque, antes, a social-democracia normalizou determinadas práticas como a suspensão de direitos que, não raro, levaram à repressão de trabalhadores.  A esquerda se colocou numa zona cinzenta onde todos pareciam a "mesma coisa", o que naturalizou seus próprios algozes.

Muitas questões podem ser ponderadas, mas não resta dúvida que passou da hora de pensar em qualquer método cujo plano B seja a polícia. Abolir a Operação Delegada, como se aboliu sem maiores prejuízos o "Nova Luz" de Kassab, é um primeiro passo. Aceitar que as graves demandas da metrópole demandam conselhos de interlocução e negociação é outro ponto. Não é possível fazer política habitacional sem considerar as partes envolvidas. Nem que se aja corretamente na resolução de problemas, em determinados casos, os problemas não deixarão de ocorrer.

A política existe para resolver pacificamente os problemas comuns. A ideia estanque de ordem pública podem levar, aí sim, a uma real ameaça à ordem pública igualmente protagonizada pelas próprias autoridades que deveriam media-la. Haddad precisa, o quanto antes, se desvencilhar disso, senão restará indiferenciado em relação à massa conservadora com a qual concorre.

Foram as bicicletas, e não a overdose policialesca, que colocou Haddad de volta ao jogo. Será a overdose de polícia que poderá lhe criar problemas novamente. É bastante simples.




sexta-feira, 19 de setembro de 2014

O Enigma Político de São Paulo: Não Existe Amor na Avenida São João

São Paulo vive um momento de emergência. A violência policial registra uma escalada terrível, mas o mais assustador é que isso é consequência, ou melhor, a resposta absurda dada pela classe política local para crises sociais bastante agudas. A água já começa a faltar numa crise hídrica que, longe de ser mero acaso da natureza, é efeito de uma certa política errada para o setor. As universidades ardem. O trânsito grassa. Não, não está fácil e muito ainda poderia se dizer nesta noite insone de quase primavera.

Mas antes, um corte narrativo: a capital dos paulistas frequentemente foi bem retratada na música. Duas em especial, Sampa de Caetano Veloso e Não Existe Amor em SP de Criolo, eternizam certos momentos da cidade. Ambas são, pois, pura arte em um sentido deleuziano. Sampa é a São Paulo do final dos anos 1970, uma época absurda, mas de uma esperança justificada como raramente se viu nos momentos históricos em que a esperança veio à tona; Não Existe Amor em SP, por seu turno, é uma das raras elaborações esteticamente exuberantes do nosso tempo, uma poesia lindíssima sobre algo feio -- é uma precisa narração da São Paulo de hoje, um verdadeiro triunfo estético, pois é algo belo sobre um conteúdo trágico e grotesco.

Existem contiguidades narrativas tanto na letra de uma quanto da outra. São Paulo continua sendo São Paulo, é uma terra de feiura bela, mas o que ocorre agora é um momento em si feio. São Paulo sempre foi cheia de emoção na sua frieza, mas hoje há um vazio que cresce. Não Existe Amor em SP não nega as premissas de Sampa, mas as atualiza na forma de um soco no estômago com violino ao fundo. Não como não perceber na profundidade das duas letras os dois momentos, os dois movimentos; alguma coisa acontecia no nosso coração em 1978, quando cruzávamos a Avenida Ipiranga com a São João, mas hoje isso também não deixa de acontecer, só que não é mais de emoção que falamos: não há mais amor na Avenida São João, há bombas. 

Há dois dias, o prédio do Hotel Aquarius, há dez anos abandonado e ocupado há poucos meses pelo movimento de moradia, foi desocupado violentamente pela polícia, com uma ordem judicial absurda. O confronto se alastrou pelo centro da cidade, a polícia foi violentíssima. O confronto começou e recomeçou várias vezes. Uma catástrofe bíblica. Ontem, um camelô foi executado a sangue frio por um policial na Lapa, gerando uma revolta massiva que parou o bairro, conhecido centro de comércio popular da zona oeste da capital paulista.

A política de repressão, mantida às custas da mobilização de uma tropa mal treinada, mal remunerada e maltratada serve como substitutivo da política. Ou da impossibilidade das políticas locais, tal como são concebidas, de responderem as demandas políticas e sociais. A classe política mais mesquinha, limitada e perversa desde a república velha dá as caras, ela é mortal. O país não vai bem, São Paulo, acelerada à velocidade da luz, tampouco. Há várias São Paulos, várias possibilidades de experimentar e pertencer aqui, como qualquer outra capital. A crise de São Paulo é a crise do mundo e do país, a crise do nosso tempo, nas condições históricas e geográficas determinadas daqui: e dói, nossa crise é mais perturbadora mentalmente do que, talvez, crises mais violentas fisicamente como a do Rio.

Nesse contexto, o governador do estado, Geraldo Alckmin, está prestes a se reeleger em primeiro turno. O prefeito da capital, Fernando Haddad, no entanto, está com a popularidade bastante baixa. É de se salientar que a popularidade do governador encontra seu ponto mais baixo na capital. 

Alckmin governa com punho de ferro, a partir de currais eleitorais no interior e na falta de oposição, repetindo no paradoxo (neo)liberal: estado pequeno para fazer reformas sociais, mas incrivelmente grande na hora de reprimir os resultados óbvios da ausência dessas políticas. Mas sua capacidade pairar acima das discussões, deslizando com um réptil, é única.

Haddad, por seu turno, realizou políticas importantes, fez o novo plano diretor, colocou ciclofaixas e faixas exclusivas de ônibus para o horror dos carro-dependentes, mas erra fragorosamente ao relativizar as ações de uma polícia militar que sequer comanda. E repetiu isso agora, em relação ao caso da Avenida São João, depois de momentos ruins ano passado, quando não condenou com dureza a repressão em Junho -- ao contrário, mas pagou e paga por isso. A não articulação para dar conta das crises pontuais que vão emergir será fatal, a via policial é um desastre anunciado -- que, em seu caso, tem um peso negativo redobrado, uma vez que sua base de apoio (felizmente) é menos tolerante a isso do que a do governador. 

Alckmin é popular e Haddad não, pois um agrada as expectativas de seu eleitor e o outro não. Ou melhor, Haddad desagrada em temas sensíveis demais e em ocasiões inoportunas, apesar de políticas públicas reconhecidas -- que, no caso das ciclofaixas ou da faixas de ônibus chegaram a registrar alta adesão, ambas coincidentemente de 88%, sendo políticas de esquerda. Mas o fato é que na metrópole as contradições emergem e se fazem realidade. No caso de São Paulo capital, mais ainda. E para Alckmin, embora seja um item importante, a metrópole e suas agruras é apenas parte de seu ofício.

A situação, evidentemente, é grave. Na cidade do mais universalista dos santos, o evento ocorrido na avenida que leva o nome do mais apocalíptico deles é sintomática. A situação é uma ascendente, na qual os movimentos se veem obrigados pelas condições a se lançarem à luta. E as condições se agravam: os bares cheios de almas tão vazias de Criolo, na prática, são são as tantas habitações vazias para tantas almas deixadas ao relento. O momento exige menos do que "políticas públicas" no sentido clássico e mais um processo político, algo que envolva e dê significado. Não se espante como apesar dos pesares Alckmin se reelegerá: como dizia Benjamin, onde há fascismo é porque uma revolução fracassou -- e acrescentemos, havia revolução, ou propensão à revolução, onde a situação era emergencial.




terça-feira, 16 de setembro de 2014

O Porvir do Brasil II: A Veja, Marina e o Extremismo de Centro

Foto tirada daqui
A capa da revista Veja desta semana ilustra uma cena curiosa: Marina Silva seria vítima de uma campanha caluniosa, de uma fúria nunca antes vista numa corrida eleitoral. Mas o fato é que isso ilustra, antes de tudo, o próprio argumento da candidata face às críticas que ela tem sofrido (não à toa, a capa foi exibida no próprio perfil do facebook de sua campanha); se, por um lado, Marina passou a ser criticada porque apareceu com força nas pesquisas, por outro lado, sua resposta vem em um momento que ela, depois de um crescimento vertiginoso, está a perder terreno para sua principal rival, e postulante à reeleição, Dilma Rousseff. Nenhum dos dois movimentos é estranho à política, mas só é estranho que Marina o acuse em um momento no qual flutue para pior.

Até agora, nenhuma acusação expôs a vida pessoal de Marina como, verdade seja dita, ocorreu com Lula na derrota para Collor: até uma filha concebida fora do casamento do candidato, e futuro presidente, foi exposta -- Collor e FHC tiveram casos parecidos em suas vidas privadas, mas isso jamais foi utilizados contra eles nem pelos adversários (incluso aí o PT), tampouco pela mídia grande. No que toca às eleições em curso, como lembrou o filósofo Renato Janine Ribeiro, Aécio e Dilma estão expostos a críticas inclementes há tempos, por que então Marina, que é tão candidata quanto eles, estaria isenta dessas cobranças e questionamentos? Ou por que ela, por exemplo, comparou o PT com o "chavismo"?

Se essa última flutuação eleitoral se manterá ou se Marina vai se recuperar, não se sabe. O que interessa é que existe um fenômeno importante de fundo. Marina, ao cometer essa pequena contradição -- criticar o adversário por ele ter lhe criticado como se isso, em si, fosse um problema -- revela bastante disso. É a exposição de algo latente nos últimos anos que se popularizou pela crítica ao "Fla x Flu" político: o antagonismo recriminado uma vez que emerge no palco do debate público brasileiro; ele acaba posto em seu devido lugar como se fosse não a alma da política, mas uma deformação sua. É o velho "política, futebol e religião não se discute".

Nada novo sob o Sol. Se é conhecido o fato que alguns países sofreram com regimes ditatoriais de direita, outros com tiranias de esquerda -- outros de ambas. No caso brasileiro, ironicamente, apesar de histórico de autoritarismo sempre conservador (mesmo o varguismo, apesar das idas e vindas que a historiografia dá), sempre houve um fundo cordialista, uma moderação em relação ao intolerável. Alguns dizem que isso evitou a ocorrência de uma ditadura mais cruel, no entanto, o fato é que esse traço cultural jamais evitou qualquer golpe nestes brasis de meu deus, muito embora atravanque a democracia brasileira -- que resta como uma promessa não cumprida.

Sim, o mais agudo caso de extremismo político brasileiro -- como a atual campanha para as eleições gerais insiste em nos provar -- não está à direita ou à esquerda, mas ao centro. Vivemos às voltas com o fantasma do extremismo de centro. E não estou falando do PMDB apenas. Há uma série de partidos que se colocam ali pelo meio, prontos a negociar com qualquer um -- e de qualquer forma -- além de outros que, embora programáticos, não se cansam de atrair o debate político, e as práticas, para cima do muro.

Nesse sentido, o discurso de Marina aparece polarizando contra a polaridade entre PSDB e PT, mas se apresenta, curiosamente, como uma não-polaridade: ele seria síntese já dada dos dois e, também, critério de seleção dos "melhores" dos "dois lados" que seriam chamados a governar -- pronto a desmobilizar a polaridade. Curiosamente, um dos grandes problemas da polaridade entre PT e PSDB é ela ter enfraquecido, se reduzindo ao centro e ao vazio dos grandes consensos. 

Pior ainda, que PT e PSDB, uma vez no poder, tenham perdido a noção do simbólico, tendo feito alianças dignas de dar um nó na cabeça de qualquer um. FHC se aliou com ACM (e também com Sarney!) porque, de fato, precisava, mas o fez de modo que terminou numa camisa-de-força; Lula, mais inteligente, soube tirar ganhos práticos de certas alianças, mas fez outras nas quais nada ganhou (nem poderia) e apenas desmobilizou seus próprios militantes e apoiadores, desconsiderando a potência do simbólico em produzir realidade (vide Maluf e Collor). Dilma lida pior com as alianças que herdou do que seu mestre e antecessor. Marina, por seu turno, quer internalizar esse aliancismo e não esconde isso.

Nos finalmente, é fato que nunca houve Fla x Flu na política brasileira contemporânea, no sentido de um antagonismo duro, inclusive porque a polaridade entre PT e PSDB. Seja porque o antagonismo do futebol, que é uma simulação da guerra, não é da mesma ordem de qualquer antagonismo político -- nem mesmo de uma simulação da guerra civil -- ou, também, porque não houve uma disputa política dessa monta. A lógica por trás da crítica do Fla x Flu, essa sim, leva, na prática, a um trajetória de esvaziamento pela eliminação da divergência e do dissenso. 

E a dissonância entre a premissa plebeia do "política não se discute" (ou o elitista "não façamos disso um Fla x Flu") e o "são todos farinha do mesmo saco" explica o mal-estar indeterminado (e imenso) sob o qual vivemos: e não é sobre "inconsciência" que isso se trata, mas da força gigante que cerceia (pela esperteza ou pela violência) a discussão, mas que não consegue apagar o desgosto com o resultado disso.

Embora limitada sob vários aspectos, a tese do peemedebismo de Marcos Nobre faz sentido: no fundo, há uma (des)articulação cordialista que embaralha a capacidade transformadora, ou de reles resposta às demandas usuais, da política brasileira. Eis o nosso problema. O insight de Nobre funciona porque ele denuncia a ausência de tensões (e, por que não, de paixões) como o nó górdio. 

Marina não pretende mandar o PMDB para a oposição, mas dividi-lo e conquista-lo -- trazendo para junto o PMDB que lhe interessa --, só que o fundamento de sua política é se colocar ao centro do centro e governar. Assim, a ideia de uma impossível coexistência entre transgênicos e não-transgênicos ou de uma "elite" como rótulo genérico para os "melhores" -- sem considerar as diferenças e antagonismos entre, vamos supor, seringueiros e banqueiros -- se tornam possíveis. O mesmo pode se dizer de independência do Banco Central e se defender sob a alegação de que o problema está em quem critica.

Dilma, durante os últimos quatro anos, buscou governar a economia pela técnica e, com a outra mão, trazer para o campo da média ponderada -- inclusive associada à ideia de "mídia técnica", na verdade, a mídia tradicional -- a discussão política sobre no campo dos direitos e liberdades individuais. Ela não ousou criar tendência, apenas contornar o que era difícil e se situar num ponto intermediário entre o desejado e o absurdo. Hoje, em campanha, descobriu que só isso não basta. E bastará menos ainda num eventual segundo mandato.

A ameaça de uma radicalização, como tomada de uma posição inequívoca e direta, é uma sombra que nos acompanha há tempos, mas ela não é real: é esse cordialismo de fundo que reduz e nivela o nosso maior problema. E não se trata de um problema moral ou transcendental, mas uma construção com fundo lastro material, estruturada primeiro como prudência prática diante das contingências das agruras da vida colonial e, depois, como armadilha do poder. O cordialismo nasce da necessidade de contornar o inconfrontável, mas se torna depois vício e até arte de governo flexível, inteligente e moderníssima mesmo enquanto arcaísmo. A opção pela democracia, ou melhor para o devir-comum da democracia, implica em mais e melhores polêmicas.





sexta-feira, 5 de setembro de 2014

O Porvir do Brasil I: A Economia, Banco Central e o Estatuto do Comum

Marina Silva propôs conceder, caso eleita, "autonomia formal em lei" ou "independência" para o Banco Central. Ainda que isso dependa do Congresso Nacional e que, ainda por cima, Marina não tenha explicado muito bem como seria essa mudança, o fato é que a questão acirrou o debate político no que toca à economia:  Dilma saiu da defensiva e se colocou contra no debate do SBT. O que nos interessa, no entanto, para além da polêmica eleitoral, é justamente o que há por trás da proposta desregulamentadora de Marina e, também, da regulamentação do desenvolvimentismo: para além, inclusive, da dialética público x privado, temos de debater as implicações dessa polêmica -- de fundo e forma estatal -- sobre a vida, criação e riqueza comum.

O Lulismo forçou uma virada nunca antes imaginada. Mesmo mantendo a indexação econômica para o capital -- a correção monetária --, ele criou a correção monetária inversa, no campo de política de valorização do salário mínimo, forçou a formalização do emprego, buscou estimular a criação de mais empregos com melhores salários. Criou programas sociais que geravam renda em contraste com o rentismo do capital. A economia passou a se orientar desde baixo como diria Bruno Cava ao analisar a potência do estímulo ao consumo do proletariado, fato desapercebido pelas esquerdas que viam no consumo algo necessariamente ruim. 

O estímulo ao consumo [da multidão] reorientou a produção: não havia mais escravos trabalhando para produzir um café cujo sabor -- e rendimentos -- nem passaria perto de seus corpos; havia, agora, o trabalhador -- ou qualquer um -- com poder de consumo demandando produtos que significavam algo para si: passamos a ver, por exemplo, cosméticos para a população negra brasileira surgir, o que há dez anos era raro. 

Os negros só produziam coisas para outrem, não tinham salário suficiente, não havia motivo para o mercado produzir qualquer coisa para eles. O aumento da renda lhes permitiu não apenas o consumo do que era produzido, mas passou a demandar a produção de bens e serviços na quantidade e qualidade que eles precisavam.

O Lulismo pôs o capitalismo em curto-circuito porque mexeu no seu dispositivo básico: a economia capitalista não é super-consumo, mas consumo aquém, em quantidade e qualidade, de uma superprodução estéril -- voltada para a estocagem, o que permite o cacife para o controle dos preços; o capitalismo produz muito, mas produz em tom de exclusividade; o produzido é exclusivo e excludente. 

Se a produção capitalista se dá partir da exploração do comum -- das riquezas, conhecimentos e ações comuns, para ser mais exato --, ela se aperfeiçoa em um último instante, no mercado, enquanto bem incomum, exclusivo e pronto -- o fetiche da mercadoria é uma hipnose bem própria, é o transe entre a vontade de consumo e, na outra ponta, a superabundância inacessível. Do outro lado, a imanência entre consumo e criação seria o comunismo.

A diminuição do déficit entre consumo e produção, nem é preciso dizer, gerou mudanças consideráveis. Não apenas se produziu e se consumiu mais como, também, os libertos, em certa medida, passaram a se sentir autorizados a desejar. Desejar direitos. Passaram a se sentir livres para desejar o que lhes era lícito só até o momento em que resolvessem deseja-lo. O confronto desse novo brasileiro, assujeitado a qualquer coisa, com as velhas estruturas políticas e sociais levaram a um conflito iminente em plena era da crise econômica -- e da economia de crise 2.0.

Dilma, em sentido contrário, se preocupava em resolver esse enigma social por uma subjetividade nova, a síntese dessa multiplicidade incontrolável na forma de classe média. No entanto, o modo de vida médio-classista -- sua disciplina do trabalho, sua ansiosa insatisfação face à sua condição insustentável de ser (social) -- anteviam uma explosão. E de fato ela aconteceu, mas não apenas por isso. 

É preciso ver o jogo de tensões e pretensões: a reação aos ganhos sociais já chegava ali, por mais que parecesse irracional, uma vez que o capital estaria ganhando com esse jogo. Mas as corporações, antes de pensarem nos ganhos presentes, pensam no futuro: e o futuro depende da manutenção do controle do trabalho. Não são raros os momentos na história que o capital, apesar dos riscos de ganhar menos ou perder agora, opta pelo mando. 

No nosso caso, era preciso responder nos preços o que os trabalhadores ganhavam nos salários, o que os pobres ganhavam no bolsa família. Na medida em que a escassez à dignidade diminuía, a exclusividade da cidadania mínima rareava junto com seu preço; era preciso pôs as coisas de volta no lugar. Mas junto disso, a economia encontrava a soma da velha inflação das indexações mil, dos muitos monopólios, gerando uma inflação em cascata.

Nos últimos anos, as tentativas de segurar essa inflação pela valorização do câmbio, por subsídios brancos ao preço dos derivados de petróleo e à energia elétrica, no protelamento dos reajustes de tarifas, desonerações tributárias etc se mostraram um erro. A resposta social à ascensão da classe sem nome era possível pelo grau de concentração de mercado. 

Mas não só, a existência, desde os primórdios do plano Real, de uma correção monetária, cria uma inequívoca inflação inercial, que incidirá, aconteça o que acontecer: quando a lei autoriza a reajuste para mais o preço de algo com fundamento, vejamos nós, na perda de valor em abstrato do poder de compra na moeda, o fato é que o reajuste é, na verdade, inflação em concreto. Os reajustes anuais de aluguéis, de tarifas de luz, água geram um fluxo de carestia interminável. É um problema objetivo da arquitetura do sistema.

Enquanto isso, se a política de protagonismo dos bancos públicos no crédito para o consumo funcionavam, por outro lado, o protagonismo do BNDES no financiamento do capital é um fracasso: no sentido em que o empreendimento favorecido já era a grande corporação oligopolista, a qual por seu gigantismo não inova ou produz com mais eficiência -- seja ocupando concessões públicas, se agenciando com as grandes obras e serviços públicos (como nos casos de empreiteiras) ou pelo simples domínio de mercado elevado (no caso das atividades replicáveis como, p.ex., a produção de automóveis ou alimentos).

Novamente ele, o nosso velho conhecido grau de monopólio. A forma de financiamento absolutamente molar da produção, calcada no grande empreendimento, se une à parafernália burocrática. Esse processo perverso serve, lembrando Eduardo Pimenta de Mello, para fazer com que existam apenas empreendedores pequenos -- e débeis -- e grandes corporações [ou, no campo, a fazenda high-tech do agronegócio e a pequena, e paupérrima, propriedade do agronegócio]. Isso não foi superado. Só se cresce com escala porque o sistema não permite um aumento racional do empreendimento. 

Se em uma ponta o novo mercado interno demanda qualidade e quantidade -- e até obtém isso -- o "sistema produtivo" atola (1) no aspecto [veladamente] político da sua gestão, (2) na concentração de mercado que permite não uma improdutividade, mas o controle sobre a produção e sua estocagem mediante a política de preços; (3) na perda de valor monetário por meio dos indexadores que, a rigor, favorecem o capital rentista (e a possível financeirização até de serviços públicos).

Esses enormes brontossauros incapazes de dar conta da demanda nova. Apenas acumular, não investir, fazer aquisições, acomodar, de qualquer forma, força de trabalho empregada só para se dispôr com o governo -- aumentando salários que são "resolvidos" no preço final.Eis aí o nó górdio. Medidas voluntaristas como a baixa forçada da taxa Selic, sem o fim da correção monetária ou o combate ao monopólio, em Dilma esbarraram nesse cenário de insuficiência. 

A taxa de juros alta se deve à inflação alta, a qual expressa a oferta anômica para uma demanda que, felizmente, continuou a ser irrigada desde baixo. Essa a contradição que o dilmismo tem pela frente: avançar nas redes produtivas, o que demandaria pensar o micro-empreendimento, inclusive cooperativo. Mas não é nada simples.  Por outro lado, os ataques que ora se insurgem, com força, contra sua política econômica tenham, também, outra conotação: o oligopólio financeiro nacional, pressionado pela concorrência dos bancos públicos, deseja recuperar o protagonismo que perdeu porque quis. 

Quando Marina fala em dar "independência" ao Banco Central, sua medida esotérica sinaliza para, sob os auspícios da técnica, dar poder político efetivo ao oligopólio financeiro na formulação da política monetária. Uma vez tomado o BC, estaria tomado  o COPOM e o governo teria de escolher entre concordar com o BC ou, quem sabe, discordar de um órgão emancipados deus sabe como e ver a briga da mão com o pé.

E, naturalmente, impor uma política de juros altos, para substituir  "um voluntarismo" ou "ativismo" monetário, não resolve o problema -- para além do óbvio favorecimento do oligopólio financeiro. Ou se, por um lado, mobilizar os bancos estatais para financiar as grandes corporações é um erro -- não no sentido moral, mas no sentido prático --, por outro lado, retirar-lhes esse protagonismo sem pôr nada no lugar, sem os bancos privados terem essa disposição, vai gerar, em outro sentido, a falta de financiamento para produção e consumo.

Mas o problema do revival (neo)liberal de Marina não para por aí: num certo neo-malthusianismo que recorre à crítica do consumo -- e não raro a temática ambientalista surge nesse sentido como -- e não identifica na superprodução -- e na gestão que permite essa desvinculação -- o problema chave. O culpado é o trabalhador que passou a consumir.  

É o consumo que geraria mais produção -- uma hipótese absurda, uma vez que, p.ex., o Brasil produz há tempos os alimentos suficientes para que não haja fome, mas nem por isso deixou de haver fome, fosse assim, o consumo baixo, até poucos anos, levaria a uma hipo-produção agrícola! 

O paradoxo é que não há vinculação entre produção e consumo nesse sentido, mais consumo, quando socialmente espraiado, requalifica a produção, não necessariamente exige que se produza mais. Não é um argumento de fundo tão melhor quanto a retórica do "ajuste" de Aécio, o qual, em prol de ganhos imediatos, iria arrochar o mercado interno -- as tais "medidas impopulares" que ele não teria medo de implementar: isso é ruim não porque é imoral (embora até seja), mas porque não funcionaria, levando ao mesmo círculo vicioso dos anos 1990.

O debate econômico, em tempos difíceis, nunca foi tão urgente. A crise do modelo atual e as novas saídas, que mais parecem aporias, impõem uma crítica radical.

P.S.: O post acima vem na esteira um debate com Bruno Cava, Alemar Rena, Silvio Pedrosa, Pablo Castro e mais gente, ocorrido no próprio perfil do Bruno há poucos dias -- mas tem também muito das constantes trocas de ideia com o Eduardo Pimenta de Mello.

P.S. 2: dei uma melhorada no texto (06.09, 00:21)

terça-feira, 26 de agosto de 2014

Cem anos de Palmeiras: Dá-lhe Porco!

A máquina de 1996: O Melhor Palmeiras que eu vi Jogar
O futebol e o Palmeiras apareceram cedo na minha vida. Ainda garotinho e recém vindo de Pernambuco para São Paulo, ouvia e via muito do mundo da bola em casa. Papai amava -- e ainda ama -- futebol, tinha até jogado no time amador da nossa vila natal, e mamãe adorava tudo aquilo. Lembro, como se fosse hoje, da vinheta tosca Futebol 92 passando na nossa primeira TV, um aparelho preto-e-branco que durou um tempão. Eram tempos bicudos na terra estranha, cinza e incompreensível onde eu fui parar. 

Meus pais torciam pelo Náutico na terra natal, mas adotaram um time novo na terra nova. Papai já gostava do Palmeiras, talvez desde sua primeira vinda para cá, no começo dos anos 80, mas depois aderiu de vez. E continua sendo um alvirrubro que adota o alviverde neste outro mundo pelos qual transitamos. Eu, ao contrário: gostava do Palmeiras, da cor do Palmeiras, do time do Palmeiras. 

Do Náutico, eu ouvia falar com respeito, mas era uma ideia tão distante quanto o lugar onde eu nasci -- e que, por vezes, eu confundia com outros lugares em São Paulo: perguntava para mamãe se um riacho, à beira da ferrovia Santos-Jundiaí, levava à Limoeiro, pois a vegetação e o riacho lembravam meu sítio natal, cuja memória, a bem da verdade, já ali era como o borrão de um sonho.  

E era o começo da Era Parmalat, quando as crianças se impressionavam com aqueles esquadrões e os velhos se reanimavam. Em 1993, os títulos voltaram ao Parque Antártica, mas para mim eram os primeiros títulos; o Verde tinha pouquíssimos torcedores jovens, a maioria dos adolescentes e jovens adultos eram são-paulinos e corintianos -- efeito da seca de títulos do Palmeiras dos anos 80, coisa que eu só fui saber que aconteceu depois, com certa surpresa. Torcer pelo Palmeiras era impressionante. 

Lembro daquele time estupendo, bi-campeão brasileiro e paulista de 1993-94, treinado por Luxemburgo e com craques como Edmundo, Evair, Zinho, Veloso e Mazinho. Adorava o Edmundo. Era um óbvio mau exemplo, um anti-herói, mas era ele que eu admirava. Porque além de craque, eu via sob aquela carapuça animalesca, talvez, um incompreendido. Isso na mesma época em que o Brasil levou o Tetra, quando todos diziam que o "Palmeiras era melhor do que aquele time que o Parreira levou para a Copa" -- muito embora, aquele time estivessem os nossos Zinho e Mazinho. E como eu odiei a derrota na final do Paulistão de 1995, com Viola comemorando como um porco o gol.

Mas eu lembro muito, com muito carinho mesmo, daquele time maravilhoso de 1996, que foi campeão paulista -- uma máquina, pensando bem, o melhor Palmeiras que eu vi jogar. Foi por conta do Paulistão de 1996 que entendi a geografia do estado de São Paulo: onde ficavam Ribeirão Preto, Araçatuba, Araraquara, Campinas...E como jogava aquele time. Eu nunca joguei bem, até gostaria de jogar melhor, mas não importava: era um nerd perna de pau, mas meu time era demais.

E veio a era Felipão, o futebol feio, só que duro na queda, que eu tantas vezes vi no Grêmio -- um adversário que eu adorava secar e, até mesmo, torcer eventualmente antes de Felipão virar sumidade para, recentemente, cair em desgraça. E tome disputas de títulos nacionais e internacionais. A Libertadores de 1999 com o coração saltando pela boca: sem Veloso, Marcos assumia o manto de goleiro e fazia milagres, sobretudo contra o Corinthians. A derrota para o Manchester United na final do Mundial, numa dessas ironias tristes, por conta de uma falha de Marcos. Depois, a derrota para o Boca, na final da Libertadores de 2000.

A Seleção de 2002, pentacampeã sob o comando de Felipão, além de São Marcos era a própria década de 1990 do Palmeiras: Roque Júnior, Cafu, Roberto Carlos, Júnior, Rivaldo, Edílson, Luisão -- os dois últimos bandeados para os lados do Parque São Jorge no final da década de 90, mas tá valendo. Ironias do destino, Edmílson, Lúcio, Juninho Paulista jogaram também no verde depois do Penta, talvez até Ronaldinho Gaúcho jogue. Ironia maior é que em 2002 caímos para a Série B. Efeito do fim da era Parmalat dois anos antes. Não foi acidente, mas o começo das dificuldades. 

Nos últimos tempos, algumas campanhas medianas até valeram vaga na Libertadores (2004, 2005 e 2008) e um quase rebaixamento em 2006. Só Luxa e Felipão foram capazes de ser campeões nos tempos de vacas magras. No título paulista de 2008, sob o comando de Luxemburgo com um time que tinha Valdivia, Marcos, Kleber e Diego Souza, vivemos um momento de quase voltar a deslanchar.

Era a época que eu entrei na Faculdade de Direito, justo na PUC, ali tão pertinho do Palestra. E foi aí que pela primeira vez eu fui ao estádio junto dos meus pais: justo para ver um jogo do Palestra contra o Náutico, 2x0 para o verde -- e foi a primeira, e única, vez que eu não comemorei um gol nosso. Mas foi mágico estar ali -- e mostrar para minha mãe o Marcos fazendo polichinelo enquanto o Palmeiras atacava. Foi nessa época que eu vivi a vida cá na terra dos bandeirantes como nunca.

Essa época acabou depois do time de 2008 ter sido mal desmontado. Belluzzo virou presidente, fez esforços, ma sé fato que a nova equipe montada para 2009, em meio a tantos acidentes de percurso, perdeu o Brasileirão mais ganho da história dos pontos corridos. Em 2010 Voltaram Felipão, Valdivia, Kléber e o velho Palestra Itália iria virar uma Arena para o centenário. Mas caímos ironicamente em 2012, depois de um título invicto na Copa do Brasil, quando finalmente parecia que o trabalho de Felipão ia engrenar. 

A volta do inferno da Série B e as patinadas que o time insiste em dar, ao lutar contra o rebaixamento em pleno ano do centenário, são dolorosas. Ainda há que se dar tempo para o Gareca, um sujeito de bom caráter que parece entender de futebol. E o diabo da Arena, pelo visto estará pronta tão logo. Ter sido palmeirense a vida toda, justo nessa época, foi experimentar a glória absoluta e a derrota mais profunda -- quase como numa mesma partida. Se o Palmeiras voltará a ter times à altura da sua história, só o tempo dirá. Mas aconteça o que acontecer, valeu e valerá a pena: eu nunca achei o riacho que me levaria de volta para casa, talvez porque tenha encontrado uma nova casa em meio a tudo isso. E o Palmeiras é uma das coisas que permite a isso fazer sentido.



sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Amantes Eternos: Paixão, Vampiros e Decadência do Mundo

Amantes Eternos (Only Lovers Left Alive, Alemanha-Reino Unido, 2013) do diretor Jim Jarsmusch é um filme de vampiros muito original. Você não verá aqui qualquer excesso, mas sim suavidade e um trato bastante inteligente sem cair no pedantismo: nada de vampiros adolescentes ou um thriller de ação que beira, quando não ultrapassa, o pastelão. Adam e Eve são vampiros muito antigos com uma relação amorosa igualmente imemorável, mas estão distantes agora: enquanto ele vive como um astro do rock recluso na decadente Detroit contemporânea,  ela se esconde em Tanger, no Marrocos. A partir da tensão amorosa entre os dois, nesse mundo em chamas da crise mundial, as coisas acontecem, sem que a palavra "vampiro" sequer seja mencionada.

Ele é depressivo, ama música -- e, por motivos óbvios, produz suas obras no anonimato, a qual é distribuída granças a um agente humano -- enquanto ela flana com estilo no mundo árabe, onde nutre uma amizade com um vampiro ancião chamado Marlowe -- sim, o próprio. São cultíssimos e têm bom gosto: o acúmulo dos séculos, naturalmente, lhes fez bem. Eles não saem por aí tomando o sangue de ninguém, mas conseguem sangue limpo e descontaminado junto a bons esquemas de fornecimento. Se você nunca viu vampiros assim, por outro lado, a questão é como isso poderia ser diferente se eles realmente existissem?

Por conta do agudo quadro depressivo de Adam, que pensa em se destruir, Eve vai ao seu encontro em Detroit, mas as coisas se complicam quando a irmã dela, Ava, resolve dar as caras sem ser convidada depois de muito tempo sem vê-los. E Ava é um retrato da nossa pós-modernidade: decadente, insaciável e inconsequente -- ela tira o sossego que Adam tinha em Detroit, ou no que restou da cidade. A partir daí película tem sua virada, sem nunca perder a elegância, o ritmo pausado e suave.

O vampiro, como se sabe, é uma forma mitológica que alude a alguma classe social, alguma etnia, algo indesejado que acaba retratado como tal. A imagem do vampiro é sempre um caleidoscópio, cujo resultado simbólico nem sempre é justo. Aqui, ele representa uma certa aristocracia ontológica em extinção: a qual, apesar dos ganhos causados pela civilização, ainda vive de sangue porque é de sua natureza, muito embora tenha desenvolvido, seja por ética ou pelas contingências, novos meios para sua extração -- e é, por outro lado, guardiã de uma cultura destruída pela massificação. Enfim, os nossos vampiros não são só terríveis bebedores de sangue, mas também, e sobretudo, os mecenas e até artistas ocultos da humanidade -- com quem nutrem uma relação de amor e ódio.

Se o nosso mundo é tragédia pura, Detroit falida e abandonada é segura para um vampiro justamente pelos motivos errados, o vampiro representa uma decadência com elegância. Adam é a pura depressão romântica, mas Eva é esperança: Detroit se reerguerá porque, afinal, lá existe água e, talvez, não haja porque ter tanto pessimismo com os "zumbis" -- isto é, os humanos, mas acima do humano, menos do que humano: a massa. Não há porque ser romântico.

Essa decadência elegante do nosso tempo, uma certa expressão pessimista e ao mesmo tempo leve da crise mundial, tem sido recorrente no cinema atual. Filmes como um Castelo na Itália ou a Grande Beleza suscitam isso de alguma maneira, mas com uma resolução pessimista. Em Amantes Eternos, para além do bem e do mal, os vampiros não perdem sua sede da sangue, talvez até percam as amarras civilizatórias conforme as contingências da vida, mas eles não terminam na mera contemplação ao fim da história ou em alguma busca pela redenção.

terça-feira, 19 de agosto de 2014

Sobre Virtù e Fortuna na Terra do Sol: Marina e a Tragédia de Campos

No meio do caminho das eleições brasileiras houve um desastre aéreo. Um desastre aéreo que ceifou a vida de um dos principais candidatos, Eduardo Campos. E a tragédia mudou tudo. Embaralhou um jogo que caminhava, por inércia, para uma vitória já em primeiro turno de Dilma. Marina Silva foi trazida novamente ao jogo. Agora, por conta disso, tudo indica que teremos um segundo turno, como confirmam as pesquisas feitas, sem muito pudor ou demora, nos dois dias seguintes à morte de Campos: [pretendente a] rei morto, [pretendente a] rainha posta. Ninguém mais perde tempo na era dos selfies e das redes sociais. Embora Marina não seja, ainda, oficialmente a candidata à presidência, há poucas dúvidas que isso deixará de ocorrer diante da verdadeira aclamação de seu nome por vários setores na tétrica oportunidade aberta. 



Depois do choque do acidente, na manhã cinzenta e turbulenta da última quarta-feira, mais três dias de luto nacional até a gigantesca cerimônia fúnebre, celebrada cinco dias depois, no Recife, terra natal do falecido, o cenário é de perfeita anomia. As coisas ficaram fora do lugar. Em um dia, Campos estava no Jornal Nacional, no outro, morto. A última vez que o destino pôs a mão nos rumos da sucessão presidencial brasileira, não se esqueçam, foi, ironicamente, no episódio da morte de Tancredo. E o fato apesar da tragédia não se aplicar a um chefe de Estado eleito ou em exercício, mas a um pretendente, não exime o episódio de gerar aquela carga que se via no antigo Império e se repetiu nas monarquias: a morte do corpo do imperador, a lei viva, enfraquece a ordem vigente e, durante o luto, nada mais é como antes, as coisas caminham incertas, embora seja muitas vezes uma incerteza reveladora.


Campos teve uma carreira meteórica, marcada pelo ímpeto e pela audácia, até se tornar um dos protagonistas do Lulismo: de ministro de Estado até governador da base governista, ele foi lugar-tenente das políticas que produziram uma verdadeira virada histórica no país, sobretudo no que diz respeito à sua região, epicentro estratégico do Novo Brasil. Apesar da insígnia socialista, era menos isso, ao contrário do avô, e mais um modernista de Estado. 

De movimentos audaciosos em movimentos audaciosos, Campos não apenas rompeu com o PT sob Dilma, mas também fez de seu partido a atração das eleições municipais de 2012, lançou-se candidato à presidência -- quando todos achavam um blefe -- e ainda admitiu em sua chapa a ex-concorrente e colega de ministério Marina Silva -- a qual ficou alijada da disputa por não conseguir formalizar seu partido a tempo das eleições num episódio controverso.


Muitos falaram em fortuna, remetendo a uma leitura fraca de Maquiavel, como se simplesmente o acaso tivesse aparecido e mudado todas as certezas de uma eleição que caminhava, grosso modo, para a reeleição de Dilma. Já Marina prefere crer na intervenção de uma providência divina, que a salvou do pior, uma vez que poderia estar no mesmo voo. O fato é que as coisas parecem menos aleatórias ou divinamente preparadas. 

Essa "fortuna", possivelmente, é de outra ordem. A fortuna é a fortuna sob o capital e a fortuna que lhe escapa. Se fortuna é a sorte, por outro lado, seu uso metafórico para designar riqueza se consagrou: mas a riqueza não aparece, nem se mantém, aleatoriamente. Riqueza, concordam Smith e Marx (e Marx por causa de Smith!), vem do trabalho. Essa fortuna, pois, diz respeito das vultuosas quantias sobre as quais falamos diariamente quando falamos sobre economia política. Um fluxo de riqueza administrado pelo capital, o qual é dependente de uma classe política profissional, destacada da sociedade, fluída e desterritorializada de partidos políticos sólidos ou o que mais lhe possa atar -- o partido é, sobretudo, unidade econômica, casa de um senhor só que manda e desmanda. O que não quer dizer que não haja matizes ou que não haja resistências ali ou acolá, mas o grosso do sistema é isso.


A Nova República é feita do grande capital -- nas suas cisões e seções, a grande indústria, os bancos, o agronegócio --, mas também das grandes estruturas do Trabalho como as centrais sindicais -- e também de poupudos fundos de pensão que gravitam em torno delas, hoje mais importantes do eventuais bases de trabalhadores. Isso tensionado com uma organização do trabalho que se modificou duramente nos últimos anos, assumindo a forma de redes resistentes e exigentes. Um novo trabalho no qual temos uma multidão no lugar do proletariado industrial e, também, a metrópole no lugar da fábrica.

Nesse mundo, os arranjos políticos fracos e personalistas fazem com que a morte de um único ser humano operem mudanças. Candidatos, infelizmente, podem morrer durante o intercurso de uma campanha eleitoral, mas aqui eles não têm instituições partidárias sólidas para impedir que isso signifique, muitas vezes, a morte de um projeto ou sua transformação. Ainda que os limites demandados e impostos pelo mesmo sistema sejam cada vez mais estreitos -- e reativos a transgressões e ultrapassagens. Não existe "acaso", mas os efeitos necessários das possibilidades óbvias. 

Que deseja Marina, afinal? Certamente a manutenção sofisticada desse mesmo sistema, mas com a mera gestão, e não a governança, da "economia", preservada como uma reserva natural, uma vez que o estágio atual não admite qualquer eficácia em uma "intervenção" qualquer naquela esfera -- que deve ser, portanto, administrada por seus técnicos, como um André Lara Resende; por outro lado, a "superestrutura" se torna espaço de composição, a única área de atuação possível de um futuro governo. Há um certo ideário marxista de formação bem longínquo que, no entanto, cede lugar à democracia liberal como forma acabada, resultando na produção do sujeito do multicultural, de diferenças diluídas por um sistema universal.

Não é um projeto que deixe de ser reformista, mas não o é, em si, forte para se sustentar enquanto tal, para não capitular às linhas fracas de sua própria composição como às pulsões suicidas inerentes ao neomalthusianismo de ocasião -- que põe no consumo, por parte dos pobres, e não na superprodução, para a especulação, os efeitos da devastação ambiental -- ou a outras tendências apocalípticas ou catastrofistas podem ser muito bem apropriadas pelas elites. Quando a crise ambiental é pensada a partir do fim do mundo, ajuste por recessão ao sabor do mercado financeiro -- que, no Brasil, é uma máquina completamente anômica -- e santuarismo podem sim andar de mãos juntas. 

Marina não é menos economicista do que Dilma, apenas faz opções diferentes para a economia,  nem Dilma é menos "superestruturalista" ao fazer exatamente o inverso dentro do mesmo, isto é, governar a "economia" enquanto trata como penduricalhos -- rifáveis, inclusive -- tudo que estaria posicionado como exterior à esfera econômica.   Os costumes brasileiros, pensa Dilma, são assim mesmo pelo "estágio" da nossa civilização, portanto, é preciso trabalhar a partir de largos consensos mesmo que, por vezes, isso exponha as minorias, enquanto o desenvolvimento econômico ainda não dá conta de produzir o salto necessário. Em ambos os casos, é um pouco de um marxismo formalista e positivista de formação, que cinde "economia" das "outras coisas" e, nesse binarismo, faz opções de como articula-las.

Marina, aliás, pensa o mesmo da economia, do neoliberalismo, pois este só seria superado com o salto dado a partir da cultura, da formação de uma nova subjetividade, o qual não seria propriamente um cidadão emancipado, mas enquadrado em um regime de "tolerância" e "diversidade", enquanto temas sensíveis aos direitos civis seriam deliberados por plebiscitos como nos casos do aborto ou da descriminalização do uso da maconha. Mas se num libelo de tolerância Marina diz que o problema não é que um Feliciano seja evangélico, mas sim intolerante com os direitos humanos, o que é correto, por outro lado equipara uma  "cristofobia" à "homofobia" -- como se os homossexuais estivessem ou pudessem estar aí atacando cristãos (?!). Se não há uma formulação que determine o que é a parte majoritária ou minoritária da relação de poder, nos pegamos no mínimo diante de uma situação potencialmente perigosa.

Fato incontestável é que agora as eleições começaram. Porque Marina tem por trás de si, à base da nova economia ambiental e do setor financeiro, um bloco de poder que se usa, e é usado, por seu programa reformista, pareando-a com Aécio e Dilma, que como representantes de PSDB e PT já tinham essas condições há muito tempo. Curioso notar que venceria quem se aproximasse realmente, de corpo e alma, do continente desconhecido da nova composição de classe brasileira, mas a ordem é governa-lo e contê-lo, não se agenciar com ele. O desarranjo provocado pela entrada de Marina no jogo apenas cria uma tensão nas alturas, mas está longe de marcar um fluxo constituinte que faça nosso sistema sair da mesmice.  


domingo, 17 de agosto de 2014

O Estado como seu Duplo: Regra e Exceção, Gêmeas Siamesas

Assim Falou Zaratustra...
Texto-plano da minha fala apresentada no colóquio Democracia, Poder Constituinte e Estado de Exceção do ciclo Korpobraz, feito em parceria entre a Casa de Rui Barbosa e a Uninomade na última quinta-feira, 14 de agosto, no Rio de Janeiro.

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No Brasil contemporâneo, a prisões arbitrária de diversos ativistas, as variadas perseguições a qualquer um que destoe da música oficial, a recriação de inúmeros aparatos de repressão dentre outros fatores fazem com que o fantasma do estado de exceção retorne à ordem do dia. Esse fatos constituem um evento em sentido ontológico: não apenas o momento cronológico onde as coisas "aconteceram",  na forma de um corte narrativo objetivo, mas o plano próprio no qual o permanente fluir das coisas -- com suas idas e vindas -- encontram alguma consistência. Assim, nós vemos a reunião de acontecimentos inéditos, repetições e, também, velhos fatos que permaneciam ignorados, invisíveis ou sem significado vindo à luz.

Enfim, temos coisas novas acontecendo e, junto disso, velhos componentes que aí permaneceram se tornando relevantes, fazendo sentido ou, até, sendo ressignificados. Os ativistas presos é uma novidade, mas isso, visto em junto com o funcionamento há muito questionável das polícias, ministério público e judiciário, ganha uma novíssima qualificação. Estaríamos, pois,  diante de um fantasma que julgávamos esconjurado? 

O "estado de exceção", esse fantasma enigmático, tem em torno de si uma névoa dada pela doxa do irmão maligno: a exceção, o momento da suspensão de direitos e garantias individuais vigentes, só poderia pertencer a um regime autoritário -- assim tornando impropriamente ou pelo fato que nunca o deixou de ser --, sendo o gêmeo maligno do estado de direito; enquanto sob o gêmeo mau vivemos sob permanente insegurança face às autoridades que deveriam nos defender, abaixo da luz do gêmeo bom há direitos, segurança e paz, salvo se ocorrer um acidente.

Diante dessa premissa, o evento em questão nos colocaria diante de três hipóteses recorrentes. Isso poderia ser um acidente pontual, em relação ao qual nossa democracia teria por obrigação remediar e corrigir. A outra hipótese remete ao fato que estamos testemunhando o retorno aos "tempos da ditadura", uma vez que esse acidente não foi pontual ou, então, foi grave demais, nos colocando na prática de volta sob a égide de um regime autoritário. Por fim, a noção de recorrência ou gravidade do acidente revelaria outra verdade histórica: que, talvez, jamais saímos do "período de exceção", que nossa democracia é uma farsa criada pela ditadura para se manter.

As três hipóteses, no entanto, são frágeis. Pois elas não nos permitem nenhuma problematização do interior do sistema. O chamado "estado de direito" só poderia ser perfeito, logo, qualquer problema verificado em seus mecanismos seria algo pontual ou aludiria ao retorno ou à evidência da persistência oculta da "ditadura" -- uma referência à ditadura militar de 1964-1985, aparentemente o único momento de repressão generalizada considerado "fora da curva" pelo imaginário histórico brasileiro, notadamente positivista.

Dentro dessa ilusão de ótica positivista no campo histórico temos, no que toca ao conceito de "Estado de Exceção", um debate ainda incipiente marcado pela análise do legado da ditadura militar ou, no campo da filosofia, pelo debate em torno do projeto homo sacer do filósofo italiano Giorgio Agamben, da problematização do tema na épica trilogia de Negri e Hardt e, mais remotamente,  algum reminiscência dos debates realizados no entreguerras por Carl Schmitt, Hans Kelsen e Walter Benjamin.

Se "estado de exceção", como noção ontológica-política central, é algo que surgirá, não à toa, em torno do avanço nazi-fascista na Europa, sua retomada nos dias atuais se dá em cima de um trauma importante: a percepção de fracasso da utopia constitucional-liberal na esteira dos abusos da Era Bush Filho e, em seguida, com a sistemática suspensão de direitos fundamentais como prática regular em muitos países ricos durante a crise econômica mundial.

Não que antes da problematização de Carl Schmitt, um dos pensadores mestre do nazismo, ainda não houvesse a figura do estado de exceção nas cartas constitucionais modernas, ou mesmo sua aplicação: o que Schmitt fez, pelo bem do desenvolvimento do sistema nazista, foi sua sistematização, ele criou uma filosofia e uma ciência da exceção para permitir um uso procedimental coerente daquele artifício.

Declarar a exceção para Schmitt seria, em último caso, não desfazer o sistema constitucional-legal, mas suspendê-lo, conforme os interesses em jogo, pelo tempo e da forma que fossem necessários. O soberano schmittiano, condutor de um povo etnicamente homogêneo em relação ao qual ele nutria fidelidade absoluta por razões de sangue, aplicaria ou suspenderia Lei conforme seu arbítrio, como um pai amoroso que diz e até se contradiz pelo bem de sua família. 

De outro lado, Hans Kelsen, ao contrário do que parece, surgia com uma outra forma de platonismo que apesar do aparente formalismo, era um sistema complexo que, no limite, reconhecia a soberania estatal plena, ou a possibilidade para tanto, com um direito meramente estatal e fundado na possibilidade de auto-subversão pela ordem da autoridade, isto é, o "intérprete autêntico": o capítulo VIII da Teoria Pura do Direito deixa pouco espaço para dúvidas nesse sentido.

É Walter Benjamin que, de modo incrivelmente audacioso, proporá o estado de exceção verdadeiro, assentado na história -- na "tradição dos oprimidos" -- que suspenderá a própria Lei. Ele não é congelamento tático de dispositivos legais, mas abertura permanente para uma revolução permanente, para além do regime das obrigações. Agamben, Negri e Hardt, quando se deparam com a decadência das ilusões constitucionais liberais no pós 11 de Setembro têm, cada qual à sua maneira, a ideia de estado de exceção verdadeiro de Benjamin: exceção que não se referencia pelo limite negativo, ou pela dívida infinita (o dever absoluto em relação ao Estado e suas misteriosas razões), mas pela própria superação de limites -- seja pela libertação do direito ou pela libertação no direito.

Essa lembrança sobre o estado de exceção, a diferença entre um estado de exceção soberano e o verdadeiro -- ou multitudinário -- servem, no plano prático para nos desfazermos de nossas próprias superstições -- como se as garantias e direitos constitucionais fossem saltar e se realizar automaticamente para nos salvar -- e, assim agirmos; as prisões de manifestações e a repressão que há um ano atingiu níveis perigosos é um evento da ordem da investida imperial de Bush Filho: são quadros igualmente horríveis, mas que atentam para a necessidade de colocarmos fim nas nossas ilusões.

O Estado brasileiro não mudou nos últimos meses. Não houve qualquer transformação não declarada.  A possibilidade de fazer o que fez sempre esteve lá como potência concreta desse sistema. Não há o gêmeo bom e o gêmeo mau, mas sim gêmeos siameses: duas cabeças que compartilham o mesmo corpo. Antes de ser "de direito" ou "de exceção" temos o Estado e seu dualismo complementar.

Tira bom e tira mau, o senhor e o capataz, o presidente e o ministro da casa civil, o diplomata e o espião: Estado como dualismo, regra e exceção são gêmeas siamesas: Aura Mazda e Arimã, ainda Zaratustra, como nos primórdios dessa nossa tradição que é tanto mais persa do que semita. Bem e Mal simétricos e, em certa medida, mutuamente necessários.

A partir daí, a máquina política é glória absoluta aparente e violência oculta. Captura as conquistas sociais na forma da lógica da outorga -- como se o STF tivesse "feito" a união civil entre casais homossexuais ou Getúlio tivesse feito a CLT e não os movimentos constituintes (de direito) -- e age na forma da violência absoluta quando necessita  e tem condições objetivas para tanto. O Estado concede e captura quando limitado -- e violenta quando não sofre pressão.

A questão não é a luta por dentro, a luta meramente institucional (de Estado), versus a luta nos movimentos, mas uma luta que venha de fora (da subjetivação do Estado) para dentro da máquina: sem ilusões de que garantias e direitos tenham vida por si, ou pela graça divina do Estado, mas apenas quando assumidas por Ele como verdades práticas. Atividade militante capaz de atuar nos mecanismos da máquina sem crer em sua religião, sem sentir culpa pela profanação. Nada de "Estado de Direito Democrático", mas sim, à maneira de Clastres, Democracia contra o Estado por meio de um direito comum feito na prática e em conformidade com as necessidades materiais.