quarta-feira, 13 de outubro de 2010

A Esquerda e o Tempo



Recapitulemos
. Quem tem seus sessenta anos, hoje, recorda sua juventude dura sob o anos de chumbo. Quem tem seus cinquenta, lembra da distensão e da abertura lentas - quase inalcançáveis -, talvez uma fagulha de liberdade no horizonte expresso na beleza das Diretas que logo se desmanchou no ar. Quem tem seus quarenta anos assistiu a dureza que foram os anos Collor, quando todo o esforço por democratizar este país - que milagrosamente deu em algo como a Constituição de 88 - viu-se estatelar-se na parede após uma eleição direta que elegeu um fantasma do meio-dia, títere entre títeres, destinado a ser o instrumento - com a face simpática que os tempos novos exigiam - do grupo abjeto que governava esse país pelo menos desde 64. Quem tem seus trinta, lembra-se do que foi entrar na fase adulta em uma época na qual a exploração dava lugar à pura e simples exclusão em um país que se desmanchava. Quem tem seus vinte, como eu, está a viver em um momentos duros do início do Governo Lula, nos quais, a realidade se impunha de maneira dura frente ao recém-eleito governo democrático e popular, forçando-o a tomar atitudes duras, que ora eram é o remédio amargo que a situação demandava e ora eram o mero exercício de surrealismo político de estrategistas que passaram tempo demais em seus ideais.

A minha geração é a primeira na história deste país que assiste ao choque do que seria a tentativa de implementar um governo de esquerda. O impacto desse choque, já sentido na Europa e mesmo em alguns lugares da América Latina há tempos atrás, é o de experimentar o real e sua violência avassaladora no campo da Política. Não falamos mais do que poderia ser, mas do imediato do que pode ser. É ver as forças do poder instituído, que não são neutras - como pouca coisa é, aliás -, interferindo com todas as suas forças sobre o projeto que precisa ser consolidado, ora roubando-lhe as forças, ora o conduzindo para direções intoleráveis. A juventude do PT enquanto partido e, sobretudo, a ética idealista, de fundo católico progressista, que o envolvia tornou o processo particularmente mais duro - assim como a ansiedade por séculos de demandas não realizadas em decorrência de um sem número de movimentos transformadores derrotados. A história da reivindicação social no Brasil, é uma história de derrotas, gloriosas, mas ainda assim derrotas.


É verdade que o Brasil não está tão bom quanto poderia, mas também é verdade que ele nunca esteve tão bem quanto neste momento. O crescimento econômico, a distribuição de renda, os empregos, uma política externa que não se perde na vergonha da submissão nem nos desvarios do nacionalismo e, sobretudo, a quebra de certos dogmas sobre os quais se assentavam o modo de vida insustentável e excludente que alguns impunham como a miserável mão única são conquistas inegáveis - não diria, infelizmente, indeléveis, posto que as cortinas de fumaça da ideologia são capazes de tudo. Os ajustes finos, isto é, a consolidação dos direitos civis, a regulamentação da mídia - que está na Constituição de 88 por regulamentar -, a construção de uma doutrina firme que assegure a laicidade do Estado e até mesmo ajustes grossos como a questão da política agrária - em relação a qual a questão ecológica é imperativa neste momento - não foram mesmo feitos. O Governo do PT, seu aparente fracasso de início e seu renascimento como Fênix na forma de um nunca antes visto social-desenvolvimentismo, ainda que os ajustes dos quais pode se esquivar, não sejam mais possíveis - se é que em algum momento, foram. É uma história curiosa e bonita.


No ínterim entre esse movimento no interior do PT - e por causa dele - surge o PSOL, Partido Socialismo e Liberdade, que teve uma importância muito grande na minha vida, embora nunca tenha militado nele. Ele nasce no período da minha entrada na vida adulta e teve para mim - assim como provavelmente para toda uma geração de jovens esquerdistas que amadureciam sob o impacto do início do Governo Lula - um significado muito forte. Unir Socialismo e Liberdade, esses dois gêmeos siameses que a História - e o Poder - insistiu em separar impedindo que nem um, nem o outro se concretizassem, ser um modelo que superasse o sectarismo dos pequenos partidos da esquerda - "revolucionária" - que não dialogavam com os setores reais da sociedade e, ao mesmo tempo, não cair nos descaminhos do projeto petista frente ao poder hegemônico e, sobretudo, gritar - isso mesmo, fazer catarse - contra o estado de coisas da política nacional que parecia inamovível - o eterno entulho autoritário. 


A roda da História, entretanto, não pára e tampouco não deixa de nos pregar peças; Heloísa Helena, de uma Olympia de Gouges extemporânea - fiel a uma Revolução que não foi fiel a si mesma - torna-se apenas mais um dos ecos desconexos da cacofonia reinante naquele partido. De repente, a crítica à esquerda do caminho seguido pelo PT tornou-se uma obsessão em relação à figura pessoal de Lula, ao passo em que se mantinha inerte a direita que se reorganizava, seja na sua versão liberal-burguesa ou na sua versão popular, orgânica e obscurantista - esta sim, muito mais do que primeira, debaixo do nariz de Lula, o que passou desapercebido -, o que estranhamente conflui na candidatura do senhor Serra. Toda essa confusão, por óbvio, acabou por afastar-me dele. O PSOL repete os erros que surgiu para combater e nem mesmo a candidatura de Plínio de Arruda Sampaio, respeitável ancião e guerreiro da esquerda, muda essa trajetória. O PT prossegue como o partido de massas, o único partido a se pôr à esquerda do centro em nossa história a ter apelo popular, com ampla votação nas periferias. O projeto petista, cujo implementação produziu uma transformação real - e longe de ser pequena - nos últimos anos ainda segue como o mais efetivo nesse campo.


A despeito de toda confrontação, dissonâncias e a violência fratricida comum à esquerda - não apenas entre seus vários grupos, mas acima de tudo dentro deles mesmos. - não pode dar lugar, mais ainda, ao desprezo pelas nuvens negras que trovejam no horizonte. Os erros que conduziram a uma eleição discutida nesses termos - entre o continuísmo e o retrocesso - não podem ser repetidos e a esquerda não pode repetir o erro de se unir apenas na desdita, seja por ignorar os aspectos positivos desse momento ou por subestimar o que se avizinha. Um convite ao real não equivale a aceitar sucumbir à pasmaceira conservadora, mas um chamado a compreender os obstáculos - bem como as possibilidades - concretas do que está posto para não terminarmos numa bifurcação cujas saídas possíveis são apenas o Sonho ou, aí sim, a conversão definitiva ao estabelecido. E do surrealismo, só aceitemos a paranoia crítica.

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