quarta-feira, 23 de junho de 2010

A Copa do Mundo, o Patriarcalismo e o Nacionalismo

(foto retirada daqui)

A Copa do Mundo pode ser vista como o melhor torneio futebolístico do mundo, mas ela não é exatamente isso; os jogadores que lá estão, em grande parte, podem estar entre os melhores, mas eles não estão lá por esse motivo: A Copa reúne, a priori, as melhores seleções nacionais do planeta, portanto, não basta ser bom, é necessário ser considerado bom pelo treinador de uma seleção nacional que está entre as melhores. Se o maior jogador do mundo estiver no Suriname, ele dificilmente estará na Copa do Mundo. O critério inicial de escolha é nacionalidade não o mérito técnico. Portanto, por mais que se enalteça a Copa enquanto competição futebolísitica, ela é, sobretudo, uma competição política.

O cerne de tudo é a ideia de nação. A palavra natio em latim era o equivalente, grosso modo, ao helênico etnos, um grupo humano unido por uma certa identidade comum assentada, sobretudo, em relação ao seu nascedouro. A ideia de nação já nasce, portanto como uma extensão da família e de uma maximização de sua relação doentia. O termo muda ao longo do tempo até chegar à formulação atual. Nação torna-se, portanto, uma organização humana, cujo fundamento de sua união reside na interconexão de indivíduos por símbolos políticos comuns que criam uma identidade comum entre eles, fazendo com que se reconheçam como parte de uma família maior. É pura ideologia. Portanto, enquanto a etnia conserva razoavelmente o mesmo significado do helênico etnos, a nação ganha uma conotação diferente, podendo se confundir com uma determinada etnia, com várias delas ou nega-las a todas, tudo ao sabor do que diz a ordem estabelecida - ainda que a etnia seja, em si, também ideológica, muito embora se assente sobre critérios reais, ainda que usados de forma direcionada à dominação. 

Como toda produção ideológica, isso não vem do nada. Ela se encontra no processo de afirmação da burguesia enquanto classe dominante, onde, para legitimar sua dominação foi elaborada a ideia - tão astuciosa quanto falaciosa - de uma grande família unida por figuras e rituais comuns, onde se reproduziria a estrutura de dominação das famílias nucleares patriarcais, com o burguês assumindo-se como o Pai, isto é, aquele responsável pela condução do grupo e pela determinação do que não pode ser feito, estabelecendo as vedações e tabus. Trata-se de um conceito mesquinho, pois por detrás do elemento de união, paira, soberana, a ideia de exclusão, o fundamento real de todo esse movimento. Embora não seja tão excludente quanto o conceito de etnia - pois este se refere ao nascedouro, ao genótipo e ao fenótipo, portanto, algo via de regra imutável -, ela põe para fora também: Aqui quem está de fora não é aquele que não pertence à semente fundante, mas aquele que é estranho à estrutura formal de organização, o que possibilita, via de regra, sua inclusão com o tempo desde que se pague um preço em troca - lealdade, bons serviços, algo normalmente conquistado por uma contínua e exploração realizada por aqueles que estão dentro.

A ideia de nação é mesquinha porque, mais do que excluir, ela monopoliza os afetos daqueles que fazem parte dela, tal como a família - e sim, é uma ideia de Negri - de modo a direcionar essa força, sob os auspícios do bem comum, para a manutenção de uma ordem hierárquica - que como todo hierarquia, se assenta sobre o truísmo primeiro, o "porque sim", única explicação discursiva possível para o "isso é meu" -, o que tem por consequência prática a construção de mais um instrumento que serve como obstáculo da realização do indvíduo; se eu devo amar mais a minha nação - e o que vem dela - do que outra - e do que vem da outra -, logo, não posso amar plenamente e assim não poderei efetivar a potência do meu ser - pois o amor serve para fazer com que finalmente nos tornemos quem somos, ao mesmo tempo, que faz isso com o ente amado, no caso dele ser (poder ser) consciente disso. A divisão provocada pelo nacionalismo impede a realização dos seres humanos porque hierarquiza a distribuição do amor, o que o esvazia.

Pois então, voltemos à questão dos símbolos. Podemos falar em bandeiras, hinos, datas comemorativas, monumentos, exércitos e suas paradas militares, mas algo mais vivo pode ser pensado e efetivado: O esporte.  Uma sublimação da violência militar, sujeita a regras que normalmente não levam à morte - só uma eliminação simbólica. A figura simbólica do patriarca é assumida pelo Treinador - num esquema de delegações que também é visto na política, no caso dos representantes do Estado. Ele é aquele responsável pela condução do grupo, da produção de discursos que servem como critérios para legitimar as inevitáveis vedações e exclusões. Em países grandes e, ao mesmo tempo, sem tradição militar como o Brasil, o esporte coletivo torna-se a mais importante esfera de representação da nação, no caso, falamos aqui de futebol. A seleção nacional assume o papel de personificar a ideia de nação e, por conseguinte, de ser a família na qual os indivíduos buscam concretizar as frustrações de sua própria vida familiar, profissional e política. Tudo sob os olhos do grande Pai-Treinador, o infeliz cidadão a quem cabe a desditosa tarefa de organizar aquilo que não passa, na prática, de uma equipe de futebol que foi criada para ser muito mais do que jamais poderá ser - e essa ilusão é vendida pela máquina de propaganda do poder, especialista em vender falsas expectativas -, condenado, portanto, ao escárnio da insatisfação geral, aplacada, às vezes, pelo gozo gerado por um título. 

A isso, paradoxalmente, opõem-se a alegria libertadora provocada pelo futebol em si, pois desde que se passe a atribuir significado à Copa pelo torneio esportivo que é - e do esporte como uma saída astuciosa para a Guerra - em detrimento do nacionalismo, encontraremos o caminho da superação dessa armadilha pela via do esvaziamento do discurso dominante. Enxerguemos o futebol, pois é isso que, mesmo por vias tortas, é do que se trata.

7 comentários:

  1. Ah, o bom e velho Hugo de volta!

    Curiosamente, estava eu vindo de a pensar o quão triste é um povo que precisa de um time de futebol para se reconhecer enquanto povo.

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  2. Velho talvez, bom fica por conta do amigo :-)

    Eu vou numa direção um pouco diferente: Um grupo humano que precisa se reconhecer como uma unidade independente do resto de sua espécie é, necessariamente, triste e tal reconhecimento, caso concretizado, é trágico.

    um abraço

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  3. Se eu pertencesse ao time que gosta de sofismar, responderia sofismático demais, mas como não sou, questiono o sábio visitante: O que o nobre colega entende por economicista e por qual motivo o post assim pode ser caracterizado?

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  4. Com tanto Freud no meio. Mas o que eu não concordo mesmo é que "o amor serve para fazer com que finalmente nos tornemos quem somos"...Vc imagina uma especie de dignidade ou essencia interior que nós devemos recuperar (ou desenvolver)..Na mia opinião de sofista esse quem somos não existe..Abraços...

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  5. sofismático demais seria um tremendo elogio pra mim....Eu gosto dos sofistas...:)

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  6. Não, Fábio, eu perguntei quais elementos poderiam caracterizar o post como economicista, de Freud não há muito aí, tem mais coisa de outros pensadores, tente identificar. O centro da minha argumentação sobre o amor não é sobre necessariamente uma essência interior, mas sobre a potência do nosso ser.

    um abraço

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