sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Rússia, Setembro de 93


(Setembro de 93-- a morte prematura da democracia russa)

Há dezessete anos atrás, estava em curso na Rússia o episódio que ficou conhecido pelo eufemismo de "Crise Constitucional" - na verdade, um Golpe de Estado clássico e manjado, promovido por Boris Yeltsin quando ele se viu diante de uma reação institucional à sua terapia de choque; o  termo "crise constitucional", além de pomposo, é um falseamento do que aconteceu: simplesmente o Presidente decidiu passar por cima da Constituição e do Parlamento para exercer o seu mando, a despeito dos custos humanos que isso representasse. Se havia crise ali, ela era de natureza econômica e social -  e com o golpe, se tornou política também. Como quem tem padrinho não morre pagão, o aliado do ocidente Yeltsin, tornou-se apenas um chefe de Estado envolvido em uma reles "crise constitucional" - fosse um secretário-geral da União Soviética fazendo o mesmo e seria transformado em pária internacional, acusado de genocídio. 


Não, aqui não se encontra nenhuma apologia ao sistema soviético, muito pelo contrário, o ponto é outro porque o buraco é mais embaixo: Estou fazendo uma condenação incondicional do autoritarismo, seja lá sob qual bandeira sobre qual ele se encontre - ou em que aliança -, o que é sim, sobretudo, uma crítica de como as ideologias - e as cortinas de fumaça pelas quais elas operam - levam as pessoas a relativizarem aquilo que está de acordo com os fins do plano maior que elas defendem. Isso não é um fenômeno exclusivamente russo, mas aquelas terras sofreram como poucas por conta disso; a origem, claro, está na tradição filosófica hegemônica do Ocidente: Existe uma razão transcendental em relação a qual só alguns iluminados têm acesso e isso, em maior ou menor gradação - de uma forma mais ou menos tosca -, lhes autoriza a designar a Ordem.


Existe uma tese, cujo argumento central é que houve um ponto de inflexão histórico na Rússia com a queda da URSS, o que teria alterado substancialmente as relações entre Estado e a multidão, o que eu discordo. A mudança ocorrida na Rússia pós-soviética foi nos acessórios de dominação na medida em que os meios do Poder Político designar a ordem do sistema econômico mudou, mas isso não alterou em essência aquela forma de pensar e executar projetos: Os iluminados simplesmente chegaram à conclusão que a economia planificada é uma má ideia e que o  mercadismo conduziria a Rússia ao paraíso, daí, aplicaram o projeto a qualquer custo. Nada de novo sob o Sol. É uma lógica muito parecida com aquela que Stalin e seus burocratas executavam as metas dos planos quinquenais. Se adotarmos a representação como paradigma, ficaremos presos em um debate falso sobre qual foi o verdadeiro mal necessário na história russa, quando, na verdade, as políticas econômicas soviéticas e a terapia de choque de Yeltsin/Gaidar nutrem um viés identitário quanto ao que realmente importa: Os procedimentos de elaboração e aplicação do projeto. Sim, são as duas faces da mesma moeda.


Antes que se diga qualquer coisa, a rebelião que opôs o então Soviete Supremo à Presidência da Federação Russa foi liderada por duas figuras insuspeitas de stalinismo: O líder do Parlamento, o economista Ruslan Khasbulatov - um cara que já criticava duramente o modelo econômico soviético enquanto Yegor Gaidar ainda era um intelectual do Partido, não só reproduzindo a linha oficial como censurando seja lá quem fosse quando comandava um naco importante da imprensa soviética - e o vice-presidente Iury Rutskoy, um militar popular e herói da Guerra do Afeganistão que depois se aventurou na carreira política. Ambos foram contra o Golpe da Linha-Dura e ambos faziam parte do staff - ou melhor, do balaio de gato - que girava em torno de Yeltsin até ele decidir um lado para onde imbicar - e não foi o da democracia, certamente.


A Terapia de Choque russa, como o Rutskoy bem definiu, tratava-se de genocídio econômico: O Governo russo resolveu praticar um "ajuste econômico ortodoxo", o qual consistia em uma singela mercadificação total - e acelarada - da vida posto em prática por meio de privatizações fraudulentas - o que produziu, entre os ex-burocratas do partido, uma boa quantidade de bilionários -, acabando com a rede de proteção social abruptamente, o que desembocou em uma súbita diminuição da expectativa de vida - e das condições de vida de um modo geral. O PIB contraiu e se concentrou.  O parque industrial russo, construído em grande parte no período soviético com os recursos que o Partido - enquanto grande corporação nacional - extraía da mais-valia dos trabalhadores, passou, sem mais nem menos, para mãos privadas que evidentemente não reembolsaram os cofres públicos - o que recentemente, com a Crise Mundial, resultou em mais bizarrice, com os recursos públicos sendo usados para cobrir os rombos dos oligarcas, o que resultou em uma dupla perda para a sociedade russa, como acentua o analista russo Boris Kagarlitsky (por coincidência um dos ativistas presos há dezessete anos atrás).

A dita crise, em si, é fruto de todo um tensionamento entre Yeltsin e o Parlamento, primeiro para tentar aprovar seu braço direito, Yegor Gaidar como primeiro-ministro ainda em dezembro de 92 e, depois, no verdadeiro cabo de guerra ao longo de todo ano de 1993, quando o Parlamento se negava a aprovar as emendas constitucionais exigidas pela administração - e depois de convocar uma nova constituinte - enquanto Yeltsin, por meio de atos unilaterais, declarava um Estado de Exceção - denominado como "regime especial". A confusão persiste contando com tentativa falha de impeachment de Yeltsin no Parlamento no começo do ano e segue até quando o Parlamento o cassa e ambos, Executivo e Legislativo, marcam eleições para meses diferentes de 94 - a situação evoluiu para o clímax, quando Yeltsin, em nova medida, "dissolveu" o Parlamento e  "convocou" novas eleições já no final de 93, fazendo o legislativo federal respondendo com a declaração de nulidade da decisão e a ordem de demissão de ministros chave.

A partir daí, protestos eclodem em toda Rússia, a tensão aumenta nas repúblicas separatistas, o Parlamento passa a ser protegido pelos seus simpatizantes enquanto, de lado a lado, articulações são feitas nos bastidores para cooptar as Forças Armadas, até ali divididas. Rutskoy e Khasbulatov perdem a briga e a Casa Branca (sim, o Soviete Supremo ficava num edíficio chamado Casa Branca...) é cercada por uma divisão de tanques que a bombardeia até os líderes do Parlamento capitularem e se renderem derrotados. Um número até hoje não calculado de manifestantes, em geral anti-Yeltsin, morreram nas ruas moscovitas, vítimas da polícia e do exército. A partir dali, o Presidente Russo, torna-se senhor absoluto do país, dissolvendo o parlamento e promovendo as reformas que desejava, via referendo - cuja apuração foi menos duvidosa apenas que as presidenciais de 96, vencida pelo mesmo Yeltsin.

O líder russo, naquele momento, removeu as amarras institucionais que lhe seguravam e, com a simpatia dos oligarcas e o comando das Forças Armadas levou a cabo seu programa, tudo isso sob os auspícios do bom-mocismo liberal - que aqui, pelas circunstâncias, toma a feição de "remédio amargo" - e do apoio do ocidente, apesar dos pesares. O PIB russo contraiu até os fins da década de 90, enfrentando ainda a grave crise de 98, enquanto, simultaneamente, centenas de milhares de pessoas morriam na Guerra da Chechenia. O movimento que gera Putin no fim dos anos 90 é simplesmente o de um grupo pró-modernização conservadora ligado a Universidade de São Petersburgo, plenamente alinhada com todo o processo narrado; era necessário assumir uma agenda mais autônoma nas relações exteriores e pensar no "desenvolvimento nacional" - propriedade grilada, propriedade a se desenvolver -, com um pouco mais de arrocho ali ou acolá contra os direitos civis. A, digamos, propaganda negativa reservada ao atual primeiro-ministro russo atual  é apenas uma cortesia de Washington pela sua política externa, no duro, ele é o sucessor de Yeltsin sem qualquer contradição nisso. A Rússia de hoje é o cruzamento de um pseudo-liberalismo ao pior estilo Veja com uma represssão semelhante - pior, para ser mais justo - ao Brasil dos anos 70; de certa forma, lembra o Chile de Pinochet e não há como entender isso sem pensar nos eventos que aconteceram em 1993.  

P.S.: Pravda na Pravdu, do grupo de rock DDT é uma obra que ilustra bem o momento. O título da música em russo, traz um trocadilho genial com a palavra "pravda" - que significa "verdade" (em sentido factual) e também é o nome do jornal oficial do Estado russo/soviético desde tempos imemoráveis (na verdade, o jornal foi fundado com o nome de Zvezda, por Trotsky). O trocadilho funciona melhor em russo porque não existem artigos: Em português, seu título seria O Verdade sobre a Verdade. O vídeo abaixo é muito bom.


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