domingo, 9 de janeiro de 2011

EUA: O Atentado no Arizona e sua Crise Política

Populares na cena do atentado - Eric Thayer/Reuters
Ontem, em Tucson, no estado americano do Arizona, a deputada federal pelo Partido Democrata Gabrielle Giffords sofreu um atentado no qual foi baleada por um franco-atirador e está entre a vida e a morte, enquanto pelo menos seis pessoas morreram e quase duas dezenas ficaram feridas. Ela estava em uma espécie de encontro público com seus correligionários e, quando discursava para a multidão, foi abordada. Gabrielle está em sua terceira legislatura - cuja duração é de um biênio cada - pelo conservador 8º distrito do Arizona (fronteiriço ao México) para a qual ela foi reeleita no ano passado, por uma margem estreita, depois de duas vitórias relativamente fáceis em 2006 e 2008 - ademais, e isso é um adendo importante, ela também estava na lista da inefável Sarah Palin, ex-candidata republicana à vice-presidência e presidenciável em 2012, de pessoas que deveriam ser mantidas sob a mira de uma arma (sim, ela fez isso) por conta de suas posições "esquerdistas demais" (Sarah, aliás, tirou desesperadamente o material da Internet contra Gabrielle logo após o atentado). O suspeito é um jovem de 20 e poucos anos que mistura discurso nazista com o dos libertarians americanos - "libertários", uma ala da direita americana, ultraliberal e anti-Estado, o que é no mínimo curioso e ilustra seu grau de perturbação mental. O episódio é, ao mesmo tempo, um exemplo da grave crise política americana, na qual o Governo Obama encontra-se paralisado depois da derrota nas eleições legislativas do ano passado - causada por erros de cálculo político seus, uma tentativa de contemporizar e se pôr ao centro do debate político enquanto a extrema-direita passou a pautar a conversa - e a velha problemática da violência americana, uma mistura de sua cultura bélica, comércio de armas de fogo banalizado e uma dinâmica social ímpar no mundo desenvolvido no que toca à produção de neuroses graves. Trata-se de uma tragédia anunciada numa sociedade em convulsão, na qual o sistema é incapaz de se sustentar sobre suas próprias pernas; o american way of life agoniza vítima da constatação mais óbvia que pode existir em termos de economia: Recursos são finitos e nenhum modelo baseado em expansão esquizofrênica tem vida longa, especialmente quando começa a se tornar cronicamente perdulário. Obama, pelo seu lado, ainda que seja dos quadros mais capazes da política americana, não é o reformador capaz de reverter essa tendência - nem tem um grupo político capaz de fazê-lo -, o que torna tudo mais dramático; em um país que vive às voltas com um sistema eleitoral jurássico e concepções de política completamente distorcidas e ideologizadas, é difícil pensar em saídas. Os EUA de hoje formam um país onde movimentos como um Tea Party conseguem pautar o debate propondo um liberalismo do século 19º, acusando Obama de socialista e, não raro, de liberal demais também (?!). O Caso do atentado de Tucson é uma verdadeira hecatombe que expõe tanto o formidável barril de pólvora da política local quanto cumpre uma função positiva - como o relógio quebrado que marca a hora certa duas vezes ao dia - ao ligar a luz vermelha de, pelo menos uma parte, da população americana sobre os riscos reais dessa radicalização direitista e dá argumentos fortes aos democratas contra o Tea Party. Aqui fica a torcida pela recuperação da deputada Giffords, mas resta também uma preocupação imensa  em relação ao futuro dos EUA - e do próprio mundo.


P.S.: Em relação a esse lamentável acontecimento, reforçam-se alguns comentários do lado esquerdo da blogosfera/tuitosfera em prol de "regulamentação" da rede, principalmente por conta das manifestações no Twitter propondo o assassinato da Presidenta Dilma. Pois bem, a incitação ao ódio é um problema grave que precisa ser enfrentado, mas é preciso ter bem claro que isso não pode servir à abertura de restrições da liberdade na rede. A linha que separa uma coisa da outra é tênue e, uma vez aberta a caixa de pandora, não é possível fecha-la sob a prerrogativa da urgência de políticas de segurança. Não custa lembrar, também, que Internet é meio virtual e medidas visando restringir genericamente a liberdade por aqui é o mesmo que, por exemplo, instalar um grampo geral em todos os telefones pelo risco de pessoas serem ameaçadas de morte em uma ligação. Mantenhamos os olhos abertos, mas lei não é panaceia e nem vigilantismo deve ser tomado como catarse.


Atualização das 21:35: O Pádua Fernandes fez um post interessantíssimo sobre a política de alvos de Sarah Palin. Deem uma olhada lá - o desfecho dele, aliás,  levanta um debate parecido com o feito aqui sobre o papel do direito, a liberdade e condutas claramente inaceitáveis.

26 comentários:

  1. As incitações ao assassinato da Dilma são crimes previstos em lei. Os idiotas que fazem isso no twitter ou outro meio público são criminosos, e têm sua liberdade garantida apenas por conta de um absurdo atraso das polícias em relação a crimes cibernéticos e à morosidade do Ministério Público.

    Discordo da existência desse seu dualismo entre regulação da internet "pela direita" (o projeto do Azeredo, por exemplo) e "pela esquerda" (coibições de crimes como os mencionados. Simplesmente não é preciso criar nenhum instrumento novo para punir esses caras, bastaria aplicar a lei.

    Enfim, acho que eventuais punições a crimes cometidos na internet não têm a ver com restrições à liberdade da Internet, algo que deve ser evitado per se.

    No mais, concordo inteiramente com suas ponderações sobre a política norte-americana e os riscos criados pelo tea party.

    Abraço,

    Eduardo

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  2. Salve, Hugo,

    Muito bem escrito o seu artigo e, realmente, estranha coincidência. Os ultradireitistas "libertários" (quod non!) também têm militância no Brasil. Eis o site http://liber.art4web.com.br/Home.aspx

    Abraço.

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  3. Eduardo,

    Eu creio que não me fiz compreender bem: Eu não disse que essas condutas não são consideradas como crimes - e, embora seja cético quanto à função do direito penal, acredito que ele ainda é necessário e pode ser válido desde que sejam tomadas medidas para que ele deixe de ser necessário tão logo. O ponto é justamente esse: Já existem dispositivos legais que servem para regular essa conduta. Ninguém deixa de responder por ter ameaçado alguém de morte só porque o fez por telefone ou e-mail - ao mesmo tempo, não vejo ninguém propondo grampear os telefones de todas as pessoas no país, logo, suponho que ou trata-se de uma grave equívoco sobre Internet ou há mais coisa aí. Ademais, os serviços de inteligência brasileiros dispõem de tecnologia mais até do que o suficiente para investigarem uma possível conspiração contra a Presidenta.

    Isso é diferente de usar isso como prerrogativa para a construção de um regime jurídico-disciplinar "do bem" na rede, em nome da nossa segurança ou, quem sabe, por conta de uma dita "responsabilidade social" - como fez Chávez e sua nova Lei de Mídia na boa e velha Venezuela. Indo ao que interessa, sim, existe uma defesa à esquerda de controle da Internet também no Brasil. Ontem mesmo, debatendo pelo Twitter com um respeitado jornalista de uma famosa revista de esquerda, li afirmações como "prefiro Cuba ou a China ao 'faroeste' em termos de regulação de Internet" - do mesmo modo como já li em blogs de gente de esquerda coisas como "Wikileaks prova como a Internet é perigosa". Recentemente, Eduardo Guimarães defendeu uma leitura desapaixonada de medidas de controle na rede. Isso para mim são posições contrárias à liberdade, sejam elas por imprudência ou deliberadas, mas estão todas cá no campo da esquerda e ilustram um certo desejo de controle que deve ser refreado.

    Isso não muda o fato de que Azeredo e grande parte da direita brasileira estarem empenhados em censurar a Internet - é o velho uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. Mas não nos esqueçamos das sábias palavras do velho Lula ao bater de frente com o pedido de Serra para censurar blogs que lhe eram incômodos.

    abraços

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  4. Bruno,

    Obrigado, meu velho! Sim, eu já tive oportunidade de ver o site deles em outras ocasiões. Mas o suspeito da autoria da chacina é mentalmente transtornado: Ele mistura uma doutrina estatalista e autoritária de direita como o Nazismo junto com o libertarianismo (em outras palavras, liberalismo radical e anti-estatalista). Sobre os libertários, concordo em algumas coisas com eles e nem acho tão absurdo assim - eles têm posições interessantes sobre os chamados "direitos civis" -, mas evidentemente discordo já na página dois: A premissa radicalmente atomista da qual eles partem é insustentável.

    abração

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  5. Euclides F. Santeiro Filho9 de janeiro de 2011 às 17:11

    Hugo,

    Grato por manter o nível do debate elevado lá na caixa de comentários do Biscoito.
    Dá uma lida na PL 122 e vê se aquilo não é uma estupidez sem tamanho.

    Quanto ao atentado, ainda estou "digerindo" tudo.

    Abraços.

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  6. Prezado Hugo Albuquerque, "lei não é panaceia" é algo que se deve ensinar nas faculdades de direito já no primeiro dia de aula. Eu faço isso.
    Como a Palin está tentando esconder em vão os traços de sua incitação à "eliminação" de adversários políticos, eu inseri no golpe o "mapa de alvos": http://opalcoeomundo.blogspot.com/2011/01/violencia-politica-nos-eua-terror-e.html
    Sugiro que o faça também, se quiser retomar o assunto.
    Abraços, Pádua.

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  7. Obrigado, Euclides, mas ali o nível é normalmente alto mesmo, eu só dou a minha humilde colaboração ;-)

    abraços

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  8. Pádua,

    E o nobre mestre faz bem - e é dos poucos que o faz, infelizmente. Aliás, interessantíssimo o post, vou linka-lo.

    abraços

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  9. Dizem que a sociedade americana está doente... Discordo. Ela É doente. Cada vez dá mais mostras disto, só falta os americanos compreenderem de vez.

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  10. Prezado Hugo Albuquerque,
    obrigado.
    Acho que o caso deveria acender o debate sobre liberdade de expressão e incitação ao ódio nos EUA.
    Porém, acho mesmo que se trata de mais um sinal da decadência daquele país; a Palin ser levada a sério na política e ter a audiência que tem na tevê é mais do que um sintoma inequívoco de morte cerebral: parece mostrar um bloqueio da ação política, bloqueio em que se enreda a administração de Obama.
    Abraços, Pádua.

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  11. Tsavkko,

    Sim, o modo de vida da sociedade americana é insustentável. É em parte o velho enredo da civilização ocidental, algo que já está ali no modo de produção antigo - seja nos mecanismos de sujeição e no seu idealismo-expansionista que só não saí do papel quando não há recursos e, ainda, só cessa quando não dá mais -, uma certa herança medieval e uma acomodação dentro de um modelo político iluminista - dotado, entretanto, de sérias limitações que nunca precisaram ser corrigidas pela sobra de recursos causada por condições favoráveis da geopolítica. O problema é que se não for construída uma vontade política que escape ao ufanismo ou ao idealismo - seja o autoritário ou o mais libertário e liberal como o de Obama - para fazer essa contestação, nada feito. Mas a tendência não é favorável para isso, o que é ruim para eles e para o mundo todo por osmose.

    abraços

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  12. Pádua,

    Queira quer sim, queira quer não, o caso provoca um debate sobre a função do direito em relação a isso tudo. É uma situação limite que traz isso tudo à tona, embora, claro, não se esgote por aí(nem poderia).

    Sim, há algo muito grave nos EUA quando sabe-se que uma Palin é popular - ela não seria no Brasil, por exemplo - e tudo isso é efeito de algo maior, embora eu ainda acredite na ação política como forma de interferir nesses movimentos inerciais.

    Agora, uma coisa que serve para lá e para o mundo todo nesse avanço do extremismo é o seguinte: O discurso racionalista na política só é efetivo até o ponto em que consegue tocar o coração dos trabalhadores e da "sociedade civil" - ele, por si só, não faz cócegas em fenômenos tão americanos quanto Palin ou tão europeus quanto o velho fascismo.

    A grande questão, no fim das contas, é uma questão de desejo e é nesse âmbito que a disputa será travada. Se isso for ignorado, as próximas décadas serão apocalípticas.

    abraços

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  13. "Doente" é eufemismo. Falando em libertarians:
    http://g1.globo.com/tecnologia/noticia/2010/08/homem-viaja-por-30-dias-para-escrever-mensagem-com-gps.html

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  14. HWB: Desalentador. Certo dia fiz um teste no Facebook sobre posicionamentos políticos - mas a temática do teste era bem americana - e deu que eu era "tão liberal que estava quase próximo do Stalin" (?!!). Até eu, que nunca levei os EUA a sério, fiquei pasmo com o nível do estado de coisas lá. Mas acho que esse evento trágico de Tucson pode até servir para dar um choque, quem sabe. Se o pessoal não acordar agora, vai ser o caos.

    abraços

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  15. "... ela também estava na lista da inefável Sarah Palin, ex-candidata republicana à vice-presidência e presidenciável em 2012, de pessoas que deveriam ser mantidas sob a mira de uma arma (sim, ela fez isso) por conta de suas posições "esquerdistas demais".

    Não é bem assim, Hugo. O tal mapa se referia aos postos legislativos a serem alvos de uma retomada pelos conservadores nas eleições que ocorreram no ano passado. De qualquer forma, é criticável a retórica belicista pela qual ela e certos talk show hosts de rádio e TV primam.

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  16. Marola,

    Sim, metas legislativas para os republicanos estranhamente representadas por alvos, veja só, semelhantes à mira de armas de precisão. A conotação disso em um país como os EUA - onde existe certa cultura de uso de armas de fogo e onde, ainda por cima, há um histórico considerável de atentados cinematográficos contra políticos - é, no mínimo, irresponsabilidade demais para passar batido. Some-se isso à retórica dessa senhora e temos um quadro preocupante.

    abraços

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  17. Concordo que o uso de crosshairs para marcar as cadeiras legislativas a serem ganhas não foi uma escolha das mais felizes, mas daí a caracterizar isso como "lista de pessoas que deveriam ser mantidas sob a mira de uma arma" vai uma grande distância.

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  18. Marola,

    Na verdade, nem deveriam ser, porque no final ela pôs na mira de uma arma mesmo e até desenhou isso - com direito a nome, sobrenome e indicativo até do distrito. Ela pode não ter se dado conta do que um ato como esses podia produzir na prática - e quando se deu conta, era tarde demais para fazer outra coisa senão tomar uma atitude atabalhoada. Como coloquei no PS, isso não é uma discussão jurídico-penal - nem poderia ser -, mas uma análise de conjuntura e uma crítica moral, portanto a questão do animus necandi de Sarah nem entrou em pauta. Mas crítica moral, no plano da política, é isso: Pequenas ações - assim como as omissões -, por parte dos grandes atores, produzem grandes estragos na prática.

    abraços

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  19. Acho que é importante fazer uma distinção fundamental entre opiniões de direita e opiniões de extrema direita. E também distinguir entre individuais num blogue ou página de Facebook e opiniões que saem de programas de televisão como o de Glenn Beck ou divulgadas por Sarah Palin. O primeiro tem a sanção de um canal de notícias da grande mídia e a segunda foi legitimada pelo próprio partido republicano. Idéias conspiratórias de extrema direita, que sempre circularam nos EUA em lugares marcados como "fringe" [a margem do mainstream cultural] como a John Birch Society, ganharam a partir da vitória de Obama uma legitimação que é responsabilidade do establishment americano. Lembremos que um mínimo aceno feito na direção dessa gente nos anos 60 rendeu um trocadilho eleitoral de sucesso contra o slogan de Barry Goldwater "In your heart you know he's right": "in your guts you know he's nuts".

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  20. Por odiosa que a retórica inflamada de Sarah Palin seja, não vejo necessidade de se pintar o diabo mais feio do que êle já é, e não vai ser a citação de obscura locução latina que me fará mudar de opinião, vc viajou na maionese e não quer admitir isso.

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  21. Sim, Paulo, mas eu penso de que isso importa mais da boca de quem vem do que o meio que foi usado: Posições públicas de algum ator político importante (sejam atos aparentemente bobos ou omissões) enquanto membro de um partido grande - ex-membro de chapa presidencial e possível presidenciável - produzem consequências enormes. E redes sociais como o Facebook, hoje, são mais relevantes do que entrevistas em jornais regionais, ainda mais dependendo de quem for a página. Sobre a extrema-direita e direita, depende muito até que ponto que a segunda queira isolar a primeira - ou usa-la como peão para fazer o trabalho sujo -, mas o grande ponto da política americana atual é que nem os republicanos parecem ter limites e, para além da extrema-direita organizada, existe toda uma bela nuvem de "elétrons livres", gente transtornada mentalmente e (bem) armada que é capaz de, em um quadro de radicalização irresponsável, aprontar algo grave - e foi o que aconteceu.

    abraços

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  22. Marola,

    Em tempo: Corrigi a repetição de comentários deixando o maior deles. Sobre a citação latina, que de obscura não tem nada nesses tempos de Google, é tudo bem simples: Não estou falando de imputação jurídico-penal, estou falando de responsabilidade política e de política. A metáfora ali gera impactos bem literais aqui porque tem uma conotação bem clara - sugerir violência, de mãos limpas. Usar eufemismos como "é criticável" ou "não é das mais felizes" para uma ato de alguém que adota, a todo momento, uma retórica belicista e só porque todos aplaudem cada besteira que diz, acha que não tem responsabilidades políticas sobre o que faz é que é viajar na maionese ao meu ver. Se a própria Palin não tivesse se dado conta do que fez, não seria ela que teria tirado o material da rede.

    abraços

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  23. Hugo,

    Sejamos pitagóricos por um momento - qual a probabilidade que você acha que uma Sarah Palin ocupe a Casa Branca em 2012?

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  24. Luis,

    Grandes, mas depois disso, um tanto menores - só arriscaria palpitar algo depois que a poeira baixar.

    abraço

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  25. Interessante, não? Obrigado pelo link, Luis.

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