quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Resquiescat in Pacem Néstor Kirchner


A notícia da morte de Néstor Kirchner, ontem, abalou-me profundamente. Isso tem a ver tanto com a admiração que eu nutria por ele quanto pela estupefação pelo seu repentino desaparecimento. Kirchner foi dos grandes estadistas do nosso tempo e é espantoso que se esteja a falar em "legado controverso" de sua parte, principalmente se apelarmos para aquele pequeno detalhe chamado memória - tão esquecida ultimamente -, que nos aponta para o fato de que o cenário em que aquele jovem governador patagonês assumiu a Presidência - o de um país destruído anestesicamente por uma política econômica suicida, incapaz sequer de se autosustentar.


Talvez esteja a ser ingênuo nesse caso, uma vez que é perfeitamente natural que se fale em legado controverso de alguém que, vejam só, superou rapidamente o contexto de hecatombe em que seu país se encontrava devido a uma certo receituário que os arautos da democracia, até hoje, por aqui defendem - como em tantas outras partes da nossa Pátria Grande -; pior ainda, Kirchner fez isso por meio de um projeto que contradizia tudo aquilo que vinha antes, o plano perfeito de Menem, algo semelhante àquilo ao que foi Collor pretendeu por aqui - mas que felizmente deu errado, o que permitiu o Brasil dar certo.


A história argentina é das mais fantásticas do mundo ocidental, ainda que o nosso ufanismo pátrio, não raro provoque, nos distancie dela. É um país cuja formação social e econômica estabeleceu as bases para um futuro promissor, mas que sofreu mais descaminhos do que se pode supor. Da visão estratégica da política externa em Mitre, seguida pela emergência da questão social em Yrigoyen, das controvérsias de Perón, o país caminhou relativamente bem, embora a não consolidação de todas as conquistas no plano institucional lhe tenha sido fatal.

A fatalidade, em se tratando de Argentina, é particularmente mais dramática do que a média, com uma Ditadura Militar mais sagrenta do que a de seus vizinhos que teve, ainda por cima, o desfecho trágico das Malvinas. A breve luz do governo Alfonsín foi apenas um interlúdio de sanidade entre o descalabro militar e a violência do menemismo, a emergência da privatização dos espaços público - como nos lembra Negri - elevada ao extremo. E foi nesse contexto que surgiu Kirchner.

Seu legado, portanto, situa-se na condução da mais radical política de direitos humanos do continente, numa retomada do projeto de integração continental de Alfonsín - só que de forma mais radical - e na recuperação econômica por meio de uma política de desenvolvimento; os breves quatro anos em que esteve a frente de seu país resultaram em um quadro de estabilidade marcado pela retomada do significado do espaço público, do desmantelamento da falácia de que a culpa do fracasso de 2001 se devia a algum mal congênito creditado a formação da Argentina.

Seus exitos resultaram na eleição de sua mulher, a Senadora Cristina Fernández de Kirchner,  como sua sucessora; Sua atuação como secretário-geral da Unasul foi marcada pela luta intransigente pelo aprofundamento da integração sul-americana e da defesa mais viva da democracia - tendo enfrentado a recente crise equatoriana com coragem, evitando o pior. O Presidente Lula decretou três dias de luto por sua morte. Como já andam dizendo por aí, que sejam três dias negros para um dia de luz.

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