(A Original)
A bandeira brasileira é uma bela peça estética. Sim, ela é uma das mais bonitas - e originais - do mundo, mas para além do mundo das formas, encontramos lguns problemas quando buscamos seu significado. Boa parte dela não passa de uma copia do pavilhão pessoal dos príncipes reais do Reino de Portugal, Brasil e Algarves, transformado mais tarde em bandeira do Império nascente - com algumas adaptações - e mantida com a instauração da República - eis aí que ocorre a maior mudança, se o fundo verde e o losango amarelo se mantêm, ganhando novos "significados", tratam os positivistas de mudarem o centro da bandeira com o globo azul, colocando o céu da noite do 15 de Novembro cartesianamente disposto e, por fim, um lema: Ordem e Progresso.
O peculiar lema encontrado na nossa bandeira remete ao Positivismo, movimento filosófico, científico e político de cunho ideológico nascido na França, pelas mãos de August Comte, que agitou a Europa na segunda metade do século 19º - e cujos discípulos brasileiros tiveram particular importância na imposição da República. Ele se fundava nos em um visão de mundo fundada nos valores científicos - não só, em oposição à religião e ao alegórico -, na busca de uma organização social e política rigída e hierarquicamente ordenada - onde cada um saberia o seu lugar, seja ele na favela ou na casa grande - e, sobretudo, numa visão reta, mecânica e etapista de História. Muito embora relegasse o catolicismo a uma esfera primitiva - como expressão de um estágio de desenvolvimento a ser superado -, ele não foi perseguido violentamente, pois seus postulados e metas, de certa maneira, eram muito mais a sistematização de grande parte do ideário burguês presente já nas Luzes e que muito tiveram a ver com a Revolução - mais do que isso era a promessa do desenvolvimento capitalista por uma via tecno-científica e, digamos, indolor.
Muito se discute sobre o caráter conservador - ou não - do Positivismo. Pensemos no que poderia ser o conservadorismo em sentido amplo. Talvez um discurso ideológico, cujo instrumento de legitimação reside na Tradição - o conjunto de práticas herdadas e repetidas, acriticamente, legado pelo vínculo afetivo da família ou da grande família, a Nação. O que está de acordo com a Tradição é bom, o que é contra é necessariamente ruim, o que lhe é indiferente, deve ser visto com cautela e posto em prática se for útil - e caso alguma necessidade se mostre iminente, busquemos alguma justificava na própria história, nem que tenhamos de inventar alguma tradição para tanto, como diria um certo Hobsbawm. Por esse aspecto, o Positivismo não é, materialmente, uma ideologia conservadora, ainda que formalmente, ele repita a violência autoritária do conservadorismo burguês e pré-burguês - como, por exemplo, o pragmatismo britânico - e não tenha por meta também nenhuma forma de emacipação humana.
O Positivismo se assenta sobre uma lógica, por assim dizer, progressivista, cuja pedra de toque do discurso ideológico deixa de ser a Tradição para dar lugar ao Novo, o tecnicamente perfeito, o cientificamente incontestável - em fim, sai a Religião e entra o Cientificismo junto, claro, com os dogmas que lhe são inerentes. Não há espaço para o pensamento crítico nem para a discussão, apenas para a marcha incessante do Progresso - custe o que custar, doa a quem doer -, o que, obviamente, demanda que a sociedade seja posta em Ordem - sim, pelo aparato coercitivo do Estado. Tudo que é identificado com o Velho, é colocado na vala coletiva que atende pelo nome de Atraso - isto é, tudo aquilo que deve ser eliminado pelo aparato estatal. Não me citem como exemplo o anticlericalismo positivista, isso é uma mera questão de disputa pela hegemonia no campo dogmático, nada mais.
Chegar aqui e dizer que essa ideologia seduziu corações e mentes da elite brasileira é muito fácil - mesmo sendo medievalista, sentia-se alucinada pela possibilidade da modernização conservadora -, agora, dizer como isso, ao longo do tempo, seduziu a esquerda e, particularmente, corrompeu a nossa esquerda, talvez seja entrar num terreno por demais perigoso. Mas eu vou fazer isso. Está tudo posto, a crença num cientificismo, no determinismo mecânico e a crença em um desenvolvimento econômico - isto é, meramente material e quantitativo - na forma de etapas. Na Europa, isso se expressa no modelo jurídico desenvolvido na França Napoleônica, a normatização da vida em códigos e depois a contribuição inestimável do burocratismo prussiano - que se apoderando do pensamento francês revolucionário se lançava na luta pela unificação germânica -, o "Direito Público" e a supremacia constitucional em um sistema hiper-normatizado.
Mesmo que isso se entrelace com a influência anglo-saxã em várias momentos - e sofra a oposição transformadora do movimento socialista de outro lado -, o modelo hegemônico escolhido por europeus continentais é diverso da peculiar via dos anglo-saxões - não só, também é muito menos eficiente, basta arrolar aqui a quantidade de totalitarismos que se abateram de Lisboa à Moscou nos últimos duzentos anos e compara-los com quantos aconteceram nos países de inspiração britânica no mesmo período para comprovar a minha tese - e aqui dois pontos importantes:
(I) O Capitalismo necessita de liberdade para se desenvolver, ainda que seja uma liberdade controlada, vigiada e, sobretudo, tolerada, do contrário, a produção criativa necessária para que ele supere as crises que lhe são inerentes não acontece (seja produção dos intelectuais orgânicos do sistema ou da intelectualidade contra-hegemônica, cujos instrumentais produzidos podem e devem ser fagocitados pelo sistema);
(II) O Totalitarismo é um acidente de pecurso do Positivismo, pois ele é um estado de paranoia social extremo que importa em estagnação econômica, ainda assim, a metodologia política trazida pelo Positivismo tem sim, entre suas possibilidades reais, a queda num regime desses, o que sempre fez com que o sistema europeu continental não deixasse de ter um pé na Inglaterra, não desprezasse definitivamente o humanismo católico (apesar dos seus defeitos) ou não suprimisse por um todo o pensamento socialista, todos são elementos necessários para a retroalimentação do sistema, ainda que na forma, ele matenha seus pilares.
Sobre a contaminação do pensamento contra-hegemônico com os postulados positivistas, isso de deve por uma afinidade de concepções no seu início: A fina flor do movimento socialista do século 19º estava - Marx incluso - por demais iludida por um otimismo decorrente das conquistas que vinham na esteira do desenvolvimento científico. Como certa proximidade restava - mesmo com todo o desenvolvimento do pensamento socialista -, ao mesmo tempo que o sistema fagocitava determinados instrumentais do movimento socialista, por outro lado, o próprio movimento, em uma leitura vulgar do que foi produzido, se rendia a determinados à lógica inversa - até chegarmos ao extremo do pensamento de Kautsky e de Lenin, que viam o movimento socialista em uma bifurcação entre a Democracia (Burguesa) e a Ditadura (do Partido) como diria Rosa Luxemburgo. Foi se debatendo contra isso, denunciando particularmente a social-democracia alemã, que Benjamin estruturou sua crítica radical nas suas famosas Teses Sobre a História. Isso, aliás, muito tem a ver com o futuro da União Soviética.
Voltemos ao Brasil. Claro, a falência do Estado Varguista fez com que muito do pensamento positivista - em seus recuos e avanços ao longo de nossa História - retrocedesse. A falência soviética, em um período ligeiramente posterior, também jogou um balde de água fria na esquerda que, ortodoxamente, repetia a aberração pára-positivista que se tornou aquele país. Se a elite brasileira foi procurar, por conta disso, no pensamento anglo-saxão uma nova forma de modernização conservadora - o que se concretiza na figura pessoal de FHC -, desenvolve-se, em paralelo, o desenvolvimento de uma nova espécie de esquerda que, embora heterogênea, estabelece uma crítica mordaz ao legado positivista, seja por releitura não-ortodoxa do pensamento de Marx ou mesmo pela influência católica progressista - que refuta o cientificismo, como não era de ser diferente. Mas o legado positivista não acaba. O social-desenvolvimentismo dos anos Lula, de certa maneira, traz um pouco desse espírito. Mais do que isso, essa concepção positivista resta por demais embebida em nosso ideário. Mesmo dentro do PT essa lógica sobreviveu.
Parte significativa da esquerda brasileira, partidária de uma agenda inovadora e includente em termos de direitos individuais, sociais e coletivos, quando se depara com casos complexos, não raro, recorre a instrumentais positivistas. O bom é sempre posto como o Novo - e é necessário que assim seja justificado, em contraponto ao Velho que é ruim - e em torno disso, a vontade, a inteligência e a força organizadas, ocupando o Estado devem se empenhar para fazer com que o arcabouço normativo se adeque ao Novo e elimine o Velho. É um pensamento desumano. Em primeiro lugar, porque ele nega a autonomia de algumas condutas, que não são consideradas mais em si, mas como se são adequáveis - ou mesmo encaixáveis - ou Projeto do Novo. O mesmo vale para o que é posto na velha vala comum do Atraso - ele pode ser acriticamente esmagado, porque não é questão de entender seu significado, mas saber se sua forma se encaixa ao quebra-cabeças da (Pós-)Modernidade. Vemos isso aqui e vemos na Europa. No caso da França, o Projeto de Lei da burca é um exemplo absurdo e, muitas vezes, a forma como a legalização do matrimônio gay é o mesmo - quando este deveria estar sendo considerado em si e não pelo que representa para essa (Pós-)Modernidade, o que definitivamente não ocorre sob os olhares progressivistas "de esquerda".
O argumento central para esses vestígios positivistas estão em Platão - Laclau, inclusive, na introdução de Sobre a Razão Populista passa por essa questão. De qualquer modo, o que temos é uma ideia singela de que tudo que existe é caos - e isso é ruim - e há um Ser capaz de designar um ordem para tudo isso. Não é necessariamente o argumento central da Filosofia Política, como coloca o pensador argentino, mas a pedra de toque da Teologia - que está para a ideologia como o manipulador está para a marionete. Troquemos "Ser" por Imperador, Deus (Na verdade, a Igreja), o Partido ou o Mercado e temos a História do Ocidente. É isso que deve ser combatido, por um projeto libertador que procure conhecer a Ordem necessária das coisas e supere a ilusão do atomismo, buscando despertar o intelecto que é inerente a tudo - e a todos - como diria um certo Spinoza. A confusão da nossa aceitação da Democracia - retomada enquanto farsa pela burguesia americana - e introduzida por essas paragens na condição de enxerto, conjugada com o progressivismo que se auto-intitula a única saída para superar o conservadorismo do Brasil profundo, trata-se de um perigo ainda maior. Se não uma prisão, uma arapuca.
na segunda linha alguns está sem o A.
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