quarta-feira, 16 de junho de 2010

Os Caminhos da Social-Democracia

Enquanto a Copa segue rolando em gramados sul-africanos, a campanha eleitoral segue, como era de se esperar, num ritmo mais lento, enquanto se prepara para retomar o ritmo anterior e superá-lo. O factóide pré-Copa fica por conta de Serra e a questão do aparelhamento do Estado pelo PT. Evidentemente, trata-se de uma peça meramente retórica que falseia uma realidade muito mais complexa. Eis o comentário que eu fiz  sobre o assunto para o blog do Nassif:


Um dos pontos que passam desapercebidos é como os partidos bolsheviks europeus orientais e asiáticos- e suas cópias mal-sucedidas na Europa Ocidental e América Latina - guardam uma raíz profunda com a social-democracia kautskyana - e que fique claro que a reflexão que eu estou propondo se dá para além do binarismo maniqueísta, e por tabela moralista, que é comum ao debate político nacional. Essa raíz se expressa historicamente no entendimento comum do partido enquanto instrumento de vanguarda organizador das massas, organizado internamente como organização técnico-burocrática, cujo meio para promover as transformações sociais - e assim dirimir a contradição capital/trabalho - é a conquista da hegemonia do Estado.

Lenin, que bebeu das águas do pensamento kautskyano por um bom tempo, pode ter rompido com o inspirador - política e teoricamente -, mas isso não foi de um dado a ponto de transformar o Partido Bolshevik em algo que não guardasse qualquer semelhança com a linha dominante da social-democracia alemã da época. A verdade é que o elemento central e prático que levou à distinção entre bolsheviks e social-democratas foi a condição da Rússia Tzarista, o que tanto deu aos teóricos bolsheviks uma visão mais privilegiada da divisão internacional do trabalho como também o vácuo de instituições burguesas - partidos, parlamento etc - e organizações proletárias coesas - os soviets estavam longe do que significavam em amplitude e profundidade o sindicatos alemães contemporâneos.
Dessa bifurcação necessária, surgiu o regime de partido único na Rússia e a modernização tecno-burocrática do Estado em boa parte da Europa Ocidental - e ambos os movimentos se ligavam por uma concepção semelhante de História e de "progresso".
Com Brasil não é diferente, a síntese dialética entre a miscelânea de teorias políticas socialistas - europeias orientais ou ocidentais ou não, até mesmo chinesas - desembocaram no PT que guarda em suas origens não um partido revolucionário, mas sim um partido de massas reformador e reformista, uma social-democracia tupiniquim, contando com participação ativa de sindicados e movimentos sociais. O PSDB, apesar do nome, foi construído de cima para baixo e ainda que em seus primórdios correspondesse ao ideal social-democrático, na prática nunca poderia ser confundido com um - fenômeno semelhante se viu acontecer em Portugal com o partido social-democrata local.
Por outro lado, temos as peculiaridades brasileiras. Um Estado arcaico, cuja última inflexão modernizadora aconteceu nos anos 30/40 e nos anos 80 encontrava-se em grave crise. É nesse cenário que surge a Constituição de 88, positivando direitos e garantias individuais e sociais -ainda que as segundas o tenham sido apenas programaticamente na maior parte das vezes- , instituindo a função social da propriedade privada, fazendo prevalecer a doutrina germânica dos contratos. Enfim, foi criado um instrumento destinado a ser a pedra de toque da modernização do sistema jurídico, o que criou uma tensão dialética entre o projeto dos fins dos anos 80 e a materialidade política débil, disfuncional e pré-iluminista sob a qual vivia boa parte do país.
É dentro dessa ambiente de tensão que passam a se dar as disputas eleitorais entre PSDB e PT, seus respectivos governos. Trata-se de uma relação de oposicionismo para obter a hegemonia de um Estado tensionado pelo que ele sempre foi e pelo que ele está se tornando, com o advento da globalização aparecendo e tornando o jogo mais complexo ainda. Isso transformou internamente tanto PT quanto PSDB. Isso, evidentemente, vai para além da retórica barata de palanque de Serra, que nem é útil para disputa nem avança no debate sobre a organização do Estado e as possíveis implicações disso.

P.S.: O novo blog do Nassif é muito bom, as funcionalidades implementadas são muito bacanas bem como o layout é mais bonito do que o interior e ainda mais "acolhedor" - como era o primeiro blog dele no IG. Acho sensacional a ideia de construir uma comunidade de comentaristas, muito embora discorde que só possam comentar os cadastrados - que também não podem, até onde eu sei, linkar a própria URL no nick. De qualquer modo, vale a pena dar uma passada lá.



2 comentários:

  1. Para mim o pior do Nassif é que ele quase só public coisas de terceiros, quase sempre sem indicações adequadas, muito menos links.

    No comentário que escrevi no meu blog sobre a entrevista de Serra para a CBN, apontei que ele deu também uma razão para justificar sua afirmativa de que o PSDB não aparelha o Estado: num ato-falho muito revelador, ele contou aos ouvintes que o PSDB, na verdade, sequer tem quadros para aparelhar qualquer coisa.

    Talvez seja por isso a situação lamentável da gestão Serra em SP, e a terceirização de tarefas políticas para os grupos de comunicação, devido aos problemas para conseguir operacionalizar qualquer coisa via partido.

    Ele não comentou, mas também existe o fato de que ele próprio costuma inviabilizar as tragetórias políticas dos principais quadros tucanos, apenas para que não possam lhe fazer sombra.

    O que também pode ser afirmado de Lula em relação aos quadros petistas.

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  2. André,

    O meu enfoque sobre a questão do "aparelhamento do Estado" é que ele é mais profundo do que se pensa. Teoricamente, a particular concepção de socialismo que desemboca na social-democracia e no bolshevismo parte da ideia de uma vanguarda partidária - tecnoburocrática, por suposto - instrumentalizando o Estado - e que no fim das contas, acaba por ele instrumentalizada.

    Somado isso às peculiariedades brasileiras, em especial, essa tensão que existe entre a Constitucional de 88 - que, formalmente, se funda no idealismo republicano-democrático - e a estrutura política existente no país acabam produzindo um fenômeno novo e particularmente bizarro.

    Se eu fosse adotar a retórica de palanque de Serra para tratar do assunto, diria que o PSDB também "aparelha" o Estado quando aloca 25% da verba da educação no gabinete do Secretário de Educação - como o Nassif provou - e como ele faz, digamos, um processo de "depuração" na mesma educação pública, pagando uma miséria para os professores e razoavelmente bem para os burocratas da Secretaria de Educação - que, em muitos casos, acabam cooptados. Por outro lado, ainda que em muitos casos o PSDB não ponha "gente sua" diretamente no poder, não são poucos os casos onde apoiadores ou amigos vencem licitações ou ganham concessões de todo o tipo - como recentemente veiculado na CartaCapital recentemente, FHC e Lula decidiram os vencedores do capitalismo brasileiro nos anos em que estiveram no poder.

    um abraço

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