Hoje, fui surpreendido pela notícia de que um projeto de lei defendendo a proibição do uso da burca - assim como do véu que cobre o rosto das mulheres - foi aprovado pela câmara dos deputados da França. O projeto de Lei é defendido pela UMP, partido do Presidente Nicolás Sarkozy. Em Setembro, o Senado avaliará o referido Projeto. Ao meu ver isso é um grave equívoco. Não é uma questão simples. Hoje, discuti arduamente no twitter a questão. A argumentação do Governo francês é de que a burca e o véu (nicab) promovem a servidão da mulher. Isso é falacioso. A obrigatoriedade dessas vestimentas é, em determinadas sociedades, um instrumento de opressão contra as mulheres, não a sua existência - que não passa de mero instrumento para tanto em determinados casos.
Fosse desse modo, eu seria contra o casamento gay por ser heterossexual ou contra a liberação da maconha por não usar maconha. Pode se argumentar que a burca faz mal para a saúde; sim, faz de certa maneira - seu uso, do ponto de vista estritamente físico, deve fazer menos mal do que beber álcool, o grande impacto é, sobretudo, psicológico, no caso de sua obrigatoriedade. Não creio que seja possível uma sociedade sobreviver sem determinadas proibições, mas a proibição não deve ser o padrão da função legislativa, mas sua excepcionalidade. Vestuário e alimentação devem ser especialmente protegidos quanto às proibições e obrigações firmadas pelo Estado, pois se constituem em expressões elementares dos cidadãos em sua individualidade, ao fazer isso, o Estado está condenado à imprecisão, pois grandes determinações universais de comportamento - acerca de assuntos tão específicos - tendem a ser arbitrários dada à singularidade de cada um. Imprecisão aqui é impedir que os cidadãos se realizem enquanto o que são, o que importa na coletividade não se realizar também - pois somos indivíduos e, ao mesmo tempo, parte de um grupo, não há contradição, apenas ambivalência.
Eu, por exemplo, sou pessoalmente contrário à burca, não incentivaria que alguém vestisse uma - tampouco me sinto com vontade de vesti-la -, mas determinadas mulheres vestem por sua própria vontade porque isso serve para a afirmação da sua identidade cultural - o que tem efeito psicologicamente benéfico para elas. Eu não posso confundir minhas convicções e necessidades pessoais com as da coletividade, nem confundir o instrumento com a ação de opressão - senão, também deveria ser aprovada uma lei que proíba facas. Em uma sociedade como a brasileira onde não existe esse elemento cultural, muito embora não haja proibição ao uso da burca, não vejo muitas pessoas usando-as por aí. A justificação para essa proibição, portanto, soa tão falha quanto à proibição do uso de certos entorpecentes: Não pode porque faz mal. No fundo, isso expõe aquilo que chamo de egocentrismo legislativo: Eu estabeleço minhas convicções e gostos pessoais como régua e medida para o mundo.
Ainda que como vestuário a burca seja uma má ideia, a sua importância simbólica para certas minorias faz com que ela seja mais do que isso. Uma minoria usaria ela. Isso tem importância cultural para aquele grupo. Ninguém deve ser obrigado ou proibido a usar burca, isso deve ser facultado às pessoas - e isso vale para o islamismo, qualquer outra religião ou a própria descrença. É evidente que numa sociedade onde essa escolha fosse facultada, a prática tenderia a desaparecer. Esse equívoco é mais enraizado do que se supõe na nossa sociedade, trata-se da concepção de que um determinado grupos de sábios são capazes de formular o que é o bem comum porque sabem coisas que as pessoas não sabem e que a prática social jamais revelará. A União Soviética foi um belo exemplo disso. As pessoas, no entanto, costumam protestar contra essas arbitrariedades quando o conteúdo, a matéria, dessas normas é contrária às suas convicções pessoais, de resto, silenciam.
Muito embora esse desvio tenha suas origens lá atrás, no pensamento platônico - tudo é caos, mas existe um Ser capaz de ordenar tudo, bem como a sociedade deve ser governada por um bando de filósofos, o que revela aquilo que poderíamos chamar de Síndrome de Demiurgo - sua roupagem contemporânea está na ideia do Leviatã Hobbesiano - que trás em seu conteúdo muito dessa concepção -, que ainda que tenha sido gestado pelo pensador inglês, se realizou historicamente na França posterior à Revolução, sob o comando de Napoleão. As proibições e as obrigações públicas como prática padrão da função de legislar, a permanente adequação do comportamento das pessoas porque o sistema funciona de uma forma por vezes contraditória às suas necessidades. Esse de projeto está presente na França contemporânea como também está o anti-islamismo. Ainda que grupos de esquerda manifestem apoio pelos motivos equivocados que eu coloquei, o pano de fundo é que hoje, como há mil anos, certos valores do Islã são combatidos com avidez - e mesmo que o uso da burca e do véu não seja uma determinação constante no mundo islâmico, acertar nesses pontos é um modo de bater em todo o resto do Islamismo. A recaille contra qual Sarkô sempre se bateu.
O curioso, Hugo, é que os partidos que com mais ardor defendem a proibição das burcas, são aqueles que mais desdém tem pelas causas feministas.
ResponderExcluirCurioso é ironia de minha parte. É preconceito mesmo, o argumento da defesa das mulheres é mero "remédio" que os spin doctors receitaram para "vender" a medida.
Patrick,
ResponderExcluirSim, sim. A astúcia dos idealizadores da medida é que eles se usam de uma defesa da liberdade feminina para poder acertar no islamismo de maneira com um escudo. Não é o caso de defender o islamismo aqui - não estou do lado dele assim como não estou da direita francesa -, mas o ponto é como isso respinga nas liberdades individuais e serve a uma projeto ideológico que implica em uma série de outras medidas autoritárias.
abraço
Hugo,
ResponderExcluirSerá que os legisladores franceses também se lembraram de proibir o uso do hábito pelas freiras católicas?
Quando, ha alguns anos, a França proibiu o uso de simbolos religiosos em repertições públicas eu até achei válido, pois isso também se estendia aos simbolos cristãos. De início também concordei quanto a proibição do véu islâmico dentro das escolas porque os argumentos me pareceram válidos, mas Hoje penso diferente. A escola é lugar de convivência, mas acima de tudo é o lugar onde se aprende a conviver, inclusive com o diferente.
Agora, proibir que mulheres muçulmanas usem uma vestimenta que para elas faz parte do exercício da sua religião e do seu modo de vida é passar dos limites.
Lembro de ter lido em algum lugar que quando a Turquia, para se aproximar do Ocidente, proibiu o uso da burca e do véu em locais públicos muitas mulheres deixaram de sair de casa, algumas deixaram seus empregos _ o que lhes garantia certa autonomia num mundo machista _ recolhendo-se aos trabalhso domesticos e a dependencia do marido.
Há muitos equívocos aí. Um deles é desconsiderar a mulher muçulmana como agente cosntitutivo _ e ativo _ das tradições islãmicas, como se tudo que se referisse a ela fosse simples imposição, como se ele mesma não tivesse parte nessas escolhas ou não contribuisse para sua manutenção. Será que proibir o uso da burca não é tão ou mais violento quanto obrigar seu uso?
E eu não acho que a suposta opressão das mulheres é a principal motivação pra a proibição. Já li sobre a bruca poder servir para camuflar terroristas, sem contar que a lei tem um forte viés preconceituoso, além de ser mais uma atentativa de tornar o Islã menos visível dentro de uma sociedade cristã. Foi isso que tentaram os suiços ao proibir a construção de minaretes nas novas mesquitas.
Eu também considero perigoso quando um Estado começa a determinar como alguém deve se vertir. O que virá depois?
E depois reclamam da falta de liberdade nas sociedades islãmicas.
Por não ser heteressexual ou por ser heterossexual?
ResponderExcluirEdu,
ResponderExcluirExato. Esse exemplo é muito bom. Por que eles também não proíbem a obrigatoriedade que a religião católica impõe às freiras em relação à castidade? Evidentemente, porque a UMP mira no Islã, não na Igreja Católica.
O que o Estado Democrático deve garantir é que as pessoas possam agir como queiram na esfera de sua individualidade. Se mulheres islâmicas querem agir assim, esse direito deve ser garantido, o Estado só pode intervir caso alguém esteja sendo obrigado a agir dessa maneira - e creio que as leis penais e civis francesas já previam sanções para as diversas espécies de coação antes disso.
No caso das escolas, sou contra que crucifixos ou símbolos religiosos de qualquer espécie sejam colocados, mas quanto à eventuais símbolos religiosos na vestimenta das crianças e dos jovens, só deve intervenção caso exista coação.
Infelizmente, a Europa é essa ambivalência mesmo, se houve iluminismo lá é porque antes houve trevas - e o terror delas não foi varrido. Quando nos pegamos com medidas como essa e com os rumos adotados pela União Europeia, não dá para não sentir calafrios.
abração
Obrigado, Manuel, está corrigido.
ResponderExcluirRelativismo cultural demais é doença mental. O que está sendo proibido é a burca, não o uso de outros tipos de véu islâmico. A burca causa sofrimento pelo simples fato de cobrir a face de uma pessoa.
ResponderExcluirE a pena por não cobrir a face de uma pessoa é a pena de morte porque a mulher islâmica não pode abandonar a religião sem ser condenada. A pena para apostasia, no mínimo, é à exclusão social total ou à morte. Tà escrito no Corão.
Freiras católicas não usam vestimentas que cobrem a face. E se usassem, elas podem cometer apostasia sem serem mortas.
É por isso que não há razão para proibir freiras de usarem suas vestimentas. Elas podem desistir de sua fé. As mulheres não.
Hugo, eu tinha visto uma notícia parecida, mas o motivo alegado era que as burcas poderiam esconder armas e essa medida fazia parte de um pacote antiterrorismo.
ResponderExcluirLógico que eu seria contra do mesmo jeito, daqui a pouco vão proibir as pessoas de usarem roupas largas, talvez dizer que cabelo rastafari serve para esconder faca, e em certos locais só sunga será permitido!
Anônimo,
ResponderExcluirNinguém aqui está defendendo que algo que tudo que venha de uma determinada cultura é intocável, mas as liberdades individuais de todos os cidadãos - sejam eles muçulmanos, cristãos ou ateus.
Essa sua visão preconceituosa frente ao Islã é totalmente falaciosa. Do mesmo modo que existem extremistas islâmicos, o mesmo se pode dizer de várias correntes do cristianismo.
Se um mulher é muçulmana e quer deixar de sê-lo, as leis francesas proíbem qualquer retaliação - e assim deve operar qualquer Estado Democrático, garantindo a liberdade de ser e deixar de ser qualquer coisa por parte dos seus cidadãos -, o que não tem nada a ver com o direito de algumas mulheres, livremente, usarem burca a despeito de seu juízo individual ou do meu.
Dizer que as freiras católicas se comportam dessa maneira sempre porque querem e as mulheres muçulmanas sempre porque não querem é uma falácia maniqueísta. Lamento, mas a sociedade não deve nem pode ser organizar de acordo com as convicções individuais de ninguém, senão as próprias liberdades individuais vão estão ameaçadas.
um abraço
Celião,
ResponderExcluirMas o sentido é esse mesmo: Pasteurizar, adequar, eliminar as variáveis culturais que ameaçam a ideologia hegemônica. Esse fenômeno se viu na União Soviética quando as minorias não-russas foram massacradas e se vê pelas mãos da direita nacionalista francesa.
um abraço