quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Sarkô, os Ciganos e a Previdência

(Manifestação contra a Reforma na Previdência em Marselha -- a ponta do iceberg da França contemporânea; AP, via Vermelho)

O atual presidente francês, Nicolas Sarkozy, novamente fez questão de jogar as luzes dos holofotes sobre si mesmo da pior maneira: Depois de mover céus e terras em favor da proibição do uso da burca - aprovada ontem pelo Senado -, ele determinou, por decreto, a expulsão de algo em torno de uma centena de ciganos para Romênia e Bulgária. Ambas as medidas são uma tática comum de Sarkô: tomar decisões de impacto, de natureza demagógico-xenofóbica, batendo em minorias e, com isso, se afirmar como o líder que  uma classe média francesa, cada vez mais envelhecida e insegura, precisa, ao passo que desvia os olhos dos cidadãos  dos assuntos relevantes do país, especialmente, de uma economia que está travada por sua falta de visão e capacidade.


Espanta-me muito como o mandatário francês, desde os tempos de Ministério do Interior, faz uso desse mesmo expediente, de forma extenuante, sem arcar com nenhum ônus político relevante, embora confesse que me espanta mais ainda de qual expediente estamos falando: A construção de uma cortina de fumaça ideológica por meio do uso da força vigilante-coercitiva do Estado contra minorias vulneradas e discriminadas dentro da coletividade na qual exerce o mando, aspecto que qualquer um que conheça minimamente a História do Século 20º sabe que se trata de uma verdadeira inerência do Fascismo - ainda que Agamben  vá nos advertir que essa conclusão é moderada demais. Aliás, mais do que espanto, causa estranheza saber que Sarkozy é de família húngara por parte do pai, enquanto sua mãe, embora católica convertida, viesse de família judia sefardita -, ou seja, quem desempenha essa política é um sujeito que definitivamente não é o que se pode chamar de arquétipo de francês étnico.


O Governo Sarkozy, por exemplo, enfrenta protestos em relação à Reforma da Previdência proposta pelo atual governo, que busca aumentar a idade para se aposentar de 60 para 62 anos - ainda que a uma primeira vista, partindo do fato que se vive em média 80 anos naquele país, possamos concordar que a idade para aposentadoria poderia mesmo ser aumentada, aparências enganam mesmo e o buraco é mais embaixo: Não há como falar em Previdência sem falar de equilíbrio atuarial do sistema, tampouco podemos falar do último sem pensarmos nas condições gerais da economia; a República Francesa, hoje, está particularmente engolfada pela crise mundial porque a supervalorização do Euro joga uma pressão grande demais sobre sua economia; aquilo que os franceses perdiam para o mundo era compensado com alguma sobra pelo mercado europeu, o que não acontece mais agora. Isso enfraquece a economia do país, seja pelos efeitos mediatos sobre a produção como pelo desequilíbrio imediato que isso causa sobre a sua conta corrente.


Por outro lado, não há uma atitude séria - tampouco consciência - por parte de Paris no sentido de forçar Bruxelas a tomar as atitudes concretas para a resolução de nós górdios elementares da política econômica comum. Não, não existe mais como pensar em solução para problemas franceses sem pensar em políticas europeias. Para além disso, raciocinar partindo de uma analogia como "a idade é mesmo baixa demais se comparada com outros países do continente", sem pensar que potencialidade real de gerar recursos para manter tal condição, é admitir uma via na qual o corte de coisas maiores podem se justificar com uma facilidade enorme. Os franceses, no entanto, estão bem mobilizados quanto a isso, a ameaça ao seu sistema de bem-estar social é ainda mal vista, apesar de que, reitero, as pessoas convivam, com cada vez mais naturalidade, com os mecanismos de vigilância e controle do Poder Político sobre as minorias étnicas e religiosas por aquelas bandas; é sobre esse aparente paradoxo da sociedade francesa que Sarkô traça seu projeto de poder personalista e paranóide, promovendo uma espécie de circo romano - onde, literalmente, cristãos são jogados aos leões, enquanto o império dá mostras de fraqueza.



2 comentários:

  1. O fato de muitos franceses não concordarem com tal decisão deixa tácito que, diferente do que deveria ser, os governantes não são representantes fiéis do povo. Esse ocorrido apenas realça o momento caótico no qual estamos vivendo por causa desse sistema falho!
    Precisamos não de homens que saibam apenas governar,mas de homens sábios que saibam aplicar sua sabedoria e transformar isso em uma forma de governo justa, real e imparcial.

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  2. Rosi's Ribeiro,

    Você faz bem em apontar para o caráter sistêmico do problema, mas a grande questão aqui é: Por uma perspectiva política, será possível haver uma verdadeira "fidelidade" onde há "representação"? Mais até do que isso, o que será esse elemento "povo" e qual a sua validade na medida em que desconsidera a multiplicidade do corpo social? Eu vejo algumas dissonâncias bem claras aí e falo de postulados do pensamento político ocidental, o ponto é que podemos tentar formular juntos qual seria o limite para essa dissonância e se isso se enquadro no caso Sarkozy - eu penso que sim, infelizmente, na medida em que ele não consegue construir condições para a liberdade e volta-se, diante de sua própria inoperância, para converter tais minorias em bodes expiatórios. Aí, você sai até mesmo do problema da construção de uma "representatividade fiel" e rompe com a própria segurança coletiva, exercendo o mando de forma arbitrária, buscando transformar a coletividade num corpo uniforme, desconsiderando a sua multiplicidade para construir uma doutrina de homegeneização, desejando um significante vazio que se constitui na imagem do francês ideal (seja lá o que isso for, mas com certeza Sarkô não o é).

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