Na quinta-feira última, ocorreu o sétimo grande ato pela redução das tarifas de ônibus em São Paulo. Trata-se de um intenso processo de mobilização contra a política de transporte do atual governo municipal da capital paulista, o que invariavelmente resvala em um embate direto contra toda lógica do projeto que há quase oito anos dita os rumos da maior cidade do Brasil. O atual mandatário de São Paulo, Gilberto Kassab, surge como o improvável vice de José Serra nas eleições de 2004, assume como vice e, após um ano, ascende à chefia da principal Prefeitura do país, com a esperada saída de cena de Serra para disputar o Governo do estado em 2006 - dentro de uma estratégia que visava à Presidência da República em 2010, projeto que, como sabemos, fracassou há alguns meses. O Kassabismo, como já debatido exaustivamente por aqui, é a reterritorialização definitiva de São Paulo, afinal, não é possível conceber uma amálgama de projetos conservadores maior do que ele: Um pouco da direita "empresarial" ao estilo Afif, o velho Malufismo, o espectro do demismo e a frieza gerencial tucana.
Em São Paulo, ergueu-se um modelo desumano de cidade durante a segunda metade do século 20º, a mais perfeita e acabada expressão urbana do Regime Militar: Uma urbe centrada no transporte individual, no isolamento da massa trabalhadora mal-paga nas periferias e entristecida em tons cinzas e duros. As tentativas humanizadoras de dois governos de esquerda na era democrática tombaram diante da insuficiência dos projetos frente à complexidade do consenso político do núcleo duro local. A cidade, neste exato momento, está esgotada, vítima dessa camisa-de-força urbanística, na ausência de projetos à altura de suas demandas e na obstinação em manter tal projeto em curso. O aumento das passagens de ônibus para R$ 3,00 só segue uma trajetória de reajustes altos de um serviço que está esgotado há alguns anos, mas que no Kassabismo chega a um nível considerável de sucateamento, o que levou à onda de protestos em questão. Esse ato em específico narrado aqui atraiu quase cinco mil manifestantes para a frente da Prefeitura, o que marca um fortalecimento do movimento, um marco importante depois da dura repressão promovida pela Polícia Militar paulista e a Guarda Civil Metropolitana - devidamente coberta neste post lapidar do Tsavkko sobre o 17 de Fevereiro.
A grande questão que se impõe diante dos nossos olhos, para além da manutenção paranoica de um modelo de urbano insustentável - ou mesmo das agruras da repressão e do policialismo - é o consenso que se constrói no país e que tem, pelo seu lado, normalizado variadas formas de relação e convivência francamente opressivas que encontram lastro histórico seja na Ditadura ou em algum ponto mais longínquo da nossa vida enquanto coletividade: Não há indignação, Kassab é, hoje, um quadro disputado a tapas pelas principais forças políticas do país. Em vez de falarmos nesse consenso como elemento de manutenção de algum entulho histórico, equívoco elementar entre equívocos elementares dentre os decorrentes de uma compreensão linear do tempo - que posiciona, por sua vez, a História como uma espécie de marcha forçada -, é preciso trazer essa questão para o terreno da imanência, para o inescapável aqui-agora; não é de manutenção de nada que falamos, mas de um produtor atual de autoritarismo, logo, de obstrução ou mesmo captura da vida por meio do esvaziamento da politicidade - e da possibilidade de problematização e questionamento das coisas inerentes à vida comum, reduzidas cada vez mais a um gerencialismo tacanho.
Essa grande contemporização que se viu, há pouco, com o aprofundamento da aliança entre PT e PMDB e se adensou nos primeiros meses do Governo Dilma ascendem uma luz amarela relevante em relação a uma bola que temos levantado por aqui: O PT produziu mudanças incontestáveis nos últimos anos, mas um dos desfechos possíveis para essa história é ele ser engolido pela situação que criou e padecer esvaziado de seu potencial. A tentativa de aproximar Kassab da base aliada - seja no PMDB, no PSB ou no novo PDB - para desestabilizar o esquema demo-tucano faz algum sentido, mas ele não esgota o direitismo, ao contrário, apenas atinge um de seus tentáculos externos, sem deixar de trazer, paradoxalmente, para dentro do intrincado sistema governista um elemento ele mesmo direitista. Isso é parte da conversa que eu iniciei aqui no post anterior e que rendeu este belo post do Bruno Cava, em relação ao qual eu concordo com grande parte das assertivas e das preocupações, embora não seja tão pessimista quanto à situação atual (o que não quer dizer que eu esteja otimista também) e seja mais cético quanto ao peso da responsabilidade de Lula nisso: A proposta de Governo atual, sob a égide da Carta ao Povo Brasileiro, já é, em si, marcada por uma articulação complexa que caminha no limite entre a contemporização total e a negociação com variados setores, item que Lula, apesar de vários arranhões, conseguiu administrar sem cair em uma conciliação geral, embora não tenha conseguido afastá-la por completo também, o que não torna menores suas responsabilidades sobre o que se passa agora.
Apesar dessas nuvens negras no horizonte, o posicionamento de inúmeros parlamentares petistas nas mobilizações contra o aumento das passagens e suas declarações públicas contra o Governo Kassab são relevantes e, esperamos, conseguirão frutificar daqui a um ano na construção de uma alternativa eleitoral verdadeira ao projeto atual - em uma briga dura que passa, aliás, pela superação do coro de contentes dentro do próprio partido. O papel de ativistas das mais variadas espécies precisa, é claro, ser alheio a todo o jogo político-institucional, o qual deve ser reduzido a mero instrumento: É necessário se voltar ao que realmente interessa, a saber, mobilização, atuação, problematização. É preciso pôr o altar do consenso abaixo e isso só é possível de se fazer atuando nas ruas e nas diversas (info)vias da vida.
P.S.: As fotos que ilustram este post são do meu grande amigo Bruno Pegorari que fez essa bela cobertura fotográfica especialmente para O Descurvo.
* um agradecimento ao Paulo Paiva pela revisão ortográfica.