Segue aqui um artigo do meu grande amigo Carlos de Lucca sobre a recente - e tragicômica - manifestação ocorrida em São Paulo contra o Presidente Lula - que, aliás, ilustra a capa da CartaCapital desta semana. Lula, para variar, foi acusado de autoritarismo e quetais, mas o pior do episódio é o caráter bisonhamente semelhante da referida manifestação com outra, realizada há 46 anos atrás - não por coincidência no ano do Golpe Militar. Isso é um recado claro: Não se trata apenas de um jogo eleitoreiro baixo, mas, sobretudo, de uma amostra do desespero que os setores de direita estão sentindo diante da liquefação de seu instrumento partidário, o PSDB, e de como a tensão de forças entre as classes sociais irá se expressar ao longo dos próximos anos, com o fortalecimento da classe trabalhadora diante das radicais alterações pelas quais passa a sociedade brasileira. Tal manifestação também contou com a inusitada (ou nem tanto) participação de nomes da "esquerda" como o jurista Hélio Bicudo que, estranhamente, assumem uma posição contraditória neste momento, deixando-se levar tanto por desavenças pessoais quanto por uma incapacidade analítica crônica - própria dos idealistas -, a tal ponto que acabam fazendo o jogo da direita - ou, no caso específico de Bicudo, unindo-se a extrema-direita - sob os auspícios de um delirante risco à democracia creditado, por sua vez, à ampla vitória petista que se anuncia no horizonte destas eleições gerais - confirmando uma das objeções deleuzianas à psicanálise: Não se delira determinações familiares, mas sim o Mundo, portanto, os delírios são geográfico-políticos. Bem, já me demorei muito neste intróito, segue o texto:
Bicudo como Todo Tucano
Quando a classe dominante começa a temer os dominados, o carcereiro se torna o prisioneiro, e seu medo gera consequências catastróficas ao mais fraco.
A cidade de São Paulo, na semana passada, foi palco de uma forte mobilização que manifestava o inconformismo de alguns setores de nossa sociedade com as declarações recentemente feitas pelo Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, com relação a alguns veículos de comunicação, acusando-os de comportarem-se como partidos políticos, em razão da oposição desregrada feita a ele, a seu partido e à candidata à Presidência, Dilma Rousseff. Neste ato foi assinado um manifesto - cujo "apartidarismo" é duvidoso - onde se dizia, dentre outras coisas, estar o Brasil marchando rumo ao autoritarismo.
Depois dessa cena lamentável, na qual intelectuais, juristas e religiosos, valendo-se do prestígio que tais qualidades conferem perante nossa sociedade, assinam um manifesto de conteúdo muito semelhante a outros que precederam, por exemplo, o golpe militar de 1964. Resta-nos agora a pergunta: Quem está em movimento de regressão? A atual política brasileira personalizada, pelo tal manifesto, tão somente em Lula e nos grupos que lhe conferem apoio, ou esta parcela de nossa sociedade que, sublevadas por interesses elitistas e golpistas, vão às ruas (muito embora sustentando um discurso em defesa da democracia e da liberdade [!]) para externar seu descontentamento com um presidente que goza de amplo apoio popular?
Desta feita, é muito oportuno colacionar o manifesto do general Odílio Denys, do almirante Sílvio Heck e do brigadeiro Grum Moss, publicado quando da possível volta ao Brasil de João Goulart, que assumiria a cadeira de presidente deixada por Jânio:
“No cumprimento de seu dever constitucional de responsáveis pela manutenção da ordem, da lei e das próprias instituições democráticas, as Forças Armadas (...) manifestam (...) a absoluta inconveniência, na atual situação, do regresso ao País do vice-presidente João Goulart (...) As Forças Armadas estão certas da compreensão do povo cristão, ordeiro e patriota do Brasil.” (grifamos alguns termos desse curto trecho do manifesto militar que são utilizados, também, ao longo do “manifesto Bicudo”)
Como se sabe, mais tarde esse grupo militar, com apoio de outros setores conservadores, marcharam rumo ao golpe de 64. Convém, também, registrar quem são algumas dessas forças de mobilização constituídas à época e que se assemelham muito com as que se unem contra Lula, quando não são as mesmas: a classe média alta, a Igreja Católica (à exceção de católicos de esquerda), a Ordem dos Advogados do Brasil que, pasmem, aprovou uma moção em que proclamava a necessidade de se preservar e garantir o livre funcionamento dos poderes constituídos da República, diante da situação (ainda bem que os todos “juristas” são os arautos da liberdade no Brasil... Que saudades de Francisco Campos, o “Chico Ciência!). Dentre outras.
Antes do golpe, também, o centro de São Paulo assistiu, nas imediações da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, uma manifestação aos moldes desta da semana passada. Foi a chamada “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, que reuniu milhares de pessoas que eram contra as chamadas “reformas de base” de João Goulart; dentre elas, a reforma agrária. Era apenas a direita tentando conservar seus interesses, sem pretensão alguma...
O que temiam? A mesma coisa que temem hoje: um governo que possivelmente irá cercear a liberdade de imprensa. Leiam bem: possivelmente. Assim como a motivação da invasão do Iraque se baseou em indícios de posse de armas de destruição em massa, as declarações de Lula sobre a mídia de oposição não passam de declarações enquanto não existentes no plano concreto do mundo dos fatos, como ocorre na Venezuela de Hugo Chávez.
No início deste texto referi-me ao “manifesto” como de "apartidarismo" duvidoso. O que evidencia tal afirmação é o trecho:
“É aviltante que o governo estimule e financie a ação de grupos que pedem abertamente restrições à liberdade de imprensa, propondo mecanismos autoritários de submissão de jornalistas e empresas de comunicação às determinações de um partido político e de seus interesses.
É repugnante que essa mesma máquina oficial de publicidade tenha sido mobilizada para reescrever a História, procurando desmerecer o trabalho de brasileiros e brasileiras que construíram as bases da estabilidade econômica e política, com o fim da inflação, a democratização do crédito, a expansão da telefonia e outras transformações que tantos benefícios trouxeram ao nosso povo.”
Ora, este trecho se refere também a um veículo de comunicação cujo nome não escreverei, mas da mesma forma como existem revistas e jornais que fazem oposição ao atual presidente da república, há quem concorde com atual governo em alguns pontos, tendo a total liberdade para discordar em outros, como fez Mino Carta, da Revista CartaCapital (que é evidentemente de esquerda), quando da discussão judicial sobre extradição de Cesare Battisti, em que se posicionou a favor da embaixada italiana. Mas, olhem bem, o “manifesto bicudo” acusa o veículo de comunicação ao qual não dei nome de ter sido mobilizado para “reescrever a História procurando desmerecer o trabalho de brasileiros e brasileiras que construíram as bases da estabilidade econômica e política, com o fim da inflação, a democratização do crédito, a expansão da telefonia e outras transformações que tantos benefícios trouxeram ao nosso povo.”
Ora, o “manifesto” se refere ao governo Fernando Henrique Cardoso! Tais atos de governo foram praticados por ele, quando foi presidente pelo PSDB! O que dizer sobre ser esse “Movimento pela Democracia” apartidário? Estamos há pouco menos de duas semanas do pleito eleitoral e sabemos a desvantagem do candidato do PSDB frente à candidata do PT. Parece-me mais um movimento inspirado pela direita conservadora brasileira, tal como no momento pré-golpe militar com a finalidade de, para dizer pouco, manipular o povo brasileiro a se posicionar contra o partido que ora governa o país e, numa tentativa de buscar apoio popular para o caso de um eventual Golpe de Estado à guisa do de 64, mas nesse caso, um golpe civil. Sabemos que a direita brasileira sempre se socorreu em golpes toda a vez que viu seu Poder sofrer a possibilidade de ser enfraquecido. Mas tudo pela liberdade de democracia, é claro. É só fazer uma remissão à história republicana. Não há necessidade de reescrevê-la para provar tal tese.
Ao ler este texto, podem dizer que aqueles eram outros momentos. Estávamos vivendo a Guerra Fria; havia o medo do comunismo. Bom, hoje não vivemos a Guerra Fria, mas temos como vizinhos governos socialistas sustentados com apoio popular. E o que a direita teme, no momento, é que o Brasil venha a ser como a Venezuela, por exemplo. E esse medo é suficiente para levar intelectuais, juristas, artistas, dentre outros a apoiarem manifestos como o do “Movimento pela Democracia”, uma versão mais atualizada do finado “Cansei”, onde a elite paulista foi à Praça da Sé protestar dizendo, “fora Lula” e que cansou de pagar para o avião do Presidente ser seguro e o dela não.
Dito tudo isso, o que temos que temer e quem está em movimento de regressão? O “manifesto Bicudo” ou a remotíssima possibilidade de um governo que venha a cercear a liberdade de imprensa? Sabemos que a liberdade de expressão é um direito fundamental, cravado como cláusula pétrea em nossa Constituição, direito de que sou e sempre serei defensor. E quando me deparar com uma concreta violação dele, certamente estarei escrevendo um texto como esse para preservar essa liberdade, assim como neste momento defendo a soberania do povo brasileiro em escolher, por si mesmo, quem será o responsável pelos rumos da nação, como quis o parágrafo único do primeiro artigo de nossa Carta Magna quando declara que “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.”
Carlos Augusto de Lucca Batistela. 25 anos. Estudante de Direito do 3º ano da Faculdade de Direito da PUC-SP.