terça-feira, 7 de setembro de 2010

Sete de Setembro

(Independência ou Morte! de Pedro Américo -- o registro histórico como exercício de imaginação)

O Brasil completa hoje seus 188 anos de independência declarada e formal, uma história marcada por duros percalços, que começa no dia em que um príncipe estrangeiro - por coincidência o herdeiro do trono da metrópole - se insurge, pondo-se a favor dos interesses da elite local em um negócio que, no fim das contas, foi excelente para os ingleses. A formação do Brasil enquanto nação é confusa, entre um enorme contingente de escravos negros - cuja cidadania e a própria humanidade era negada pelo sistema vigente -, de brancos pobres e de uma elite que vivia relativamente bem, o Estado passa boa parte do século 19º em busca de construir uma identidade, livrar-se das ameaças estrangeiras e do secessionismo, apoiado na figura benevolente do Imperador.


A aliança entre o Imperador e a Oligarquia mais rude e exploradora do Norte-Nordeste cria um pacto político na desdita, enquanto no Sul, a luta dos farroupilhas prossegue. A Guerra do Paraguai, no entanto, tem utilidade dupla, seja para cessar de vez a luta dos revoltosos sulistas, pela imposição de um inimigo em comum, seja por ter posto termo à última grande ameaça estratégica ao Império e à integridade nacional - geopolítica, claro. Mortos dois coelhos com uma cajadada só e libertos os escravos pela pressão britânica, a elite nacional pensa numa república - tão deles e tão pouco do povo que deveria ter outro nome -, se usa dos positivistas e de seu projeto leopardiano e joga o Imperador ao mar para compensar suas perdas construindo um projeto agroexportador autista e desdenhoso. A República que nasce atribulada é um grande acordo de vontades entre produtores rurais, agradável àqueles que participam, mas que ainda deixa boa parte da massa de fora - há quem diga, que no fim das contas, excluiu mais do que o Império.


É na crise que o Brasil acha um rumo, da quebra do país em 29 surge as condições para que as inquietações republicano-reformistas fossem postas em prática sob a batuta do despotismo varguista que, a bem da verdade, dura quinze anos mesmo. Vargas pare o primeiro projeto nacional conciso. O país se industrializa, mas o faz de maneira autoritária, sem estender direitos trabalhistas para os camponeses nem fazer reforma agrária. Trata-se de uma articulação capital-trabalho um tanto mais dura do que aquilo que o nacionalismo democrático poderia aceitar e um tanto mais leve que um regime fascista gostaria. Os comunistas brasileiros - nascidos, curiosamente, dos anarco-sindicalistas das greves operárias do início do século - e os fascistas brasileiros - os integralistas - são esmagados. E assim vamos, sob os auspícios dos bom-mocismos e dos ventos do pós-Guerra, outorgamos uma "democracia", enquanto a velha elite e as potências da guerra fria se degladiam e nos dividem em seus plano mirabolantes. 


A crise do início dos anos 60 era tudo que precisavam, o álibi comunista novamente cai como uma luva e a elite brasileira, com apoio americano, usa os seus militares para um golpe que joga o país na contra-mão da história. A esquerda, apoiada no seu vanguardismo sem tempo nem lugar torna-se presa fácil, no máximo, excelente álibi para os seus inimigos. São vinte e um anos onde o projeto de futuro é dinamitado, restando um país mais autoritário, mais dependente e mais corrupto. A falência do Estado nacional-desenvolvimentista - na sua vertente verde-oliva - é o marco do início de um novo Brasil, permitindo a ascensão de novos atores políticos ao mesmo tempo em que tudo é mantido em suspenso: A multidão não tem consciência nem força para construir uma nova ordem e a elite, enquanto cria uma saída, deixa tudo em suspenso. O Brasil dos anos 80 é terra de ninguém e é surpreendente que, ainda assim, uma Constituição como a de 88 tenha sido parida. De um ponto de vista efetivo, o Partido dos Trabalhadores é a única organização de porte, mesmo com seus rachas, idealismos e contradições, que se presta a enfrentar e a negar a transição conservadora. 


O Brasil dos anos 90 é um país atrasado politicamente, cujas condições objetivas distópicas o deixa diante de um paradoxo no qual se vemos um Collor na Presidência convivendo com uma das Constituições mais modernas do Mundo. O país quebra. Surge então FHC, o princípe - ou seria o Rasputin? - de uma nova era prometendo mudar tudo sem mudar nada, todos ganhariam, o capital estrangeiro - o novo renascimento pela via da mundialização do capitalismo -, os bancos e quem sobrasse o discurso já tinha um saída pronta: Eram os culpados pela própria desgraça, sua desdita nada tinha a ver com o processo de privatização no qual pagávamos para que comprassem nossas empresas estatais nem com a abertura colonizada que faziam. O país entra o século 21º perdido. A isso se opõe o PT e é ele, numa mudança de orientação interna e numa aliança com os nacional-desenvolvimentistas, que chega ao poder em 2002.


O Brasil de Lula e do PT é assunto para ser lido e entendido em razoável gradação apenas pelas próximas gerações. A retomada do desenvolvimento econômico, revertendo uma curva de mais de vinte anos, somado a uma inédita política de redistribuição de renda, colocam o país numa situação que jamais esteve. Nem o próprio PT, em seus tropeços e equivocos vários, é capaz de compreender as mudanças que ele mesmo foi um dos principais agentes deflagradores. Novas relações de sociabilidade surgem entre o que era um lumpenzinato e o que eram os trabalhadores famélicos. O Brasil é outro, a política externa de Amorim diminui a distância que a ideologia insistia em criar com a América Latina e aumentar em relação à África, aos árabes e aos asiáticos. Existe uma perplexidade tanto à direita quanto à esquerda, enquanto os primeiros só percebem tarde demais que suas avaliações eram puro lixo - e que não entenderam nada do que se passa -, os segundos encontram-se chocados por terem parado no poder e com o choque da realidade e o fim de velhas - e doces - ilusões - finalmente o Brasil se parece com uma nação e com isso, tem seu proletariado real, com demandas e sentimentos reais, o ser de esquerda tem seu centro de gravidade deslocado do mundo das ideias para uma realidade imediata e crua. 


Hoje será o último Sete de Setembro com Lula, mas possivelmente não será o último com o PT no Poder. O Brasil apresenta uma das mais baixas taxas de desemprego dos últimos anos e um dos mais altos crescimentos econômicos. O momento atual dá um significado pretérito que este dia jamais teve - ou mereceu ter - em seu nascedouro. O Brasil de hoje se faz esfinge e nos devorará em pouco tempo se não o entendermos  - e, para tanto, é necessário nos livramos dos esquemas mentais idealistas que nos viciaram ao longo do tempo. Seja como for, paremos e escutemos: Ao fundo, toca a Aquarela do Brasil.

13 comentários:

  1. Parabéns pelo excelente post, que tão bem comemora o dia pátrio!
    O texto merece ampla divulgação,nesses tempos em que os partidos soi-disant de esquerda se esquecem de fazer a essencial educação política,sem a qual ficamos desarmados e imbecilizados diante da brutal propaganda midiática.
    Bjs.
    Aline

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  2. A pintura é linda, sem dúvida.

    Elis é fantástica, mas o recurso cênico de "contextualizar dentro de uma visão histórica" esse samba-exaltação me soa datado. Assim como os berros que se tornaram marca registrada (não que ela não berrasse com graça algumas vezes). O que Elis tem de musicalmente melhor não tá nisso aí. a militância política cobrou o seu preço, artísticamente falando. Sou mais Águas de Março, Upa Neguinho, Arrastão, Atrás da Porta etc...

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  3. Hugo
    Vc conclui acertadamente, o seu precioso texto:"é necessário nos livrarmos dos esquemas mentais idealistas que nos viciaram ao longo do tempo."
    A meu ver,temos que voltar a ler os clássicos da economia política e, a partir de categorias dialéticas, lançar um olhar histórico profundo sobre a formação econômica do Brasil chegando aos dias atuais. E reler aqueles autores como Ruy Mauro Maurini, Darcy Ribeiro, André Gunder Frank e tantos outros que pensaram o Brasil a partir do Brasil.
    Vc.escreve bem, porque pensa bem.É sempre um contentamento ler o que você escreve.
    Maria Lucia

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  4. Marola
    Se me permite,"contextualizar dentro de uma visão histórica" é sempre necessário,quando se quer fazer uma crítica profunda dos fatos econômicos e políticos de qualquer país.
    Fora da História não há salvação.Você cai direto no mito, na lenda e na propaganda.
    Precisamos de intelectuais que nos dêem conta do nosso país, visto pela nossa ótica e levando em conta a existência da maioria da população e não apenas das elites que tradicionalmente ocupam o poder, desde os primórdios da colonização.
    Isso de intelectuais avant-garde,de ultra modernos ou pós-modernos acabou se revelando uma tremenda enganação.
    Lembrai-vos da Teoria da Dependência,formulada por FHC e Enzo Faletto, hoje devidamente identificada como um tremendo engodo.
    Ramiro Tavares

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  5. Aline,

    O que é isso, a gente faz o que pode por aqui, você é que é sempre bondosa com esse humilde escrevinhador - aliás, aproveitando o ensejo, a ideia de partido de esquerda, na acepção socialista da coisa mesmo, era a de existir enquanto braço do movimento de emancipação, pronto a não se fechar em si ou na comodidade do poder Estado, mas de cumprir a missão de, literalmente, "roubar o fogo dos deuses", no caso, trazer a política novamente para a Praça Pública - de onde nunca poderia nem deveria ter saído - para, daí, engendrar um projeto libertador. Lutar contra as superstições e a névoa ideológica produzida pelo poder dominante é só uma delas - e, sim, ninguém faz mais isso no Brasil de hoje que a própria mídia.

    beijos

    P.S.: Aline - e isso vale para vocês todos -, dá para usar a opção OpenID para colocar o seu nome para não precisar embaixo algo que entrou como anônimo - é só para facilitar mesmo; de todo modo, já pensei em usar intense debate por aqui, mas não apesar do formulário ser mais simples, o modo como ele organiza os comentários é ruim.

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  6. Ora, meu caro Marola, foi só uma deixa espirituosa no final :-) o que importa aí é a composição do quadro mesmo, pintado sem o autor conhecer a cena em que se sucedeu o acontecido, o que é bastante revelador do processo ideológico de construção da nossa identidade nacional.

    abrazos

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  7. Maria Lucia,

    Obrigado, assim eu fico até acanhado...Mas, claro, creio que no Brasil nos acostumamos - até pela maneira como a Academia guarda uma distância em relação ao cotidiano da nossa sociedade - e, por fim, nos viciamos em certos esquemas de pensamento que nos levam a idealizar o que deveria estar sendo desvendado - agora, mais do que nunca, não dá mais para continuar nesse barco, grande parte dos intelectuais de esquerda que o digam...

    beijos

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  8. Ramiro,

    Sim, a História é fundamental. Creio que os bons pós-modernos concordam com isso, ainda que deem outro enfoque para ela - mas existe a vulgaridade e em relação a ela, só nos resta criticar e bater forte. Temos de pensar também naqueles que surgem de meios intelectuais que pensam o mesmo da História - como o nosso querido FHC - e se prestam ao esvaziamento dos significados e ao encobrimento da realidade.

    abração

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  9. "Se me permite,"contextualizar dentro de uma visão histórica" é sempre necessário,quando se quer fazer uma crítica profunda dos fatos econômicos e políticos de qualquer país."

    Me referi apenas à estética do show. Quando Elis resolveu carregar o andor do engajamento político na sua atividade musical, acho que o resultado não foi tão bom em comparação ao restante do seu trabalho, mas isso é apenas a minha opinião.

    Não quer dizer que eu despreze a arte engajada políticamente, uma Mercedes Sosa, um Vítor Jara, um Chico Buarque, mesmo a Elis em alguns momentos, souberam interpretar muito bem em seus trabalhos os anseios de uma inteira geração de se ver livre de regimes discricionários. Agora, tem que ter competência pra fazer isso bem, senão acaba virando mera propaganda ideológica (quaisquer que elas sejam).

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  10. Hugo, entendo o seu post como uma homenagem à data em que se comemora a independência de nosso país. Com esse propósito, além de produzir uma série de pertinentes reflexões, o enriqueceu com a reprodução do famoso quadro do imaginativo Pedro Américo + o videoclip da Elis. Minhas considerações se prenderam mais a esses penduricalhos, que sem dúvida são bem-vindos e que se encaixam perfeitamente na mensagem postada. Assim o fiz, mais no intuito de ampliar o âmbito da discussão, dando uma cutucada em uma de suas preferências estéticas. Nada malicioso, seu texto, como de hábito, é muito instigante e tenho certeza que despertou em seus leitores o maior interesse.

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  11. Marola,

    Eu entendi o que você quis dizer e agradeço a cutucada - tranquilo, meu velho, aqui não tem crise. Mas sobre a Aquarela do Brasil, o que eu quis fazer não foi exatamente um elogio à obra de Elis - em outra oportunidade o farei, certamente -, nem necessariamente uma contextualização dentro de uma visão histórica - não ali, eu o fiz até a frase anterior -, mas foi literalmente uma outra provocação em cima, justamente, do "em si" da letra da música, que por meio de uma narrativa panarômica busca expressar o significado do país, usando-se, também, de um exercício de imaginação - embora aqui não seja um registro histórico ccmo o quadro do Pedro Américo, mas, à sua maneira, ele cumpre uma função equivalente no seu campo estético e dentro da lógica que obedece. Sim, foi mesmo um chiste em cima de maneira como pensamos o país - e como isso tem a ver com a sua própria construção - e a maneira como usamos a imaginação - logo, o próprio resultado disso, em relação ao qual eu não entrei, embora tenha deixado a bola no ar.

    abração

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  12. Vc tá em paz com o academicismo bem arrumadinho do Pedro Américo no Grito do Ipiranga? Ou com a retórica exaltada e musicalidade delirante do samba de Ary Barroso?

    Ou é o tipo de cara que sente necessidade imperiosa de fazer fundadas objeções só pra marcar território e não ser tomado por idiota?

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  13. Marola,

    Não estou em paz com nenhum dos dois :-) no entanto, meu problema está bem antes do academicismo de um ou da retórica exaltada do outro: O que eu creio que valha a pena fazer, pelo menos, uma pequena reflexão a respeito é o discurso ideológico que se expressa na materialidade de ambos, concebendo o processo de independência do quadro ou a descrição do Brasil como na música. De resto, eu já me conformei com a minha idiotice e não faço mais nada para não ser tomado como um idiota, apenas deixo a vida seguir.

    abração

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