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A Multidão e a Polícia no Cairo |
O processo de descolonização do Norte da África e do Oriente Médio, coincide, a grosso modo, com um período de desmonte do Império Otomano e a ascensão dos Estados Unidos enquanto a grande potência econômica mundial. Washington opta por uma política de interferência permanente naqueles jovens Estados, geralmente por meio de aliados locais - quase sempre ditadores - e do controle direto de pontos estratégicos, com direito a incursões militares, em suma, imperialismo à americana em profusão por conta da localização estratégica de vários daqueles países e, claro, da existência de petróleo neles - o ouro negro, combustível da máquina capitalista americana. Instituições frágeis são subornadas, corrompidas ou simplesmente derrubadas por meio de golpes de aliados seus, autoritarismos amigos são erigidos e omissões honrosas escondem párias ou buscam justificações perversas para seus regimes.
No entanto, algo está mudando no mundo e muito rápido: Se por um lado, a decadência gradual dos Estados Unidos - que se verificava pela queda da importância relativa do seu PIB em relação ao mundo - foi mascarada pelo colapso soviético, por outro lado, os Governo de Bush Filho e o de Obama trataram de acelerar o processo, às custas de irresponsabilidade econômica e decisões geopolíticas desastrosas. Isso muda completamente o jogo da geopolítica internacional e a hegemonia americana é abalada; se tivemos mudanças importantes na América Latina na última década, hoje, a grande região que inclui o Magheb e o Oriente Médio sente novos e bons ventos soprando: Somada à decadência dos americanos, a degeneração dos regimes que lhes são fiéis, o avanço tecnológico e o aumento da organização dos movimentos sociais naqueles países estão minando o esquema de Washington.
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Tunísia |
Os eventos de Dezembro do ano passado colocaram abaixo o Ditador Ben Ali na Tunísia na chamada Revolução do Jasmim afetam todo Norte da África. O processo revolucionário tunisiano, aliás, em muito lembra a Revolução dos Cravos no Portugal nos anos 70, seja pela derrubada de um regime obtuso que era tratado com eufemismos pelas potências ocidentais devido à sua lealdade, quanto pela complexidade do processo - é provável que ele demore anos - e até por certas coincidências como, por exemplo, os insistentes boatos ecoados sobre os riscos do fundamentalismo islâmico tomar o controle da situação - algo parecido com o que se fazia no Portugal dos anos 70 em relação ao Comunismo -, quando, na verdade, o grande risco é mesmo dos integrantes do Velho Regime conseguirem neutralizar os efeitos da insurgência. Outro paralelo importante, é o quanto essa Revolução refletiu a realidade de uma região inteira, uma reivindicação que mais do que política, é geopolítica - e em certa medida, até cosmopolítica. Como dito, os efeitos da Tunísia se espalharam pelos seus vizinhos - e aqui, falo de Egito e Argélia fundamentalmente, mas isso tem desdobramentos agora sobre o Iémen e o Líbano.
Pois bem, hoje, o Cairo segue em plena ebulição, enquanto as coisas estão quentes na Argélia também. Como o Tsavkko lembrou bem, embora estejam no mesmo plano e sejam vizinhos, é necessário pontuar que as sociedades egípcia e argelina não são laicas com a da Tunísia. De fato, existem grupos religiosos importantes e beligerantes como a Irmandade Muçulmana no Egito e a Frente Islâmica de Salvação na Argélia, o que é um considerável combustível de risco - e o que pode, de fato, dar um caráter diferente para eventuais derrubadas dos regimes locais. Claro, isso não esgota, de modo algum, a legitimidade das reivindicações contra os regimes de Mubarak no Egito ou de Bouteflika na Argélia, mas apenas apresentam sim um fator de risco real inerente à sua eventual (e quem sabe necessária) derrubada.
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A batalha campal do Cairo (Tahrir Square) |
O que estamos vivendo exatamente agora é um verdadeiro clima revolucionário no Egito: Dezenas de milhares de pessoas estão nas ruas do Cairo, o toque de recolher foi decreto, há violência policial, a sede do partido do governo foi saqueada e há um risco claro e iminente de queda do regime de Mubarak, o que deixa Washington em polvorosa: Não falamos de um país relativamente pequeno como a Tunísia, mas de um aliado estratégico de grande porte que recebe uma ajuda militar enorme. Palavrinhas como Canal de Suez e Israel devem estar tilintando na cabeça das lideranças americanas neste exato momento. O fato é que a multidão está nas ruas e ninguém tem controle da situação, mas pelo menos graças a cobertura da Al Jazeera - para variar - não estamos completamente cegos em relação ao que realmente se passa agora no Cairo, embora a torrente de informações que chega até nós seja fabulosa e enebriante.
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Cairo -- Tahrir Square |
Trata-se, com efeito, de um momento espetacular: A História pulsa intensamente viva depois de a terem declarado morta, tesa e dura, não tem nem um quarto de século. Os desdobramentos desse eventos são surpreendentes e se projetam para o Leste e também para o Sul. A hesitação de Obama em aceitar a nova - e desfavorável - situação geopolítica americana para, assim, poder negociar uma nova ordem mundial multipolar não evitou, naturalmente, que as mudanças necessárias se operassem por vias outras. O resultado é semelhante - e em larga escala - ao que se viu no Leste Europeu nos anos 80, só que em larga escala: Uma potência hegemônica que perdeu a sensatez e o substrato moral assistindo à derrocada do seu controle do espaço por conta da multidão nas ruas. É um momento revolucionário e, como tal, nos reserva uma miríade de desdobramentos possíveis para tão logo. Fiquemos à espreita.