sexta-feira, 30 de julho de 2010

Reflexões sobre a Lei da Ficha Limpa

(Fruto Proibido - Michelangelo - a Ideia de Pecado) 

A Lei Complementar n. 135, mais conhecida como Lei da Ficha Limpa, é um dos grandes temas da campanha eleitoral em curso - além dos factóides diários e das pesquisas eleitorais - porque ela institui mecanismos normativos que facilitam a invalidação da candidaturas - fundamentado na "ficha" do candidato, isto é, o seu histórico judiciário. Mudanças nas regras eleitorais não são espantosas no Brasil, FHC, por exemplo, modificou as regras do jogo no meio dele aprovando a famigerada emenda da reeleição, por outro lado, a enorme confusão não só do Código Eleitoral - um monstrengo criado nos anos de chumbo e que cujas emendas ao longo do tempo o transformaram numa colcha de retalhos - como de toda a legislação eleitoral dão aos juízes eleitorais uma enorme margem de discricionariedade, o que é perigoso - como no caso Jackson Lago, derrubado por uma alteração na interpretação de um dispositivo vago. Se uma Democracia princípios e regras eleitorais claras e simples, então temos graves problemas por aqui.


A referida Lei Complementar foi fruto de um Projeto de Lei de "iniciativa popular", isto é, sua proposição teve origem na "sociedade civil  organizada" e, a partir da necessária coleta de assinaturas, foi levada à Câmara dos Deputados e ao Senado, seguindo aí todos ditâmes do Processo Legislativo. Claro, falar em "iniciativa popular" significa tudo ou nada, afinal, Povo nada mais é que a unidade representativa da coletividade, um conceito meramente ideológico - na prática, temos uma multidão -, usado em tempos como nosso, onde a maioria das pessoas são mantidas em um sufocante estado de alienação que as reduz a espectadores ou, no máximo, instrumentos ou obstáculos frente a vontade organizada de uma minoria em busca de legitimação. A questão, portanto, é examinarmos quem - ou o que - realmente está articulou isso. Aí chegamos no Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral, uma construção heterogênea que reúne desde a CUT e a CNBB  até a OAB passando pelos Baha'i. Em suma, temos associações e até autarquias ligadas a grupos religiosos e a sindicatos. Tudo junto e misturado. A maioria com grande influência nos corredores do poder, outras com enorme capacidade de mobilização. No Congresso, entre as várias propostas de emendas, comissões, o relator oficial na Câmara  foi o deputado petista José Eduardo Cardozo - e, sim, Índio da Costa foi um dos que passaram pela função mesmo, mas não foi o relator final - e no Senador o indefectível Demóstenes Torres do DEM.


A aplicação pelos tribunais eleitorais da referida Lei tem causado certa celeuma na mídia. Alguns figurões que seriam enquadrados pelo Ficha Limpa acabaram podendo se candidatar e, ao mesmo tempo,  alguns candidatos ligados aos movimentos sociais estão ameaçados. Evidentemente, a discussão não é essa. O problema é como essa Lei em questão frauda a Democracia aumentando o arbítrio da Justiça Eleitoral sobre quem pode ser candidatar e como os fundamentos dessa medida violam desde a ampla defesa, a presunção de inocência até um ponto que anda sendo muito pouco debatido: A função ressocializadora da Pena. Pela nova Lei, um cidadão que cometeu certo crime, foi devidamente sancionado por ele pode ficar mais oito anos depois do cumprimento da Pena sem poder se candidatar. Mais do que o risco iminente disso ser usado apenas contra candidatos contrários ao sistema - em um país onde se criminaliza sim movimentos sociais e a própria pobreza -, a Lei é eivada de duas falácias centrais: O moralismo cristão e a lógica mecanicista do Positivismo - caracterizada tanto por um esforço sublimador da Democracia quanto pela paranóia coercitiva.


A questão do Pecado e de um ética idealista está claramente impregnada na participação dos sem-número de organizações e parlamentares cristãos na referida Lei - inclusive na participação da esquerda católica, responsável por muitas das melhorias do país nos últimos anos, mas que em certos casos como esse encontra seu teto - assim como a perspectiva mecanicista, que reduz a questão democrática à aristocracia eletiva: Eleições tornam-se um modo não de escolher meros representantes para levar as demandas públicas a uma instância deliberativa mais ampla, mas sim "melhores", que devem ter sua pureza atestada previamente, e cuja função é conduzir a massa do Velho para o Progresso, numa marcha incessante. Os mecanismos formalmente democrático usados para a aprovação dessa Lei foram todos usados esvaziados de seu conteúdo material, não se promoveu um debate real esclarecedor junto as pessoas, apenas uma parcela delas foi conduzida por uma série de sábios dotados de uma razão que só lei conhecem para aumentar mais ainda o poder de outros sábios. No fundo, estamos falando mesmo da roupa do Rei, aquela que só os inteligentes veem.



4 comentários:

  1. Mais uma análise impecável. Como de costume!=)

    Ironia do destino, essa lei passou pelo Chico Alencar, e o PSOL tá se ferrando nessa.

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  2. Tsavkko,

    Isso é um problema da esquerda brasileira - talvez mundial, mas aqui mais do que a média -, muitas vezes as pessoas se esquecem de refletir e pensam que basta militar, com boa intenção, por causas bem-intencionadas que tudo se resolverá. O problema é que isso produz, involuntariamente, más ideias - e uma das características das más ideias é, justamente, produzir tiros no próprio pé.

    abração

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  3. Luiz Serra Azul Junior30 de julho de 2010 às 19:23

    Enquanto a reforma política não acontece, entendo que a chamada Lei da Ficha Limpa, deve ser considerada como um primeiro passo na direção do aperfeiçoamento do processo político-eleitoral brasileiro. Muitos oportunistas, abastados economicamente, ou não, se utilizam dos cargos eletivos para se locupletarem das benesses do poder, e mais ainda, se livrarem de penalidades por crimes praticados ao longo das suas tortuosas vidas na sociedade. Falta ao eleitor, discernimento para não se deixar enganar por esses arrivistas políticos, causadores da miséria social. Portanto, nesse contexto, a Lei da Ficha Limpa, cumpre o seu papel, de forma precária, até que a sociedade exija dos seus representantes, as providências para instituir um novo sistema político-eleitoral, que possa ser considerado avançado, digno, e próprio de uma nação civilizada.

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  4. Serra Azul,

    Respeito sua posição, elegante e bem fundamentada como sempre, mas eu discordo dela. O único meio para resolver esse problema é a construção orgânica junto à sociedade, o que envolve medidas educacionais que importam não apenas no revigoramento da Educação Pública como por medidas que forcem a mídia a fazer jornalismo de verdade - e eu quero ver uma mídia parcial, mas que tome parte do lado democrático. Materialmente, isso importa em quebrar com a própria lógica da representatividade, promovendo a ideia de participação e cidadania. A Lei da Ficha Limpa acaba sendo uma tentativa mecânica de arrumar esse essa situação, o que aumenta o arbítrio dos juízes, nem sempre muito preocupados com a Democracia - afinal, o Judiciário, em si, é um problema à parte. Do ponto de vista legal, penso que uma boa iniciativa seria criar um novo Código Eleitoral, mais simples e claro.

    abraços

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