domingo, 15 de agosto de 2010

Sobre Futebol e Política e a lenda do Fla x Flu Eleitoral

(imagem retirada daqui)

Entre os gregos antigos havia a Pólis, aquilo que chamamos de "Cidade-Estado", mas que certamente encontra um significado mais apropriado em "coletividade". A Política - isto é, Politké - seria a técnica (ou arte) de viver em grupo - cujo domínio era essencial para a convivência humana, tendo em vista a incompletude do Homem, como bem nos narra Protágoras pela boca de um certo Platão. Temos, em sentido oposto, o Polemós - equivalente ao vocábulo de origem germânica "Guerra" - que em grego soaria como a ação - ofensiva - dessa coletividade - o sulfixo mós indica ação - e sua técnica (ou arte) respectiva, a Polêmica, grosso modo, a arte da guerra, cujas divisões posteriores eram a Estratégia e a Tática. 


Na língua portuguesa contemporânea, ambas as palavras sofreram uma redução importante em seu significado, a Política acaba, erradamente, resumida às relações de poder dentro de uma certa unidade de convivência, a Hegemonia, enquanto a Polêmica tornou-se sinônimo de confronto de ideias - seja como for, ambas guardam, no entanto, seu significado primeiro. O nosso conceito de Guerra, embora germânico, traz em seu conteúdo grande parte da valoração que se os gregos antigos aplicavam ao conceito de Polemós.


A Política e a Guerra, seja como for, obedecem à regras diferentes. Em um primeiro momento, porque dentro no que concerne à Política - enquanto esfera relativa à coletividade -, existe a ideia de um espaço comum apriorístico - um certo conjunto simbólico primeiro - que une todos os agentes - cuja interação, aliás, não se limita a eventual disputa, mas em dados momentos à coloboração, tendo em vista os variados interesses. A Guerra não. Seu espaço próprio é incomum, trata-se do Campo de Batalha, um lugar de convivência, mas meramente de confronto entre as partes - e tal confronta não equivale à disputa política, pois lá, normalmente existe um freio simbólico que, nada mais é, que a própria ideia de um espaço compartilhado -, cujo interesse é de superar o outro, em suma, o mesmo interesse - oposto, claro.


Por sua vez, os esportes coletivos modernos são, em último caso, representações da guerra em escala laboratorial - e devidamente castrados do seu potencial ofensivo real, embora, simbolicamente, representem algo próximo de sua essência. O futebol, mais do que os demais, é uma guerra reduzida mesmo. Por isso, eu discordo de que exista - ou possa existir - uma redução da atual campanha eleitoral a uma espécie de antagonismo futebolístico; a explicação é simples, todos os agentes partem do pressuposto de que seus adversários também compartilham seu mesmo de convivência - bem como o antagonismo é disposto de uma maneira que difusa, isto é, o interesse de derrotar o outro é meio e não fim. Ainda que os grupos se comportem, não raro, de forma maniqueísta, isso em momento algum produz um antagonismo semelhante ao futebol - nem o eventual maniqueísmo é prova de que não há antagonismo; são coisas diferentes.


Recentemente,  polemizei sobre isso no Torre de Marfim com o Matamoros - que entrou duro, mas na bola, como deve ser. Não, não há, nem tem como haver Fla X Flu eleitoral. Por outro lado, se o maniqueísmo é sim um problema  na análise e no posicionamento em relação à eleição atual - como falava com o Alexandre -, é preciso dimensiona-lo corretamente. É necessário escapar à retórica, especialmente, negar a falsa dicotomia que nos coloca diante de uma bifurcação absurda, em relação a qual teríamos de escolher entre a aceitação do maniqueísmo político e a afirmação da inexistência de antagonismos. 


Os diversos antogonismos existem sim, mas não equivalem a uma luta do bem contra o mal - e mesmo que fossem, ainda assim, não seria comparável ao Futebol. Cada ponto de vista é visto de um ponto dentro de um plano no qual nos encontramos, não existe como escapar disso, nem é possível não tomar posição, mas é necessário que ela seja feita argumentando racionalmente e com os pés na realidade - sem jamais reduzi-la ou nega-la como faz o senhor José Serra, cuja candidatura ora se liquefaz em afirmações estapafúrdias. O caminho é buscar descobri-la cada vez mais para cria-la e recria-la.

6 comentários:

  1. Hugo, meu caro: teu argumento é bom; porém, falta um conceito grego nele, o de stasis - que hoje significaria a guerra civil. Era a idéia de stasis (divisão interna) que se opunha à de política (bem comum), daí o consenso dos pensadores gregos em condenar o que podemos chamar de partidos ou facções: a formação de partidos (partes que querem ser o todo e, para isso, negam outras partes) era a maior ameaça à política, pois obliterava, ou deixava em segundo lugar, o comum, a política. Em última instância, a política acaba se tornando a eterna luta contra a stasis, contra a guerra civil (o modelo da formação do Estado moderno, absolutista, vem daí, na medida em cria uma instância "comum" que neutraliza as diversas facções religiosas - o pulo do gato, porém, é a equação (nova) política = Estado). Todavia, em um aparente paradoxo, a Constituição feita por Solon dizia que, em um caso de stasis, de guerra civil, aquele que não tomasse parte (aquele que, portanto, fosse indiferente), perderia os direitos políticos. O paradoxo é só aparente, pois o que está em jogo é tentar integrar a stasis à lógica da política, fazer com que a stasis/guerra civil seja política (comum, de todos). Por isso, as anistias que sempre eram concedidas depois das guerras civis àqueles que foram derrotados; eram uma forma de reintegrá-los ao comum, ao todo. Essas duas disposições (proibição da indiferença e anistia) foram modos de integrar a stasis à política, capturar a exceção. Os modernos partidos (partes, facções) também são uma dessas formas. De algum modo, vivemos sim no regime de uma stasis, de uma guerra civil. Quando a política quer capturar o que lhe é externo, acaba arriscando confundir-se com ele.

    Abraço

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  2. Alexandre,

    Eu deixei a questão da "Guerra Civil" - um termo péssimo, se raciocinarmos etimologicamente - propositalmente de fora. O que me interessa aqui - e o que está exposto no argumento central - é como Política e Guerra (ou uma versão sublimada sua, o Futebol) obedecem lógicas intrínsecas tão próprias, que o simples fato de recorrer a exemplo futebolísticos - sub-bélicos, portanto - para descrever um possível desvio no debate político não faz sentido algum.

    Veja só, estamos falando do mesmo, se eu afirmasse que a Guerra é a maior ameaça a Política, logo, não estaria discordando da tese da possibilidade de existir um Fla x Flu eleitoral.

    A ideia de stasis aparece no post de forma implícita no trecho no qual eu coloco que "A Política - isto é, Politké - seria a técnica (ou arte) de viver em grupo - cujo domínio era essencial para a convivência humana, tendo em vista a incompletude do Homem, como bem nos narra Protágoras pela boca de um certo Platão".

    Em suma, no mito de Protágoras, se os homens não tivessem o domínio da politiké - ou o tivessem, mas o usassem mal - a consequência seria a degeneração do grupo, a auto-aniquilação, isto é, a stasis - um termo certamente mais preciso do que "guerra civil" que, na verdade, de guerra mesmo só tem a a maneira como a violência é usada como instrumento, mas que evidentemente não coincide na causa (pois a ideia do espaço comum é tomada aprioristicamente) nem na finalidade (aqui falamos de conquista da hegemonia, enquanto na Guerra a questão é a tomada das próprias estruturas hegemônicas do outro ou sua simples destruição).

    A relação entre Guerra - polemós - e Política só acontece quando uma deliberação interna produz um conflito externo - quando a Política falha, uma das consequência eventuais é a guerra, mas em regra é a "guerra civil" (argh) mesmo. Guerra civil, a rigor, não é uma espécie de Guerra, mas um conflito armado chamado de guerra de forma imprópria. A organização da política na disputa entre partidos, de fato, é uma tentativa de capturar a exceção da stasis, mas não da Guerra - e reitero: nem poderia ser.

    abraços

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  3. Hugo: teu argumento é interessante, mas discordo das premissas. Por mais óbvia que pareça, a relação entre o futebol e a guerra não me convence. O futebol é a ritualização de um confronto - sim, mas não decorre daí que ele seja uma ritualização da guerra. O modelo do futebol, a meu ver, tem que ser buscado no duelo, também uma ritualização do confronto em que se busca decidir a verdade ou a honra (que hoje o futebol busque saber quem é "melhor", é apenas resultado de uma aparente neutralização moral). Lembremos do contexto no qual surge o futebol no seu formato atual: um jogo de gentlemen, de cavalheiros. Se formos cavucar mais fundo - ainda que eu não esteja exatamente convencido da importância de uma tal arqueologia pra entender o futebol moderno -, veremos que um dos antecedentes do futebol é um jogo/festa medieval pagão em que um sujeito chutava uma bola, todo mundo saia correndo atrás, e isso só terminava meses depois, com dezenas ou centenas de mortos, a centenas de quilômetros de distância - aqui estamos longe da guerra, mas de uma festa que ameaça aniquilar a própria sociedade, e que, ao mesmo tempo, é expressão de um desejo utópico de felicidade e anomia (nesse sentido, pode ser equiparado à Antropofagia ritual). Dito isso, a metáfora do Fla-Flu (que não sei se endosso, ou não endosso completamente, e especialmente não endosso quando, como mostrou o Idelber num post antigo, quem reclama desse Fla X Flu joga no time tricolor) ou a idéia de um "maniqueísmo petucano" aponta para o reducionismo da política a um confronto entre dois atores que decidirão, no embate, a "verdade" - e, mais do que isso, e aqui a importância da stasis, de que quem não toma lado nesse confronto ou o está fazendo indiretamente ou deve ser condenado. Abraço

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  4. Alexandre,

    Pois é, nesse ponto eu discordo mesmo: O futebol não é um duelo porque nele temos a figura de apenas dois sujeitos se confrontando. Isso muda tudo. No futebol - como nos esportes coletivos com bola, via de regra -, temos duas máquinas complexas compostas por vários sujeitos, todos dispostos em campo de forma sistemática - isto é, enquanto componentes voltados para exercer diversas funções que se entrelaçam num objetivo final de derrotar um adversário semelhante. Isso envolve organização estratégica e disposição tática semelhante a um exército.

    Isso é futebol, isso é guerra, não se trata de uma ritualização da política, portanto, "Fla x Flu" trata-se de um exemplo infeliz para simbolizar um fenômeno político. Mesmo esse eventual antecedente medieval, no máximo, influenciou certos aspectos do futebol, pois no nobre esporte bretão não se chuta uma bola e todos saem correndo atrás dela pura e simplesmente. Existe todo um jogo de divisão de tarefas, de movimentações no vazio - e em especulações para tanto - e de propositividade em direção à meta adversária.

    Fla x Flu não é um simples "confronto entre dois atores que decidirão, no embate a 'verdade'" isso daí é teoria geral de todo e qualquer confronto travado - ou enxergado - por uma ótica binarista. Isso não ilustra a questão porque, pela sua dinâmica, o futebol não pressupõe espaço compartilhado, mas espaço em disputa, esse é o foco.

    Num segundo momento, o maniqueísmo político segue mesmo a (i)lógica da statis (não do polemós, pois aí teria algo a ver com Futebol) - para a qual, reitero, o espaço pré-compartilhado é fundamental -, ainda que isso não negue o antagonismo próprio da política, que não raro se aproxima mesmo de uma zona cinzenta.

    Evidentemente, em meio a tais antagonismos, todos estão tomando alguma posição - não existe uma posição neutra mesmo -, mesmo no caso de uma posição de silêncio, por exemplo; a diferença é que não deve haver a condenação de tal silêncio - mas quando acontece estamos num cenário onde as (várias) partes estão tomadas por tal visão binarista que, aí sim, estamos diante da stasis, o que não necessariamente acontece nesse momento, seja na sociedade (não por motivos eleitorais, pelo menos) nem massivamente no debate político do mundinho intelectual que cabe numa kombi.

    Dessa maneira, a afirmação do Fla x Flu - errada na causa e no propósito - tem sido usada para mascarar o confronto - reitero, inerente à Política - e assim condenar quem assume a sua posição - mesmo que esteja longe de dividir o mundo em preto e branco. Seria, no fim das contas, uma má peça retórica que faz uso catastrófico do sentido da "guerra civil" tranferindo-o para o adversário, o que, por sua vez, serve a um determinado grupo a quem interessa o silêncio neste momento.

    abraços

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  5. Você venceu o duelo e está com a verdade. Risos. No geral, seu argumento é convincente. Na verdade, nem queria contestá-lo, só complicar um pouco as coisas, levantando a bola de uma esfera intermediária, a stasis, entre política e guerra. Em todo caso, ainda não estou convencido (ainda que seus argumentos sejam bons) da relação entre futebol e guerra. Ainda o vejo mais próximo do duelo, apesar do aspecto coletivo que muda tudo, de fato. Abraço

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  6. Quem sou eu para te convencer de algo, doutor ;-) Mas reflitamos um pouco mais sobre a natureza do ludopédio e sua belicosidade castrada.

    abração

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