sexta-feira, 1 de outubro de 2010

A Unasul e o Golpe Equatoriano

(manifestantes pró-democracia em Quito -- momento crítico. Foto:AFP)

Ontem, acompanhei com ansiedade e preocupação o Golpe de Estado no Equador - felizmente frustrado pela mobilização popular interna e a postura inflexivelmente democrática dos líderes da região. O ponto que gostaria de ressaltar nesta análise é justamente a articulação continental que acabou por isolar e esmagar os golpistas. A América Latina pode até continuar uma região problemática, mas as políticas externas integracionistas dos governos de esquerda da América do Sul estão fazendo toda a diferença pelo menos do Canal do Panamá para baixo, naquilo que concerne à garantia da Democracia - especialmente porque eles organizaram de forma articulada e formal o acordo tácito pró-democracia que se estabeleceu desde os fins dos anos 80 na região, o que resultou recentemente na Unasul, órgão continental cuja breve existência já dirimiu uma escalada golpista na Bolívia e, agora, no Equador. 


O passo inicial para chegarmos ao marco atual foi a postura pró-ativa de Raúl Alfonsín e José Sarney, primeiros presidentes posteriores às ditaduras militares de Argentina e Brasil, que resolveram construir o Mercosul, edifício que resistiu até mesmo à demagogia menemista na Argentina e ao posicionamento dúbio - que embora democrático, era terrivelmente hesitante - de FHC - sim, os anos 90 foram uma época complicada. Lula vence as eleições no Brasil e isso fez com que não só as velas como os ventos que moviam a política externa do Continente mudassem de direção - assim como previam Nixon e seus tecnocratas nos anos 70 quando diziam que para onde o Brasil fosse, levaria todo o resto do continente; e assim foi. A ação rápida e enérgica dos líderes da região em se reunirem imediatamente em Buenos Aires para, logo depois, enviar seus chanceleres para o Equador, quando já suprimido o golpe, foi lapidar. Embora Lula não tenho participado pessoalmente da reunião na Argentina, sua reação foi rápida e inequívoca no que importa a condenação do Golpe de Estado.


O que aconteceu em Quito, longe de ser um mero agravamento inesperado de uma crise entre governo e militares por questões econômicas, tratou-se apenas de uma justificativa que as elites locais lançassem mão de um estrategema golpista, usando-se de oficiais contrários ao Presidente Rafael Côrrea - especialmente da Força Áerea, o que é sempre particularmente problemático. O desenrolar da situação revela uma situação até então ignorada sobre aquele país: Se por um lado há um racha preocupante nas FFAA locais, por outro, Côrrea segue com mais força junto ao seus concidadãos do que se supunha. Vítima de bombas de gás dos golpistas e sequestrado no Hospital Militar, o jovem economista Côrrea conseguiu com êxito mobilizar a população e articular uma resposta à altura com os governos vizinhos; cabeça de um governo reformista que não só instituiu uma nova - e moderna - Constituição em seu país, ele também ajustou as contas públicas, conseguindo bons resultados econômicos e sociais; naturalmente, ele sempre esteve na alça de mira de parte das elites locais, anacrônicas e parasitárias como em muitos lugares do continente, protagonizando ainda um histórico confronto diplomático com o ex-Presidente colombiano Álvaro Uribe, quando da invasão do seu território pela Força Áerea colombiana, numa ação que matou alguns lideres das FARC:  Atitude vergonha entre atitudes vergonhosas de Uribe, posto que se Bogotá entendia que havia cumplicidade entre Quito e aquela organização, deveria ter recorrido aos órgãos internacionais cabíveis, se não, deveria ter articulado uma ação conjunta com o país vizinho e não ter violado os princípios mais elementares da boa convivência entre as nações.  


Falando em Uribe, isso me lembra outro ponto: Se por um lado ainda é verdade que garantia da Democracia na América do Sul ainda depende mais da ação direta de alguns dos seus governos nacionais do que de algum tipo de ato reflexo institucional continental, por outro lado, também é verdade que ocorre um processo de institucionalização dessa lógica, o que se pode inferir pelo comportamento dos governos de direita recém-eleitos no continente: Tanto Sebástian Piñera do Chile quanto Juan Manuel Santos da Colômbia estiveram presentes na reunião de emergência em Buenos Aires, o que revela que desde o momento em que os variados atores políticos da região, mesmo alguns tão estranhos para a esquerda democrática, já se comprometem automaticamente com a Democracia, é sinal que as coisas estão mudando. Ao passo que a estrutura multilateral da Unasul funciona, ela se legitima internamente e transforma políticas de Governo (compartilhadas apenas por certos movimentos de esquerda) em políticas de Estado.


Isso não quer dizer que a direita do continente se tornou boazinha ou seu projeto se tornou funcional - por meio de alguma transmutação mágica dos antagonismos reais em algum tipo de pasmaceira kantiana -, mas sim que os fatores reais forma afetados de tal maneira pelos movimentos de esquerda que boa parte do seu potencial ofensivo foi neutralizado. O processo, claro, ainda está em curso e nesse sentido, a continuidade do Governo petista faz-se imprescindível não só Brasil como na América do Sul e esse certamente é um dos meus grandes motivos que me levarão a votar em Dilma Rousseff no domingo. Não custa lembrar que as coisas ainda estão longe de do razoável no nosso próprio país - aliás, bem longe: Não tem uma semana que presenciamos uma bisonha marcha que remetia clamor golpista do Brasil do início dos anos 60 enquanto o candidato oposicionista José Serra, destoando para pior das próprias posições históricas de seu partido, não cansou de ultrapassar os limites do absurdo no que diz respeito às suas opiniões sobre a política de relações exteriores. Se por um lado devemos nos manter à espreita, por outro lado, podemos sim relaxar um pouquinho e comemorarmos o que aconteceu no Equador depois das horas críticas, foi, sem dúvida, uma grande vitória nossa.




P.S.: Também não custa também lembrar com carinho que, na crise atual, mais uma vez vimos a Presidenta argentina Cristina Kirchner assumir uma postura corajosa e tomar atitudes brilhantes. CFK, merece nossos aplausos.


Atualização de 01/10 às 23:28: Segue aqui link socializado pelo Idelber no twitter com o rescaldo do Golpe: Civis e militares leais a Côrrea mortos, centenas de feridos. 


Atualização de 02/10 às 11:43: O Discurso de Côrrea depois do golpe de Estado frustrado:






4 comentários:

  1. Poxa, isso que chamo de análise rápida! Nem vou ler a Folha de depois de amanhã hehehe
    Parabéns Hugo

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  2. Grande Célio! Um elogio vindo de um cara que é capaz de consertar um Som com um clip é uma honra tremenda :-) Agora, falando em jornais impressos: Não fosse o Pagina 12 e ia ser difícil saber o que aconteceu com razoável precisão - que inveja dos argentinos!

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  3. Estive na Argentina no ano passado e também constatei que o Página 12 é de uma densidade maravilhosa (mais até do que a edição pela internet). Até as revistas de humor, como a Revista Barcelona, são brilhantes, a vista do que tem sido publicado por aqui (essa da Espanha Campeã Mundial de Futebol é impagável).

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  4. Patrick,

    Genial essa da Espanha, hein? E a cultura dos argentinos é algo impressionante, infelizmente, eles falharam em construir saídas políticas à altura do seu país. O momento atual, no entanto, é bom. Há luz no fim do túnel.

    abraços

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