O Descurvo
O Descurvo de 2020 -- Voando com uma farol em meio à peste e à escuridão.
domingo, 23 de agosto de 2020
Steve Bannon: o antagonista
sábado, 22 de agosto de 2020
Em Defesa do Livro! (Live da Rede Emancipa)
Ontem, em uma live em defesa do livro, contra o ataque Bolsonaro-Guediano ao mercado editorial, ao lado de Ivana Jinkings (editora Boitempo), Flávia Lago (Coletiva Virginia), Luana Alves (Rede Emancipa) e mediação de Dani Haj Mussi.
sexta-feira, 21 de agosto de 2020
A Encruzilhada Bielorrussa
(Foto: SERGEI GAPON / AFP)
O levante da Bielorrússia tem a ver com democracia e liberdade ou é apenas uma intervenção Ocidental? Isso não tem uma resposta simples, pois envolve questões internas e geopolíticas bastante dúbias e ambivalentes. Vamos a um fio grandinho (mas necessário)
Das antigas repúblicas soviéticas de maioria eslava, A Bielorrússia era uma das mais pobres nos tempos da URSS. Detalhe: quando falo isso, me refiro à Rússia, com toda sua diversidade, e à Ucrânia. Lituanos e letões são apenas primos distantes que são, contudo, vizinhos.
Quando acabou a URSS, a Bielorrússia assim como a Ucrânia e a Rússia voltaram a adotar símbolos nacionais antigos e a preparar reformas neoliberais. Os comunistas se levantaram em todos os três, mas na Bielorrússia surgiu um movimento nacional-populista forte pelo meio.
Em suma, Lukashenko ganhou as eleições de 1994 e reverteu muitas das reformas neoliberais e travou todas que vinham em curso, retomou a bandeira dos tempos soviéticos e manteve o Estado forte na economia, contradizendo Moscou e Kiev.
Lukashenko era o típico dirigente de cooperativa agrícola soviética: um tipo secundário em qualquer parte da URSS, jamais politizado, mas talvez justamente por isso popular: um homem médio soviético, mas muito esperto politicamente a ponto de criar um movimento.
O resultado é que, embora do ponto de vista econômico Minsk discordasse de Moscou, geopoliticamente ela inclusive se reaproximou do Kremlin -- ao contrário da Ucrânia, que seguia o mesmo modelo neoliberal, mas rifava a Rússia em prol de uma aproximação com o Ocidente.
Ao contrário de ex-repúblicas soviéticas que passaram a afirmar um nacionalismo antirrusso, que levou a desconsiderar os direitos das minorias russas em seus territórios, o governo de Lukashenko reconheceu a língua russa e o aspecto binacional do país.
Fontes ocidentais enxergam nisso uma "sujeição a Moscou", o que significa que eles esperam que um governo de Minsk deveria oprimir a minoria russa para ser "democrático".
O resultado do governo Lukashenko, 26 anos depois, é que o país cresceu proporcionalmente MUITO mais do que a Ucrânia e tem um IDH semelhante ao russo, mesmo sendo mais pobre do que a Rússia, embora junto tenha problemas da era soviética.
Para falar a verdade, a Bielorrússia tem, hoje, mais do que o dobro do PIB per capta da Ucrânia, mas para os analistas ocidentais, certamente foram os ucranianos que fizeram "tudo certo" nas reformas e na geopolítica. A desigualdade na Bielorrússia é ínfima.
A Bielorrússia, por sinal, é mais rica do que o Brasil e perde por pouco para Argentina e Uruguai. Tudo isso sem ter se quedado ao Ocidente, se desindustrializado, privatizado ou desnacionalizado suas empresas. A prova de que se pode funcionar de outra forma.
Isso é diferente da Rússia, mesmo sob Putin, onde ao contrário do que se pensa no país, a gestão da economia nunca deixou de ser neoliberal e austera -- ainda que autônoma nacionalmente.
Putin gosta de Lukashenko pela geopolítica alinhada, multilateral e não sujeita ao Ocidente, mas não gosta do fato de saber que, na medida das suas forças, Minsk adota uma linha bastante própria, vide seu modelo econômico.
Esse nacional-estatismo econômico cria problema, p.ex., para as empresas privadas russas adentrarem na Bielorrússia *na forma como elas gostariam* -- e, igualmente, faz de Minsk um agente autônomo para negociar com Pequim a Nova Rota da Seda.
Isso explica por que na última eleição Lukashenko deu declarações se diferenciando de Putin, que, imagino, se irritou. A Bielorrússia quer uma aliança com a Rússia, não ser englobada por Moscou novamente.
Lukashenko é um socialista? Evidentemente, não. Ele manteve coisas boas e ruins do modelo soviético e desenvolveu um mercado, criando um tipo híbrido entre o socialismo de mercado chinês e um capitalismo de Estado.
Igualmente, há restrições das liberdades e uma incapacidade do governo sequer imaginar uma hegemonia guiada para uma uma transformação radical. Lukashenko é o que os eleitores ingênuos de Bolsonaro pensam que "nosso" presidente é, mas que Jair nunca nem seria.
Lukashenko é isso, um líder comunitário, um paizão, fazendo às vezes de um líder nacional, incapaz de destruir os ganhos sociais soviéticos, mas igualmente incapaz de resolver o beco sem saída que, afinal, atravessou e colapsou a URSS.
Os bielorrussos o apoiaram todos esses anos, não por burrice, mas porque nunca caíram na cantilena de que seriam recebidos e desenvolvidos pela Europa, nem que reformas neoliberais iriam melhorar suas vidas, muito pelo contrário
Mas vejam, Lukashenko igualmente jamais criou um partido político organizado, sempre se cercando de uma miríade de políticos "independentes", todos unidos por um senso comum "nacional" e sob sua liderança.
O movimento contestatório atual na Bielorrússia, obviamente, conta com apoio de operativos externos (é a geopolítica!), mas igualmente existe uma certa fúria popular pelo desgaste do governo e, possivelmente, a maneira como Lukashenko está lidando com a pandemia.
Os gritos e as bandeiras lá não têm nada de revolucionário, apenas um nacionalismo fake e sujeito ao Ocidente. Lukashenko vai sofrer sim para se segurar e caso continue, dependerá mais do Kremlin do que gostaria.
A questão é que a Bielorrúsia é central para Pequim na estratégia da Nova Rota da Seda, e por isso o Ocidente quer um líder seu no poder lá, mas Putin tampouco quer um Lukashenko fortalecido para negociar diretamente com Xi.
O resultado disso será a queda de Lukashenko nas próximas semanas ou meses, *menos por falta de apoio e mais por falta de um partido organizado ainda que nacionalista*, ou sua manutenção com largas concessões a Moscou.
P.S.: Vou começar a postar essas coisas aqui, para não se perderem nas brumas do Face ou do Twitter. E trazer arquivos de outras mídias.
quinta-feira, 2 de agosto de 2018
Bolsonaro e o Discurso do Rei
Aroeira
Um homem só é rei porque os seus súditos se comportam perante ele como um rei -- Slavoj Zizek
|
A liderança de Bolsonaro causa choque e temor. Mas não só em seus antagonistas. Os seus próprios eleitores querem isso, sentem isso, pedem isso, mas no lado oposto, voto de protesto e fúria, sem razão e contra ela. Na segunda-feira, dia trinta de julho, ele, o líder nas pesquisas eleitorais nas quais não constam o nome de Lula, foi ao Roda Viva da TV Cultura repetindo uma série de barbaridades como de costume -- da defesa da ditadura e da tortura, passando pela negação do racismo, até chegar culpabilização da higiene das mulheres pela mortalidade infantil (!).
Desta vez, contudo, Bolsonaro falou com mais autoridade do que costume para uma bancada passiva, fria, pouco ágil -- a qual no máximo esboçava algum absurdismo. Muitos apontaram a fragilidade dos entrevistadores. No entanto, a bem da verdade, o Roda Viva que acossou Manuela D'Ávila, foi antipática com Boulos, morna com Ciro e doce com Marina e, sobretudo, com Alckmin é aquela que, se utilizando de um discurso liberal, permitiu Bolsonaro falar à vontade. Todos os Roda Vivas com os (pré) candidatos constituem uma série coerente entre si.
A esquerda liberal -- se é que se pode dizer isso --, perdida na defesa da "liberdade de expressão de Bolsonaro", e a direita liberal, disposta a tudo para neutralizar qualquer esquerda, inclusive naturalizar a fala de um candidato de extrema-direita, de certa maneira se unem numa mesma estratégia impotente, cuja ação, direta e colateralmente, nos conduz, aqui no Brasil como em boa parte do mundo, ao avanço e a volta de variadas formas de extremas-direitas.
O projeto liberal de direita que comanda o país, contudo, produziu a própria sobrevida de Bolsonaro: até a intervenção militar do Rio, a bolha de intenção de votos dele parecia ruir, indo para baixo dos 15%, mas depois dela, ele volta ao patamar dos 20%, ensaiando uma nova queda. Por sinal, a mesmíssima intervenção militar perante a qual Bolsonaro se diz contra, defendendo medidas de violência mais radicais, o que lhe faz se favorecer do clima de populismo punitivo sem se comprometer com os resultados da -- fracassada -- intervenção de Temer.
Bolsonaro que, por seu turno, é enfrentado por essa mesma esquerda liberal que lhe dá legitimidade de fala apenas no aspecto cultural e comportamental, o que em si é justamente o que o candidato quer. Ora, para além do fato se Bolsonaro deva ou não ser ouvido, não resta dúvidas de que seria absurdo alguém convidar o Maníaco do Parque para dar entrevistas na condição de patinador -- embora ele o tenha sido de fato, mas a operação ideológica que ocorre com Bolsonaro, no entanto, impede que nós o vejamos dessa forma.
Como então ouvir, e deixar falar, Bolsonaro defendendo crimes contra a humanidade explicitamente, em rede nacional, numa televisão pública e educativa?
As chances do ex-capitão do exército vencer realmente ainda são distantes, mas sua presença no segundo turno vai se tornando uma possibilidade cada vez mais crível, uma vez que nem o discurso ou a prática do establishment têm a capacidade de neutralizá-lo -- sua impotência é mais um problema interno de sua organização, não mérito de seus adversários --- e do outro lado tem interesse em mantê-lo no páreo, devido suas disputas interiores.
Sobre o último ponto, Bolsonaro é o bode na sala que normaliza Alckimin e, ao mesmo tempo, capta uma indignação que organizada seria revolucionária. Do outro, Bolsonaro é alguém que fustiga e a priori tira votos de Alckmin. Nesse jogo entre a direita e à esquerda do sistema, Bolsonaro é uma bomba prestes a explodir e que os concorrentes ficam jogando um para o outro, como num desenho animado -- e pode ser que exploda ambos.
Enfim, Bolsonaro é uma peça fraca no jogo, justamente por isso está onde está, mas as forças que o alavancam não são ocasionais. Assim, os riscos dessa tremenda, e subestimada, armadilha em que estamos caindo são enormes.
domingo, 22 de julho de 2018
O Que diabos é o Centrão?
No fim das contas, lembremos que Rodrigo Maia derrota Rogério Rosso, o "candidato de Cunha", quando Dilma já estava com a sorte (ou falta dela) definida e, por conseguinte, Cunha não era mais necessário e já estava preso.
Desde então, o Centrão é um entidade que tem dado sustentação a Temer, bloqueado pedidos de impeachment e, até, impedido pedidos de investigação por crime comum envolvendo o presidente -- embora não sem resmungos e sobressaltos. O Centrão não é o arranjo de governo Temer, mas ele é seu importantíssimo motor auxiliar -- como já foi nos anos 2000 com Lula, mas não era nos anos 1990, em virtude da alta fragmentação partidária verificada, sobretudo, a partir das eleições de 2002, o que só continuar a piorar.
Ainda que se discuta a natureza do impeachment de Dilma, oficialmente um procedimento comum, para outros um golpe, não é possível negar que foi um procedimento normal: sequer o Senado cassou os direitos políticos da Presidente deposta -- pior ainda, o próprio procedimento foi iniciado por Cunha quando o então governo se negou a travar o processo de investigação contra ele na Câmara.
E o que se seguiu foi um aprofundamento da concessão neoliberal de Dilma II, quando ela ressuscitou Joaquim Levy, passando de Temer em diante a haver uma ruptura com o sentido de democracia social da Constituição de 1988, ou até paradigmas anteriores e mais caros, como a proteção trabalhista. O Centrão, aliado oportunista do primeiro e único governo com tons progressistas, se tornou cúmplice da remoção do mesmo, sob forma duvidosa e com propósitos mais assombrosos ainda.
A decisão do Centrão tem um efeito duplo, a de fortalecer Alckmin à direita do centro e a de enfraquecer, ou de conceder um apoio central, para Ciro na disputa à esquerda do centro. Ela não enfraquece Ciro em detrimento de Alckmin, mas enfraquece Ciro em relação ao candidato que o PT vier a apresentar, ou mesmo Marina, e fortalece Alckmin face a Bolsonaro.
O fator de novos abalos sociais, e de movimentos subterrâneos está colocado, mas como não há uma organização capaz ou disposta de realmente organizar a indignação popular contra Temer -- que é fato social, mas não é fato político -- é difícil que isso chegue às urnas, salvo como aumento na abstenção -- o mesmo não se pode dizer quanto à governabilidade do governo eleito -- é por isso que o Centrão acaba ficando maior do que realmente é.
Estaríamos entre o impasse da manutenção do quadro de Temer ou um governo que proporia, em algum grau, mudanças que enfrentariam uma reação intensa -- salvo um milagre nas eleições legislativas. A desunião das esquerdas não ajuda nada, embora ela tenha ideias e caminhos. A direita tampouco tem um plano de funcionalidade -- não há uma Thatcher, isto é, alguém capaz de criar um funcionalidade econômica ainda que socialmente injusta.
domingo, 15 de julho de 2018
O Adeus da Copa da Rússia e a França campeã
A. Namenov (AFP_ |
domingo, 25 de março de 2018
Putin, Mais uma Vez
Vladmir Putin foi reeleito presidente da Russia. Com 76% das preferêcias, um total de 56 milhões de votos, ele bateu o recorde tanto proporcional quanto em números absolutos de votos. Um fenômeno, em tempos de crises políticas pelo globo e, sobretudo, crise na representação, nos partidos clássicos e no establishment político, mesmo de países europeus desenvolvidos e dos EUA. Repetindo a lição do polidor de lentes luso-holandês, antes de chorar ou rir, é preciso compreender um fenômeno -- ainda mais um tão complexo como do Putinismo, que está no poder há dezenove anos em um país gigantesco como a Rússia.
De outro lado, a política conservadora em matéria comportamental causa controvérsias dentro e fora da Rússia; de um lado, o presidente espera agradar à maioria silenciosa do país. Do outro, cria desavenças e é duramente criticado.
Putin, de todo modo, é um ser estranho, exótico, que se movimenta com desenvoltura pela polaridade do nosso tempo, para além do que se pode chamar de populismo de direita e populismo de esquerda, sem deixar de ser uma espécie populista, ou ser um pós-populista.
Operando no limiar entre o que seria o establishment, de direita ou de esquerda, e do neopopulismo, igualmente de direita ou de esquerda, Putin consegue responder menos do que os velhos enxadristas da direção soviética ou os jogadores de pôquer americanos; é na política como na vida um judoca, pronto a aplicar golpes usando contra seus adversários sua própria força.
Na verdade, Putin preside um grande partido-ônibus nacional, com as características mui peculiares de um país que passou por uma experiência socialistas, sendo um grande enigma para as forças políticas do século 20º e suas estratégias em frangalhos. Como também o é para as novas forças políticas, que tentam reinventar um sentido para o político no século 21º.
Putin está além do arranjo político que preside e comanda, isso faz parte de jogo, mas lança sombras sobre o que será da Rússia sem ele. O avanço da melhora da vida na Rússia mantém essa legitimidade, um certo equilíbrio entre as classes, nos quais a oligarquia se comporta minimamente e participa do jogo nacional, o qual gera dividendo para o resto da sociedade. O grande pacto que ruiu no Brasil não ruiu na Rússia.
No ano 2000, quando Putin entrou na presidência, a Rússia estava no mesmo patamar do Brasil em matéria de desenvolvimento humano, mas hoje está trinta posições à frente do nosso país. Se a melhora da renda foi o destaque dos anos 2000, a manutenção da boa educação e melhora da saúde são os destaques da Rússia dos sofridos anos 2010.
Simplesmente exclamar, histericamente, sobre o autoritarismo de Putin, certamente muito menos autoritário do que Yeltsin, é um erro. Desvendar o enigma político, não de Putin, mas do seu Putinismo, é essencial: decodifica-lo e readequa-lo é tarefa essencial e urgente.
quinta-feira, 15 de março de 2018
A Execução de Marielle: Os Idos de Março e o Brasil
Este artigo estava sendo gestado durante o Carnaval, à espera das movimentações eleitorais, mas ele acabou postergado, tantas e tantas vezes diante dos fatos que se atropelavam: o último, a execução fria, brutal e abjeta da vereadora carioca pelo PSOL Marielle Franco -- mulher, negra, favelada e defensora dos direitos humanos -- em pleno centro do Rio, contudo, me obriga a reedita-lo mais uma vez e, finalmente, a publica-lo. Foram quatro tiros na cabeça, além dos tiros que alvejaram e também mataram o motorista.
Se até o Carnaval o que se esperava era o andamento da funesta reforma previdenciária e a resposta de Luciano Huck se iria aceitar sua indicação como candidato presidencial do "centro" -- o nome que a direita liberal traducional se deu --, o fato é que as coisas se aceleram mais uma vez, dessa vez em uma velocidade e sentido perigosíssimos.
Sem votos para aprovar a reforma da previdência, Temer, de maneira autocrática e inconstitucional, decidiu por uma intervenção federal no Rio, o que impediria a própria reforma -- uma vez que emendas à Constituição são proibidas durante a vigência de intervenções -- embora tivesse causas obscuras.
A intervenção, comandada pelas forças armadas e sem implicar na remoção do governador, feita sem consultar os conselhos da República e de Defesa, já anunciada de pronto é mais do que uma jabuticaba constitucional, mas sim uma medida de exceção legítima: estado de sítio não declarado e disfarçado na embalagem de uma mera intervenção federal, a medida nem foi a sonhada e necessária intervenção para corrigir o grave estado de coisas no Rio, e ainda atua de maneira mascarada como a reintrodução do elemento militar na vida política nacional para fazer o que não lhe compete.
Sim, passamos 21 anos de ditadura militar, e isso foi recentíssimo, no qual não apenas violações aos direitos humanos aconteceram, como a desigualidade social ainda por cima piorou enquanto as forças armadas funcionaram como um partido político único, se confundindo com a burocracia de Estado. Que não se venha dizer que vivíamos tempos mais tranquilos, pois foi justamente no regime militar que as grandes cidades foram desorganizadas, junto com a já precária estrutura socioeconômica nacional, gerando o terreno propício para a escalada de violência que se viu depois.
Voltemos a Marielle: negra, mulher, favelada. Um tipo de pessoa que, a duras penas, só poderia ter ascendido ao parlamento da segunda maior cidade do país durante a nossa tentativa democrática. A mesma experiência que Temer está disposto a cessar pela caneta e pelas armas. A violência que vitimou Marielle é semelhante àquela que ele cansou de denunciou na comunidade de onde veio, a mesma que assola os rincões do país, no campo e nas florestas, mas que não chegava como violência política nos grandes centros.
Essa violência ter chegado aos grandes centros, contra representantes políticos eleitos e com atuação oposta a tais violações, significa que ninguém está a salvo, que não só os desamparados estão na mira como seus defensores são, igualmente, matáveis. Algo parecido aconteceu na Ditadura Militar quando o deputado Rubens Paiva, opositor do regime, foi morto em 1971, sete anos depois do golpe e três depois de seu endurecimento, em um movimento de calar qualquer dissidência institucional.
Até agora, o processo ilegítimo de impeachment, bem como o (ab)uso dos tribunais como forma de tirar políticos indesejáveis do jogo parecia ser o máximo a que chegávamos, embora grampos ilegais e a participação da polícia federal no jogo, bem como a violência policial contra manifestações populares, já insinuassem o pior. Pois bem, cruzamos essa linha e, possivelmente, cruzamos o Rubicão -- como se diz do célebre episódio no qual Julio Cesar atravessou o referido rio italiano com trajes militares, algo proibido em respeito à natureza civil da república romana, para dar um golpe de Estado.
A referência a César tamanha ganha uma outra dimensão, na farsa da maldição de Março: como demonstra a célebre frase do Advinho na clássica peça de Shakespeare, é sempre precisar se acautelar com os Idos de Março, uma frase que vale a pena ser lembrada no Brasil, um lugar onde muita coisa ruim se gesta neste mês -- talvez porque a oligarquia tenha um particular gosto de maquinar entre o final do ano e durante o Carnaval. Vide o golpe militar, concluído em 1º de abril de 1964, mas maquinado ativamente durante todo o mês de março de 1964.
Sim, poderia ser um giro populista de Temer, mas isso parece improvável. Alguns dirão que Temer buscou uma desculpa para não levar a cabo a natimorta reforma da previdência, outros dirão que pode ter sido uma busca desesperada por popularidade, alguns defenderão que se trata de ambos. No entanto, isso é mais complexo: o que fez Temer ter medo, com o perdão do cacófato, nunca foi impopularidade, mas que a impopularidade pudesse ser mais do que um fato social, um fato político, o que nunca ocorreu por diversos fatores, inclusive por culpa da esquerda e sua estratégia eleitoral.
Os movimentos de Temer miram a governabilidade, e sua sobrevivência política e pessoal, não a legitimidade. A indignação social não lhe interessa, preocupa ou comove: se isso não tiver efeitos políticos é inofensivo. E por um jogo institucional, Temer tem conseguido manipular suas peças, enquanto as ruas estavam indecisas e dispersas. Pelo menos até hoje, quando largas manifestações tomaram o país em memória e homenagem a Marielle, sobretudo em São Paulo, onde isso se junto a uma massiva manifestação de professores e servidores municipais -- os quais foram duramente reprimidos ontem, quando da votação da pífia reforma previdenciária municipal.
As massas, por outro lado, não vão perdoar Temer ou o (P)MDB por conta dessa medida, talvez se choque que a militarização da segurança não produza tantos efeitos assim -- o México e a Colômbia são bons um exemplo disso, e é um fracasso --, mas seu desejo se explica: o Rio era mesmo o caso de uma intervenção federal, só que civil, democrática, com o afastamento do governador e a aplicação de um profundo plano de resgate financeiro e social, com a regularização do pagamento dos funcionários público e normalização do serviço público. Na falta de nenhuma intervenção, que a esquerda não concebeu ou faria, veio alguma intervenção, e entre nada e alguma coisa, a população embarcou.
Falando em México e Colômbia, por sinal, são modelos que a oligarquia brasileira deseja para o país: economicamente austeras, politicamente autoritárias e possuidoras de uma estranha relação entre crime organizado e Estado, basicamente quase toda dissidência política ou social é dizimada enquanto um jogo e contentes entre as frações da elite disputa o poder -- na Colômbia, o candidato de esquerda com chances de vencer quase foi executado num atentado, no México, a esquerda periga ganhar, embora uma série de crimes bárbaros continue a acontecer sob o comando de cartéis de tráfico como, por exemplo, o caso de 43 estudantes ativistas "desaparecidos", há pouco mais de três anos, em uma ação de cartéis junto com oligarquias políticas.
Marielle, talvez não ironicamente relatora da Comissão Parlamentar sobre a Intervenção "federal" do Rio, é uma vítima de crime político estranhíssimo. Ate agora, a junta fisiológica que governa o Brasil prefere se apropriar do crime como se isso provasse a "necessidade da intervenção", mas há sem sombra de dúvida muito mais escondido por detrás disso. Realinhar os setores progressistas, superar divergências pueris, e ter clareza na ação são essenciais para os meses -- decisivos -- que nos aguardam. Vamos à luta.
terça-feira, 30 de janeiro de 2018
O Enigma das Eleições de 2018
Isso não é só sobre "Lula condenado", mas de uma lógica na qual a política deve estar debaixo do que diz o "mercado" e, mais precisamente, da oligarquia dominante do país. Nenhuma razão real maior do que o "porque o mercado quis" aparece, embora discurso e memes sejam produzidos. Discute-se abertamente a retirada de candidatos, ou como se fecha as portas para a ou b e como se elegerá o candidato "do centro" -- que, a bem da verdade, é o candidato da direita espiritualmente alinhado a isso que está aí nas ruas.
A depuração eleitoral pouco tem a ver com a democracia, mas com o alinhamento com os interesses mais elementares das grandes corporações econômicas, em escala nacional e internacional.
Vejamos bem, as pessoas comuns jamais se enganaram por completo, mas sabiam que em alguma medida, aquele brecha lhes permitia influir um pouco nas assimétricas relações de poder do país -- para muito além do ceticismo ou do encantamento absoluto dos intelectuais --, mas o que se desenha aqui é muito complicado.
E é justamente essa esperança nas urnas, mesmo em um momento conturbado como este, que faz com que as ações políticas, em um país com nervos à flor da pele, seja postergados em intenções de voto -- que não agradam aos novos donos do poder, o que não se restringe à liderança de Lula, mas a impopularidade crônica e profunda dos candidatos que apoiam o estado de coisas.
Ironicamente, essa esperança resguardada não se materializa em grandes mobilizações espontâneas, nem muito menos grandes eventos organizados, pois os grandes sindicatos ou movimentos preferem, no máximo, fazer paralisações programadas e com duração certa. E em dados momentos, nem parece o caso de desconfiar de conluio, porque a falta de luta é causa do definhamento sobretudo dos sindicatos.
Esse messianismo eleitoral, de tão comportado, se torna terrivelmente perigoso no momento atual, no qual uma espécie de hobbesianismo de mercado toma conta do Brasil pós-2016: uma declaração pública de que eleições podem atrapalhar a economia, o que seria um escândalo inadmissível há dez anos no Brasil. Essa racionalidade mágica dos economistas de mercado sobre as paixões da plebe, que nem sabe o seu próprio bem -- em argumentos infantilistas que lembram a colonização -- é sim uma forma de hobbesianismo, embora o projeto em si seja caótico.
É como se o Leviatã de Hobbes tomasse vida e resolvesse realizar o estado de natureza que -- e como -- o pensador inglês imaginava. A desagregação do país, com aumento dos problemas sociais, pestidades variadas (até de febre amarela) e a violência ao estilo mexicano já estão postas, mas isso não é falta do avanço do projeto que está agora no poder, mas consequências imediatas de sua breve hegemonia.
A grande cereja do bolo na opinião de FHC, como repete o comandante do exército general Villas-Bôas, e outros políticos do establishment, seria o "Macron brasileiro", isto é, qualquer figura anódina ideologicamente e com um aparato capaz de convencer o povo brasileiro a suportar o arrocho eternamente, tudo em nome de uma razão maior. Mas esse campo não tem consenso nem votos. Até o Macron real vive às turras com sua queda de popularidade. Gerir medidas não democráticas sob uma aparência democrática tem limites.
É a partir dessa constatação que República fica a perigo: enquanto a plebe espera poder, realmente, exprimir seu modesto poderio político, hoje mais do que nunca, as elites, absolutamente hegemônicas esperam não mudar nada. É essa aceleração que veremos até o final do ano, com as eleições, ou antes, sobretudo se Temer cometer a estultice de por em votação a derrocada da previdência social, amplamente rejeitada entre a população.
Na Rússia, o mito da bondade quase divina do Czar só se desfez em 1905, quando uma multidão de apoiadores marchou até o Palácio de Inverno para clamar por melhores condições de vida -- e foi recebida à bala pela guarda imperial, era o Domingo Sangrento. Até então, as massas acreditavam que os conselheiros do Czar o enganavam ou lhe omitiam a realidade do povo russo, mas ao mesmo tempo jamais haviam tentando falar diretamente com ele, coisa que só aconteceu mediante a extrema necessidade.
No Brasil, o enigma da democracia com freio de mão puxado pode vir à tona, justamente em outubro, quando as massas vão apostar todas as suas fichas. Até aqui, o povo sempre se resignou numa cidadania quase circunscrita ao voto quadrienal, justamente por isso, espera que suas preces sejam atendidas mais do que nunca, seja pela obediência, seja pela necessidade de anos duros como estes. Essa desconexão entre expectativas, da massa e do mercado divorciado da democracia, pode produzir uma enorme fricção entre o segundo semestre deste ano e o começo do ano que vem.
São dois trens em alta velocidade vindo um em direção ao outro no mesmo trilho. A questão é que estamos observando atônitos, e até aqui ainda é possível evitar o desastre.
sexta-feira, 26 de janeiro de 2018
Lula Condenado e uma Direita "Marxista"
Sebastião Salgado -- Trabalhadores |
No curto prazo, reverter minimamente o destino da política econômica atual, baseada no divórcio definitivo do "mercado" com a sociedade, e frear e reverter as contrarreformas é uma tarefa essencial. Menos é mais. A estratégia de defesa judicial, colateralmente, sempre dependeu disso, embora talvez o próprio não entendesse isso. O fato é quem optou, e pratica, a luta de classes é a direita e a oligarquia brasileira, ainda capazes de mobilizar as classes médias e usar de mecanismos morais para comandar o país.