domingo, 10 de outubro de 2010

Eleições 2010: A Semana Seguinte


(Maria Rita Kehl [CPFL/Cultura divulgação] -- o caso emblemático da semana pós-Primeiro Turno)

Há uma semana atrás, urnas fechadas, urnas contadas - poeira levantada, poeira que baixou. O PT,
como narramos aqui, registrou larga vitória, batendo o recorde de senadores eleitos nesta eleição, elegendo a maior bancada individual na Câmara dos Deputados - e a maior coalizão naquela Casa -, um bom número de governadores aliados - poucos petistas, é verdade, mas isso se deve à tática do partido privilegiar o Senado e não os governos estaduais. O partido da estrela, entretanto, não conseguiu a almejada vitória em Primeiro Turno na Presidencial, embora o tenha vencido. Agora as forças de ambos os lados se rearticulam para o enfrentamento de Segundo Turno. Serra, cuja candidatura simplesmente não funcionava, ganhou uma nova chance no colo graças ao discurso que a mídia corporativa - que lhe pauta e lha apóia - imprimiu, especialmente no ataque bisonho aos direitos civis que está sendo empreendido agora - e que Serra encampa vergonhosamente.


Como bem colocou a Professora Marilena Chauí - das mais lúcidas intelectuais brasileiras - no ato pró-Dilma na Sala dos Estudantes, existem dois pontos essenciais no que toca ao Segundo Turno: (a) É inadmissível deixar que as famílias que controlam a mídia pautem os rumos da política nacional; (b) É preciso conversar com os ambientalistas sobre o que resultaria um apoio a Serra e sua proximidade com os ruralistas, isto é, estabelecer o diálogo com a parte do heterogêneo eleitorado de Marina que nutre identidade com a esquerda (ou, quem sabe, a integra mesmo) - a esse ponto, eu acrescentaria que é necessário assumir um compromisso programático claro e firme no que toca essa questão.


A maneira como essa eleição se desdobrou em um dos mais inglórios ataques aos direitos civis se inscreve na forma de cinismo: Enquanto as camadas médias da sociedade são chantageadas com o fantasma de que o PT representa alguma ameaça às liberdades individuais, as camadas pobres são expostas a uma propaganda inversa, na qual é proposto que Dilma produziria um alavancagem na política de direitos civis, brincando justamente com as superstições e moralismos que foram introjetados há séculos nessas camadas para mantê-las no lugar - o que foi consideravelmente melhorado nos últimos anos, mas ainda falta muito. Existe um duplipensar óbvio nisso tudo, no qual dois discursos diferentes são feitos ao gosto do freguês. Em um primeiro momento, a propaganda é mentirosa posto que (I) Hoje, mais do que nunca, a questão da opressão não pode mais ser vista pela relação bilateral e hierárquica entre Estado e cidadãos, a mídia e os múltiplos atores sociais também tem poder concreto e interesse no controle de corações e mentes, portanto, nem que os petistas quisessem (e não querem, como os últimos oito anos provam claramente) a questão da liberdade nem passa mais por aí; (II) Por outro lado, as forças que usam a candidatura Serra e o PSDB como instrumentos estão fazendo uso das superstições de um modo como há muito tempo não se fazia mais, estão abrindo uma caixa de pandora que talvez nem eles próprios tenham controle logo mais adiante.


Sobre o item I do último parágrafo ainda vale a pena lembrar de um dos fatos mais chocantes que aconteceram na semana passada - e que ilustram o que seria um Governo Serra - pelos fatores reais de poder que apóiam, pautam e controlam sua campanha: A demissão da psicanalista Maria Rita Kehl do Estadão, após ter escrevido, um dia antes do pleito, o histórico artigo Dois pesos, duas medidas no qual teceu das mais contundentes críticas já feitas ao preconceito violento contra o Bolsa-Família que ronda certos ambientes da classe média - sobretudo, suas caixas de e-mail -; isso demonstra o quão pesado este jogo é. Desde o ano passado o Estadão se colocou na posição de vítima de censura no que toca o caso Fernando Sarney - falácia que Dalmo Dallari desmontou há pouco menos de um ano, ao demonstrar, de forma cabal, que se tratou de autocensura -, o que serviu para aquele jornal encampar o fantasma da ameaça à liberdade de imprensa por parte do PT - talvez por medo da regulamentação dos dispositivos constitucionais que acabariam com certos privilégios de grupos midiáticos como o seu -, mas agora o seu duplipensar se revela de maneira cruel e pungente com essa demissão. 


Depois de declarar apoio ao candidato oposicionista José Serra, nada mais natural que um jornal que passou o último ano se colocando na posição de guardião das liberdades individuais, respeitasse mais ainda a posição de seus articulistas no que toca temas de relevância nacional, o que cai por terra com a demissão de Maria Rita logo após aquele artigo. Essa ambiguidade do Estadão mostra não só sua falta de compromisso com a liberdade como revela uma faceta perigosa do projeto político que há décadas defende: Por meio da demonização das forças políticas populares e reformistas, ele cria um álibi para atacar os direitos civis e direitos sociais de maneira pungente - como expôs brilhantemente Murilo Duarte Côrrea, a importância do Bolsa-Família é central em toda essa mudança que ocorreu nos últimos anos no país e não é difícil achar isso e eu acrescento: Combater o Bolsa-Família hoje só é possível pela afirmação de que o programa deveria ser incrementado ou, por via negativa, pelo uso e abuso de superstições e aí voltamos ao Tratado Teológico-Político de Spinoza, com um discurso de terror sendo organizado para aflorar os medos dos cidadãos; medo é tristeza causada em relação a evento incerto, logo, equivale a resignar preventivamente aqueles que você deseja dominar (e que você domina desse jeito, reduzindo a capacidade de agir deles de antemão), o que hoje demanda um discurso muito sofisticado que só a mídia corporativa é capaz de operar.


A situação se complica um pouco mais pulamos para o item II, o Tratado Teológico Político não está na ordem do dia apenas porque a mídia corporativa tem agido como o novo avatar da dominação sacerdotal, mas porque ela também faz uso da dominação sacerdotal em pessoa, para defender seu projeto, criando medos absurdos em meio às populações mais humildes, ensinadas há muito a temerem os direitos civis e a enxergarem as liberdades - mesmo as burguesas, limitadas à individualidade - de maneira nociva como forma de perpetuar a servidão voluntária - a questão urgente da Filosofia Política, seja no século 17º ou agora. De repente, surge o fantasma do aborto que, claramente, nunca foi pauta da campanha de Dilma (nem poderia estar de maneira formal, afinal, isso é uma questão legislativa) e na prática, nunca foi proposto como ameaça à vida por nenhum grupo: Nunca se pôs em dúvida a decisão moral de ninguém em abortar, o que sempre esteve em jogo é se moralmente você é a favor da criminalização de alguma menina que fez aborto. No fim, isso nunca teve a ver com ataque à vida, mas defesa da mesma, do mesmo modo que isso trata da questão da própria disponibilidade dos corpos das pessoas por elas mesmas, o que é um primeiro passo para Liberdade, convenhamos. Sobre o casamento gay e os direitos dos homossexuais, então, me nego a falar em qualquer coisa que os negue ou que proponha sua criminalização.

É essa enormíssima briga que Dilma Rousseff terá pela frente, mas a contradição da direita está aí expressa, conjugada com a enorme pressão posta contra sua figura pessoal, o que serve de cortina de fumaça - e eis aí um problema permanente do presidencialismo, a frequente personalização da política. Os setores mais à esquerda do heterogêneo eleitorado de Marina - sim, existe uma enorme diferença entre quem votou em Marina no Nordeste ou no Rio e de quem votou em Marina em São Paulo Capital e quem o fez em sua própria Região Metropolitana - já se mostram simpáticos à candidatura Dilma (como o Alexandre Nodari) e é com eles que é preciso conversar. A extrema-esquerda, cuja votação foi pequena e se deu nas zonas urbanas, precisa estar ciente do que está em jogo agora. O Tsavkko, que votou no Plínio de Arruda Sampaio, escreveu um post a esse respeito que ilustra bem essa situação. Trata-se de um momento que é um verdadeiro divisor de águas na nossa história. José Serra não é, em si, o pior político que poderia emergir do PSDB, mas sua candidatura é a pior que o partido já lançou à Presidência da República. Não estamos mais vivendo um a discussão entre o projeto posto ou a modernização conservadora contra um projeto em abstrato que se propõe melhor, mas sim de um projeto que já foi abstrato e em sua aplicação rendeu sim seus frutos - e por isso provocou uma reação forte dos setores conservadores, como não poderia ser diferente - contra um outro projeto que se pauta por falácias e ataques de toda a natureza para, no fim das contas, lançar um ataque contra o que temos - se não fosse isso, não teria razão de existir. É o que está em jogo, trata-se de uma bifurcação bem clara no nosso projeto de país e da nossa responsabilidade sobre tudo isso.






4 comentários:

  1. Se servir de consolo: alguns amigos meus que votaram em Marina no 1° turno agora fecham com a Dilma. Essa zaga penso eu, está bem guarnecida. O problema são os evangélicos, Crivella e outros líderes pentecostais, vão cortar um dobrado e conjurar todo o poder do Espírito Santo pra tirar o diabo do corpo dessa gente, em nome de Jesus, naturalmente. Silas Malafaia, um pastor famoso no movimento evangélico, declarou apoio a Serra com base na neutralidade demonstrada pelo PSDB na atual legislatura em relação a temas como aborto e casamento gay. É um cara perigosíssimo em sua tacanhez, mas tem o dom da oratória e é extremamente persuasivo em seus argumentos. Outro segmento que precisa ser trabalhado é o daqueles que gostam de Marina, pessoa física, Na noite de sábado acompanhei no JN um corpo a corpo dela aqui no Rio em dia de final de campanha, fiquei impressionado com o carisma que cerca a figura dela no contacto direto com o público, as pessoas adoravam posar com ela para as ubíquas câmeras digitais. Vejo esse segmento como passível de ser trabalhado e ganho para as hostes de Dilma.

    P.S: vê se anima o Miguel do Rosário, o cara tá muito jururu.

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  2. Marola,

    Aí é que está, meu caro, o eleitorado de Marina é profundamente heterogêneo. Quem votou nela no Rio - um estado tradicionalmente anti-tucano - tende a votar em Dilma agora. O pessoal que votou nela nos municípios da região metropolitana de São Paulo e no Nordeste idem. Quem o fez no interior de São Paulo não. Esse factóide dos evangélicos é curioso. Há quinze dias atrás, isso não existia, tiraram essa questão da manga e isso virou notícia - é questão do PT não morder essa isca, mostrar que não é contrário a nenhuma religião e que defende o direito de todos terem lá seu credo, sem esquecer que, claro, ele foi muito bem votado em estados com um número de evangélicos proporcionalmente maior do que a média (Rio de Janeiro, por exemplo) ou na periferia de São Paulo. Essa história pode se tornar crível só - e somente só - se o PT engolir essa história - que em sua pequena gradação só interferiu no resultado do Primeiro Turno porque Marina em si agregava o voto de alguém que poderia ter comprado esse factóide e, ao mesmo tempo, com um eleitorado laico de "classe média", cuja insatisfação foi habilmente catalizada pelo discurso midiático.

    aquele abraço

    P.S.: Um problema da militância petista, segundo um insuspeito amigo meu do PC do B, é que ela varia entre o já ganhou e o já perdeu; ambas as condutas são igualmente prejudiciais na campanha, mas é um pouco do que o PT sempre foi, não sei se o otimismo petista traz efeitos eleitorais assim como o pessimismo - o que a turma tem de aprender a fazer, é transformar tristeza em lamento, pois do lamento, como já dizia Deleuze, se faz a poesia - como a Rússia pós-Servidão e a América pós-escravidão provam.

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  3. Belo post, Hugo! O primeiro turno foi uma vitória, cara! Cumprimos o objetivo inicial de eleger uma grande bancada legislativa de apoio à Presidenta Dilma. A bala de prata ao final foi a promessa de eleição em primeiro turno que não se confirmando deixou parte da militância inquieta.

    Em frente!

    Faz pensar sua argumentação que o medo do novo contribui para nos infringirmos uma dominação voluntária. A situação é ruim mas o medo do pior nos impede de tomar providências e empreender mudança. Como dizia Hamlet:

    É mais nobre suportar dardos e flechas de ultrajante sina ou tomar armas contra um mar de angústias e firme, dar-lhes fim.

    Gostei do debate na band ontem e a posição da Dilma na questão do aborto, chamando o tema e citando o fato que em dois dias morre uma mulher em conseqüência de aborto. É tolerável? Vamos cruzar os braços frente a essa triste estatística?

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  4. É isso mesmo, Adriano, o resultado que saiu das urnas em 3 de Outubro, foi uma vitória mesmo. A base governista cumpriu a meta no Senado e a oposição diminuiu muito mais do que eu supunha para a Câmara Federal - não esperava, por exemplo, que o PSDB perdesse tantos deputados, o DEM sim. Tudo bem, Dilma pode não ter vencido como eu, particularmente, esperava - e o Segundo Turno ter sido lamentavelmente causado por uma onda de terror lamentável e não por propostas -, mas ela venceu sim. Talvez isso sirva para a campanha assumir uma postura mais pró-ativa que lhe faltou nos últimos quinze dias de Setembro; ontem, por exemplo, gostei muito do que vi, Serra foi esmagado por uma Dilma que estava se sentindo à vontade para ser ela mesma - como bem (ou mal) o sabe Agripino Maia.

    abraços

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