Na sexta-feira, Dilma Rousseff foi diplomada no Tribunal Superior Eleitoral junto ao seu vice, Michel Temer, diante da pequena quantidade de convidados que o evento comportava. Enquanto a fraternal troca de guarda se opera, o Governo Lula termina com resultados impressionantes de aprovação popular, de crescimento econômico - especialmente no segundo mandato -, geração de emprego, aumento da renda salarial e diminuição das desigualdades. O momento que o país vive explica a eleição da favorita de Lula em Outubro - e também dita a tranquilidade com a qual se opera aquilo que, antes de ser uma troca de Governo, é quase uma mera passagem de bastão mesmo. Lula entra para a história brasileira como o Presidente que não apenas promoveu das maiores melhorias econômicas e sociais como também o fez mantendo - e garantindo - amplas liberdades. Os desafios que Dilma terá pela frente são enormes, como não poderiam deixar de ser.
O Governo Lula terminará com uma taxa de crescimento próxima a 8%, o recorde de seu próprio governo e melhor resultado em décadas, depois da queda do ano passado, quando o país sofreu o impacto da Crise Mundial. Os níveis de renda salarial e emprego que passaram incólumes no ano passado, seguiram uma trajetória positiva. Concretamente, o que Dilma terá pela frente é o desafio da crise do câmbio, no qual o Real está supervalorizado tanto pela política de juros quanto pelo movimento internacional do Governo americano desvalorizar o dólar - o que lhe joga um peso duplo, seja no campo da reorganização da política econômica, seja da quebra de braço diplomática -; também fica a questão inflacionária - concentrada em certos itens - e a necessária reorganização das contas públicas, entre a pressão de aliados e a demanda da diminuição do custo da máquina.
A questão ambiental, fortemente pautada nessas eleições por conta da candidatura Marina Silva, segue na ordem do dia. As eleições pontuaram que Dilma não poderá passar por cima do tema, embora a natureza plural da composição do Governo aponte para uma direção em que a questão permanecerá em disputa. Com a Agricultura permanecendo nas mãos de aliados, é fato que não haverá aqui uma decisão quantos aos rumos da coisa como houve na economia. Talvez Marina tenha perdido uma bela oportunidade no Segundo Turno ao não ter forçado, em troca de um apoio formal, que a candidata Dilma aceitasse assumir um compromisso mais firme quanto à agenda ambiental - recuando em pontos negativos como o péssimo Código Florestal que está prestes a ser aprovado graças à peculiar aliança entre os ruralistas, o comunista Aldo Rebelo e o interesse do governo americano.
No plano institucional propriamente dito, existe o compromisso da reforma política e a proposta nebulosa da "constituinte exclusiva" - dentro de um terreno de disputa cujas mudanças não são neutras, no qual a aprovação de itens como financiamento público de campanha e listas fechadas pode alterar consideravelmete o panorama eleitoral. Tudo que envolve essa reforma política, aliás, está longe de gerar um acordo entre as forças políticas do país. Aliás, outro terreno não menos pantanoso é o próprio Ministério da Defesa. Ministério problemático entre ministérios problemáticos, a manutenção de Nelson Jobim - amplamente referendado pelos militares - somada a divulgação de vasto material desabonador pelo Wikileaks em relação à sua conduta revela, antes de mais, o tamanho da problemática da relação entre as Forças Armadas, o Estado Democrático e a Sociedade Civil. Mesmo décadas após o fim da Ditadura e outras décadas do fim da Guerra Fria, as Forças Armadas continuam agindo de uma forma perigosamente autônoma, seja pelas manobras que derrubaram seguidos ministros da defesa - desde que FHC criou o ministério, prolongando a data de revelação dos arquivos da ditadura "em troca" do aval dos militares para o fim dos ministérios militares. Agora, pelo visto, estamos diante de um movimento inverso, no qual a figura de Jobim marca o inicio de um movimento de aparelhamento conservador do Ministério por eles, o que sob a máscara de uma tranquilidade nunca antes vista, esconde uma grave contradição institucional.
A política externa, área mais bem-sucedida do Governo Lula, não sofrerá inflexões. Depois de oito anos exitosos, Celso Amorim deixa o cargo para dar lugar ao diplomata de carreira e atual número 2 da diplomacia, Antônio Patriota. A política de integração sul-americana deve continuar e se intensificar - depois de um ano no qual o crescimento do Mercosul, salvo a Venezuela, será primoroso - assim como o país seguirá orientado pela política Sul-Sul. Depois da profunda inflexão da diplomacia nos anos Lula, a continuação do processo pelos próximos anos poderá não mudar muito o que a oposição pensa de política externa, mas tenderá a fortalecer laços e intensificar conexões, o que tornará mais difícil qualquer eventual mais abrupta ao sabor de ventos eleitorais.
A essa altura, a equipe ministerial já foi confirmada, com a manutenção de muitos nomes, a entrada de alguns novos - mas algumas definições importantes de rumos. A equipe econômica, dividida entre desenvolvimentistas e monetaristas no segundo mandato do Governo Lula - o que ocasionou grandes tensões, naturalmente - terá a cara dos primeiros - com um Banco Central comandado por profissionais de carreira cumprindo funções mais técnico-administrativas do que políticas -, teremos um Ministério das Comunicações forte - com Paulo Bernardo no cargo - como já deveria ter sido, um Ministério da Justiça novamente em boas mãos - com José Eduardo Cardozo - e uma Casa Civil nas mãos do controverso Palocci - que atuou na área econômica de Lula, justamente no grupo que perdeu proeminência no segundo mandato, mas agora encontra espaço na área política. Dilma não cedeu às pressões e manteve Fernando Haddad na Educação. Menos ministérios do que se supunha ficaram nas mãos dos PMDB, o que leva a crer que a bancada será recompensada com a primazia na negociação das emendas parlamentares.
Dessa composição ministerial, não resta dúvida de que Dilma acertou na racionalização da equipe econômica, o que já mostra as sutis diferenças entre ela e o seu mentor; enquanto Lula preferia um Banco Central forte em pé de igualdade com a Fazenda com, inclusive, líderes com diferentes perspectivas sobre economia - em vários momentos, conflitantes mesmo -, em relação aos quais Lula se colocava ao centro e acima para realizar a mediação - reminiscência clara da sua experiência sindical -, Dilma prefere seguir uma linha clara, em uma cadeia de comando que começa nela, se concentra na Fazenda com Guido Mantega subordinando um Banco Central na figura de mero executor de diretrizes técnico-administrativas de política monetária - o que indica que o Banco Central voltará a ser, na prática, a autarquia que nunca deixou de ser juridicamente, embora politicamente o mesmo não se possa falar; um reflexo claro da formação política de Dilma enquanto, fundada na racionalidade procedimental e na previsibilidade técnica.
A coordenação política do Governo ainda está em construção, mas teremos na Casa Civil o velho conhecido Antônio Palocci, político moderado, cuja carreira é marcada por uma rápida ascensão ao posto de comandante da economia no primeiro mandato de Lula que, no entanto, se sucedeu a uma abrupta queda após o escândalo do caseiro Francenildo - em relação ao qual Palocci foi absolvido judicialmente, mas que não deixou de ter sua sanção política. A indicação de Palocci, aliás, foi curiosa. Ele apareceu como conselheiro econômico da campanha de Dilma, mas sua ala sequer ganhou proeminência na condução da economia, o que parecia destina-lo irremediavelmente para uma atuação de bastidores, movimento suspenso, entretanto, pela sua indicação ao segundo cargo mais importante no Executivo. É sabido que Palocci tem uma capacidade de diálogo com amplos setores, mas é preciso bem mais do que isso em um cargo que ganhou importância em Lula - e que só mesmo Dilma conseguiu dar conta do recado ao longo dos últimos oito anos. Existe a chance do cargo perder parte das funções - e por tabela, da importância também -, mas o fato é que estamos diante de uma escolha profundamente incerta e que não encontra lá muita sustentação em meio a base petista.
Nas negociações do Congresso, apesar de boatos da impensa e blefes fugazes de políticos peemedebistas, nada parece ter ameaçado o costume firmado de que o partido com a maioria relativa em cada Casa tem a primazia de indicar o Presidente de cada uma delas; como PT e PMDB representam as duas maiores bancadas de ambas as casas - e a coalizão governista é majoritária em ambas também -, isso parece mais assegurado ainda. Pelo menos as negociações na Câmara estão bem claras e o PT gozou da primazia de discutir internamente o candidato que apresentaria à base governista; a indicação de Cândido Vacarezza, que parecia certa, não resistiu às suas atitudes precipitadas depois de se ver sob uma pressão cerradas das alas esquerdas do partido - o PT pode ter mudado muito, mas dar entrevista nas páginas amarelas da Veja falando mal do movimento sindical para se mostrar "moderado", ainda é um tiro no pé. Esse movimento impensado forçou uma movimentação conjugada entre setores da CNB - corrente hegemônica do Partido - e a esquerda petista - Mensagem, Movimento PT e Articulação de Esquerda - contra sua candidatura o que resultou em um "nome de consenso", o deputado gaúcho Marco Maia, ex-torneiro mecânico e ex-dirigente da CUT. No Senado, a tendência é algum velho cacique do PMDB retomar o comando da Casa, nada de novo sob o Sol.
A tendência, como resenhado e anotado, é de que o Governo Dilma seja mais preciso do que o Governo Lula, embora tenda a ser menos criativo. É provável que testemunhemos menos erros nos próximos quatro anos e isso não se deverá apenas ao aprimoramento do projeto mantido, mas também ao perfil da liderança de Dilma. No cenário internacional, assistiremos a profundas mudanças com uma crise muito grave na Europa e os impactos da ascensão chinesa no campo geopolítico. Dentro do Brasil, embora o Governo Lula não tenha tomado medidas diretamente anti-capitalistas nos oito anos em que passou no poder, sabemos bem que quando o assunto é Capitalismo, as coisas são bem mais paradoxais do que parecem; a dinâmica impressa nos últimos anos por Lula não importou apenas em crescimento econômico, mas também em fortalecimento do emprego e da renda, enquanto os próximos anos tenderão a obrigar o Governo a fortalecer o próprio mercado interno, o que alterará a correlação de forças entre as classes sociais. Por ora, a posição ambivalente do PT é sustentável, mas resta saber se ele será capaz de administrar as mudanças que ele próprio provocou o que, em outras palavras, significa que o partido precisará tomar uma decisão sobre a qual lado ir e em política, naturalmente, não existem espaço vazios. O debate é longo e ingrato.
P.S.: E dois assuntos ainda restam por resolver, mas que pelo jeito devem ficar para o próximo Governo: A decisão sobre a extradição de Cesare Battisti - a menos que aconteça uma reviravolta nos próximos dias, o que não é impossível - e - aí é certo - a escolha do novo ministro para o STF, assunto pendente desde a aposentadoria de Eros Grau, em Agosto deste ano. Ambas as decisões, concernentes à área jurídica e misteriosamente proteladas, somadas às escolhas do Governo Lula para o STF lançam boas questões sobre as dificuldades da cúpula petista em digerir problemas jurídicos ou judiciários. Esse é um assunto que mereça um post específico.