Já há algum tempo vem circulando pela blogosfera um artigo do ex-Porta-Voz da Presidência da República André Singer: Raízes Históricas e Ideológicas do Lulismo, publicada originalmente no número 85 da revista Novos Estudos da Cebrap. Ontem, rolou um debate na Casa da Cidade, na Vila Madalena com a presença do próprio Singer justamente sobre o artigo em questão. Eu, claro, não perderia esse debate por nada - mesmo com a correria miserável que se tornou a minha vida depois de termos vencido a eleição para o Centro Acadêmico da minha Faculdade -, afinal, a obra de Singer, em que pesem os seus defeitos, é o primeiro trabalho científico sério sobre a questão do Lulismo que eu vi publicado, o que não é pouca coisa. Portanto, mesmo depois de uma manhã de aula, uma tarde de trabalho duro no CA, ainda acabei zarpando à noite para o debate com meu grande amigo Aldo Sauda.
Evidentemente, não podemos esperar algo perfeito a respeito do maior fenômeno político brasileiro desde Getúlio Vargas devido, principalmente, a falta do necessário distanciamento histórico em relação a questão, mas, ao mesmo tempo, a necessidade de compreendermos o momento em que nos encontramos pistas sobre o nosso tempo - para além da pitacaria metafísica do jornalismo panfletário - também se faz presente. O trabalho de Singer, em linhas gerais, expõe o fenômeno do Lulismo enquanto uma vertente de Bonapartismo situado nas idiossincrasias brasileiras e assentado sobre o que o autor denomina de subproletariado - uma fração da classe trabalhadora desorganizada e incapaz de se representar que, portanto, se organizaria em torno de uma figura carismática que bancaria um Estado forte fiador de políticas redistributivas. O Lulismo, portanto, combinaria elementos de direita e de esquerda.
No início do debate, Singer se dedicou a expôr as linhas mestras do seu artigo com a sua habitual tranquilidade e ponderação - que logo revelam um grande orador que se afirma pela capacidade única de encadear de forma lógica, franca e polida sua argumentação ao invés de carregar nas tintas da eloquência pernóstica de muitos dos nossos varões da República. Sim, Singer fala muito melhor do que escreve - ainda o faça muito bem - e palestrando é capaz de explanar de uma forma mais consistente sobre os seus conceitos - como do conservadorismo popular, por exemplo. Assim, ele manteve a atenção de uma plateia de militantes, estudantes e políticos fixa do começo ao fim da explanação assim como a manteve o pique quando começaram as rodadas de perguntas.
Como eu não perderia me furtar de perguntar alguma coisa, tasquei uma pergunta em cima de uma reflexão:
Se pegarmos a história da esquerda no Brasil, vemos que ela nasce copiando o modelo da esquerda europeia oriental e assim foi por pelo menos seis décadas, até o surgimento do PT, que é um partido com claras influências da esquerda da Europa Ocidental. O PT se mantém desse jeito até a derrota de Lula em 89 e uma série de mudanças que se operam na medida em que o partido começa a se envolver nos embates eleitorais e culmina na Carta ao Povo Brasileiro, quando ele dá uma guinada, finalmente consegue passar a sua mensagem e vence as eleições. Portanto, não será que depois de insisitir tanto em modelos estrangeiros, esse não seja o modo brasileiro de ser de esquerda e o Lulismo que teria aspectos de direita e de esquerda não seja, na verdade, uma forma de esquerdismo genuinamente brasileiro?
Singer, com a calma que lhe é peculiar me disse: A sua pergunta poderia ser resumida da seguinte forma, o Brizola não tinha mesmo a razão? E eu respondi, bem, a Dilma não é a candidata do PT? (Sim, eu sei, fui mais sarcástico do que deveria, mas não podia perder a deixa). O professor seguiu com a explanação de que sim, essa hipótese ainda que ele não considere, ele não a descartaria por conta do próprio enriquecimento e classe e os impactos imprevisíveis no quadro político. Singer é da esquerda do PT - da Mensagem ao Partido, mesma corrente de José Eduardo Cardozo e Tarso Genro - muito provavelmente não concorda com essa assertiva, ainda que compartilhe como a maioria do pessoal que estava ali, em geral, uma plateia amiga como o próprio mediador da mesa, o ex-vereador Nabil Bonduki, uma sensação de desconforto e confusão: Ao mesmo tempo em que o PT chegou ao poder e tocou políticas que inegavelmente geraram ganhos sociais, ele também abriu mão das suas políticas de bases e perdeu muito da sua democracia interna. Para além das deformações que aconteceram no período, que são acidentes e não a causa, algo novo e funcional também está em curso, eis o ponto. Essa inquietação trespassou o debate e estava presente em boa parte das outras falas.
Claro, o teor da minha pergunta não era exatamente esse e também não passa batido por tudo que aconteceu com o PT nos últimos anos, o ponto era que apesar dos pesares, não será que graças ao estabelecimento de uma classe trabalhadora urbana - apesar dos percalços - depois de todo processo migratório do século 20º não estejamos diante de um quadro onde temos as nossas reivindicações próprias e idiossincrásicas à nossa realidade? Que o próprio modo de luta social brasileiro tenha finalmente tomado contornos próprios e exija respostas congruentes dos partidos de esquerda, inclusive contrariando alguns canônes de sua práxis? Claro, Singer compreendeu bem essa questão, pois apesar de elipsar esse ponto, essa pergunta só poderia existir se eu negasse a existência do subproletariado - em suma, eu entendo o tal conceito cebrapista como uma confusão analítica, justificável pela complexidade da nossa realidade, e que se constituiu no momento em que se coloca a classe trabalhadora camponesa que migrou para a zona urbana e está em processo de organização e não desorganizada. No final conversamos um pouco e ele ponderou sobre a minha reflexão.
Mais adiante, sobraram perguntas que Singer respondeu pacientemente, muitas delas refletindo a preocupação de onze em cada dez petistas de hoje, que foi o recuo do governo em relação à sua política basista e, apesar das conferências realizadas no período, um distanciamento dos movimentos sociais, quando deveria ter acontecido o contrário - e o Professor concorda com esse posicionamento - assim como própria necessidade de puxar o PT à esquerda - principalmente tendo em vista o ponto importante que Singer levantou: O exército de reserva diminuiu e está diminuindo, o que aumenta o poder de barganha dos sindicatos e dos movimentos sociais, queira o PT ou não, o obrigaria o partido a tomar posições mais à esquerda para poder até mesmo sobreviver ao momento que se aproxima. Ainda que eu não concorde exatamente, em linhas gerais é isso mesmo, a estratégia petista da Carta ao Povo Brasileiro cumpriu seu papel e ainda nos trará frutos por mais alguns anos - não se três ou quatro -, mas em virtude dela mesma, o partido precisará alterá seus posicionamentos atuais, do contrário, se esgotará inexoravelmente.
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