domingo, 8 de agosto de 2010
Crise Mundial: A Situação Húngara
A Hungria é um dos países mais singulares e importantes do Leste Europeu. Localizado numa região que os romanos denominavam por Panônia, o país nasce por volta do século 11º, quando foi ocupado pelos magiares, etnia originária do leste dos Urais, que se estabeleceram lá definitivamente, fundando um Estado ao mesmo tempo em que desenvolviam sua cultura bastante particular - baseada na relação paradoxal de sua origem asiática, sua língua não-ariana com uma constante busca por aproximação com a Europa Ocidental, movimento marcado pelo uso do alfabeto romano e adoção da fé católica romana. Hoje, a Hungria, assim como boa parte dos Estados do Leste Europeu, encontra-se no olho do furacão da atual crise econômica mundial. Dentro do panorama geral, isso tem a ver como a crise atingiu particularmente a Europa e, especialmente, os Estados ex-socialistas que construíram um regime capitalista nos anos 90. A situação e os recentes acontecimento no país, inclusive, nos ajudam a entender a situação do país.
De Estevão I e até o momento atual, a Hungria passou por momentos que, apesar das turbulências, não resultou na extinção de sua integridade, apesar da perda de autonomia em algumas oportunidades, ou de sua cultura: Panoramicamente, temos um período de considerável autonomia durante a Idade Média - abalada apenas pelas invasões mongóis -, a decadência nos meados do século 16º que a conduziu lentamente para a mão dos Habsburgo - e, por tabela, à dominação austríaca -, as novas lutas por autonomia que a levaram à posição de sócia-minoritária no Império Austro-Húngaro, o seu retalhamento no fim da Primeira Guerra Mundial, uma experiência socialista fracassada logo após, o Fascismo, a Dominação Soviética - e sua resposta, A Revolução de 1956 -, um socialismo sob a bota de Moscou e, depois, seu papel central no desmanche da Cortina de Ferro nos anos 80 até a reaproximação com o Ocidente, trazendo sonhos de liberdade e bem-estar, desfeitos rapidamente já nos anos 90 e postos definitivamente em xeque agora.
Diferentemente da Polônia, que após o Socialismo viu sua política ser monopolizada por forças conservadoras - quadro que permanece desde então -, a Hungria, depois dos abalos iniciais do fim da Cortina de Ferro, se encontrou num quadro não muito distante da República Tcheca ou da Eslovênia, onde uma centro-direita disputa o poder com uma centro-esquerda, tendo por diferencial, justamente, a perspectiva em relação ao que foi o Socialismo; enquanto essa centro-direita representam certos setores da sociedade ressentida pelo autoritarismo do período e da ideia de que se não fosse o Socialismo, eles teriam um padrão de vida semelhante ao do Europa Ocidental, a centro-esquerda expressa a visão daqueles que acreditavam que havia problemas, mas o regime não era intrinsecamente disfuncional - o que na Hungria, um país relativamente industrializado sob a economia planificada, não é difícil de encontrar.
Claro, no fim dos anos 80, o êxtase provocado pela possibilidade de bem-estar associado com liberdade - em suma, o discurso ideológico do Ocidente - provocou a desmoralização dos ex-comunistas e a saída se materializou na figura não dos liberais, mas dos nacionalistas do Fórum Democrático Húngaro, o que tem muito a ver com a Revolução de 1956; se naquele momento, os operários e a inteligentsia húngara se levantaram contra o modelo burocrático de socialismo soviético - e a própria ingerência praticamente imperialista de Moscou -, buscando, quem sabe, a materialização de um modelo semelhante ao da Iugoslávia de Tito e Kardelj, não existiram poucos setores que enxergaram naquele momento ímpar da História local um ato de resistência patriótica - e essa perspectiva foi devidamente trabalhada pelas forças anti-comunistas, afinal, ela realmente encontrava ressonância entre a massa, pois depois da degeneração das insituições e do próprio sistema econômico, o elemento nacional aparecia como ideia mais simples e clara para suprir o vácuo que se estabelecia.
O vento muda rapidamente quando o Fórum pôs em prática reformas liberalizantes radicais que fracassaram redondamente, abrindo espaço para a volta dos ex-"comunistas" ao jogo, dessa vez, na figura do Partido Socialista, que apesar de se posicionar como qualquer partido social-democrata europeu, reivindicou, de forma controversa, o legado do antigo Partido Comunista, a ponta de lança stalinista criada pelos soviéticos para administrar o país no pós-Guerra - e que de maneira totalmente submissa governou o país depois que os tanques de Moscou puseram abaixo a Revolução de 56, agora reduzida a uma mera reivindicação por liberdade, democracia e bem-estar, o que só o sonho do Projeto Europeu, no qual os socialistas se agarraram, poderia realizar; claro todos esses itens são da maior profundidade, mas nessa nossa época marcada pelo esvaziamento do significado das coisas, conceitos profundos como "liberdade" ou "democracia" são tanto mais indicativos de uma cortina de fumaça do que de qualquer radicalismo democrata-libertário.
A volta dos socialistas como força política organizada e efetiva não deve ser analisada por uma perspectiva vaga que parta apenas da indagação de como uma população que derrubou aquele peculiar sistema socialista, de repente colocou novamente seus antigos líderes de volta ao jogo, mas também de como se operou essa espetacular reorganização da esquerda "ex-comunista", voltando, rapidamente, ao posto de grande agente - o que aí já constitui um caso raro, pois falamos de forças de uma esquerda não necessariamente anti-comunista se reorganizando rapidamente, o que pode ser resultado de um processo de reforma que já deveria estar ocorrendo no interior do antigo partidão, apesar de sua postura stalinista, o que não deve ter sido suficiente para apagar todas as sementes de 56.
Curiosamente, a União Cívica Húngara (Fidesz), uma força liberal minoritária que se punha como alternativa entre nacionalistas e comunistas cresceu, ocupando o lugar do Fórum, largando mão, gradualmente, do seu discurso liberal para assumir-se como uma agremiação política nacionalista e desenvolvimentista - se antes os húngaros tinham nacionalistas que aplicavam políticas liberais, agora passaram a ter liberais que se assumiram nacionalistas, o que é marcado pela saída do Fidesz da internacional liberal para se alinhar com a internacional democrata cristã e o Partido Popular Europeu. As duas forças, socialistas e cívicos, se alternam no poder desde 1994.
A aparente astúcia dos socialistas em abraçar o Projeto Europeu, deixando seus rivais na posição de ressentidos e ultrapassados nacionalistas, foi sua desgraça maior nas eleições deste ano - na qual foram atropelados pelo Fidesz -, a prosperidade construída sobre a adesão à União Europeia produziu um consenso eleitoral assentado; seu crescimento nas legislativas de 2002 e 2006 rapidamente se tornou um pesadelo: O mesmo sistema que distribuia bondades quase que de forma ilimitada, repentinamente resolveu cobrar a conta de forma violenta, deixando os socialistas na posição de culpados, o que foi devidamente capitalizado pelo líder da oposição, o habilidoso Viktor Orbán - não por acaso, o atual primeiro-ministro do país.
Uma das vantagens dos húngaros sobre os gregos é a de que, felizmente, eles ainda não aderiram ainda ao Euro. A soberania sobre o mecanismo cambial não é solução para nenhum problema estrutural, mas é razoável se comparado com o engessamento por uma moeda única que serve a um projeto claro do grande capital europeu. Ter sua própria moeda significa poder usar o câmbio para não precisar realizar uma reforma tão drástica nas contas públicas - sim, por sua desvalorização. Para além disso, o déficit do país é pequeno. Mas o ponto não é esse, mas o recente e ousado movimento do Governo húngaro atual: Instituir uma tributação maior sobre o sistema financeiro, aplicando um imposto extraordinário sobre bancos e a bolsa, enquanto desonera pequenas e médias empresas.
Isso fez com que o FMI - que junto com o Banco Mundial e a União Europeia - entrou com um aporte de 20 bilhões em empréstimos de euros entrasse em pânico assim como as agências avaliadoras de risco - sim, elas, ainda elas - passarem a pressionar o governo local; os custos do reajuste húngaro deveriam pelo enxugamento do setor público - seja em subsídios de servidores ou no corte de programas sociais - e pelo oneramento do setor produtivo não pela tributação do setor financeiro - pois bem, o FMI, apesar dessa pequena Crise, continua pregando o mesmo receituário trágico de antes: Um complexo de medidas vorazmente pró-sistema financeiro. Trata-se de um belo exemplo do verdadeiro caráter dessa Crise, talvez melhor até do que as resoluções da recente cúpula do G-20: A bolha financeira, estourada prematuramente pelo belicismo americano -e as rachaduras no casco da União Europeia também - espalha os pedaços do sistema mundopor toda parte e a Ordem Global é incapaz de produzir saídas, pois as saídas, atentam contra a própria auto-sustentabilidade do sistema.
Os húngaros estão longe de resolver seus problemas. Vivem num continente superpopuloso e profundamente diverso etnicamente, onde discursos patrióticos, embora consista numa boa via ideológica de conquista da hegemonia, esbarram na profunda interdependência econômica e política - inclusive, entre agentes mais poderosa do que a nação dos cárpatos que tem as dimensões de Portugal. Por outro lado, os socialistas, que levando em consideração o legado do seu antigo Partidão, novamente se veem perdidos, pois passaram as últimas décadas apoiando-se num discurso que o desenvolvimento húngaro passaria pela aliança com um projetos interncionalistas que sempre se revelaram como formas de imperialismo veladas.
Ainda assim, as medidas do conservador Orbán são positivas - ainda que insuficientes isoladamente -, pois mostra que os pequenos da Europa podem não sucumbir a todas as exigências da banca - o que, na prática, significa, que a resolução dessa crise passa por evitar uma crise social aguda que só serviria aos interesses de uma extrema-direita e seu projeto suicida. Mais do que isso, a história húngara é também a prova viva de que não bastam crises em sistemas opressores, mas que isso deva ser aproveitado pelos agentes políticos libertadores - ainda que o projeto libertador, dessa vez, deva passar longe de qualquer messianismo de algum grupo ou de uma pessoa, o que definitivamente não é fácil, ainda que seja a única saída que eu julgo possível.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Enquanto isso o partido nacionalista anti-semita Jobbik cresce no cenário político húngaro. Ainda é minoritário mas não deixa de ser outro efeito da crise, despertar velhos fantasmas da história européia. A Hungria foi parte do eixo no fim das contas né...
ResponderExcluirPepino,
ResponderExcluirPois é. Eu passei rapidamente por essa questão para focar na período pós-Segunda Guerra. Mas o período do entreguerras, o fracasso da experiência socialista com Béla Kun jogou o país em um horrendo fascismo que forneceu milhares - talvez centenas de milhares - de combatentes para a Wehrmacht. Isso teve a ver como a forma como o desmembramento do Império Austro-Húngaro foi particularmente doloroso para os húngaros e a maneira como o processo revolucionário deu errado, alimentando um sentimento nacionalista e decididamente anti-comunista naquele país. O Regime Fascista, uma monarquia sem rei que tinha na figura do almirante sem mar Miklos Horthy sua cabeça foi um horror até ser destruídos por Rakósi e os seus. O Fato é que se as medidas de Orbán derem errado, é provável que haja um novo surto fascista de consequências inimagináveis. Velhas sombras do passado continuam mesmo a pairar.
abraços