quarta-feira, 22 de julho de 2015

O Syriza Traiu ou Não? Ou Capitu na Ática

Charles Nègre -- o Vampiro (1853)
As últimas semanas foram intensas na Grécia: o Syriza, partido governista, lançou um plebiscito contra os desmandos europeus -- e não só o realizou como o venceu, por larga vantagem, contra tudo e contra todos; contudo, logo após a vitória, o ministro das finanças do país renunciou estranhamente e, em seguida, o governo sinalizou favorável a um acordo horrível com o Eurobloco, o qual contradizia frontalmente o resultado da consulta pública. Um movimento de 180º graus foi feito, resultando em um acordo vergonhoso com a Europa e a votação no Parlamento de mais medidas de austeridade -- com a rebeldia de mais de sessenta parlamentares do próprio Syriza, inclusive do ex-ministro das finanças, Yanis Varoufakis; enquanto isso manifestações tomavam as ruas de Atenas com dura repressão policial. Tudo rápido demais. 

A pergunta que surge, nos meios intelectuais engajados do Brasil, é: o Syriza traiu ou não traiu a esquerda global? Traiu ou não traiu os nossos sonhos, expectativas e fetiches? Uns garantem que não, que é impossível ter havido esta traição. Outros a pranteiam e a dão como certa. A situação mais parece o velho clichê sobre Dom Casmurro, obra imortal do nosso Machado de Assis -- bastaria trocar Syriza por Capitu e lá estaríamos nós.

O debate é colocado nos termos do olhar do paranoico: e por paranoico não tomemos necessariamente aquele que desconfia insistentemente, mas sim aquele que em vez de tentar entender a realidade, a julga, estabelecendo postulados dogmáticos de confiança ou desconfiança. A vida do paranoico é sempre crise, é sempre julgamento, sobre si, sobre o outro e sobre o mundo -- que é sempre mundo-aquém-do-mundo.


Não à toa, a crítica literária contemporânea sobre Dom Casmurro -- de Cândido a Schwarz, passando pelos mais recentes ditos e escritos -- contemplam o que Machado, antecipando na arte a Psicanálise, queria dizer: naquela obra, o que interessa não é a verdade sobre o mundo exterior, que supostamente deveria ser decifrada da narrativa onisciente falha, mas como aquele formidável delírio paranoico conta mais sobre o narrador do que sobre o mundo, ou melhor, como aquilo expressa o seu (mal?) estar-no-mundo. 


O sentimento de traição fala mais sobre uma esquerda global -- e brasileira! -- em crise do que sobre o fato da (suposta) fidelidade/traição. Na medida em que o mundo se torna objeto de permanente crise, o próprio sujeito se põe, dialeticamente, em julgamento, pois o "mundo" nada mais é aquilo que se vive como experiência. 

A esquerda, presa entre a realidade ideal e o ideal de realidade, se escraviza em suas próprias angústias -- naquilo que se expressa nos extremos entre o sectarismo niilista e o pragmatismo vão.


Há um algo muito particular no experimento grego, algo tão particular que se tornar comum: O Syriza, um instrumento político que chega ao poder depois de manifestações de multidão, que enfrenta a direita, os bancos, a esquerda falida é...tudo o que sonhamos, tudo o que precisamos no Brasil de hoje -- e em qualquer lugar! 

De repente, no entanto, Tsipras termina o processo utópico, dá um (aparente) giro na sua estratégia e, aí, temos de julgar qual é a nossa posição; e ela é expressada como nossa crítica em relação ao Syriza, mas é sobre nós e a fidelidade que deveremos ter (e agora precisará ser redobrada) ou não sobre aquele movimento.


O fato é que, não, o Syriza -- ou, melhor, o governo do Syriza -- não traiu ou foi infiel em relação aos seus apoiadores, ao contrário, ele foi fiel até o fim a uma ideia. Pois a fidelidade absoluta, autêntica e pura só pode ser a uma ideia. E as ideias não choram suas vítimas. 


Do mesmo modo, a fidelidade absoluta é sempre em relação ao Um, isto é: importa na traição a todo resto (e a muitas outras coisas). Eis o momento em que fidelidade e traição se confundem e, então, perdem o significado. O governo das ideias, como platonicamente a esquerda sonha, pode não se revelar da melhor maneira -- aliás, ele se realiza muito frequentemente, com resultados muito distantes do que se sonhava.


Podemos discutir idealisticamente se vale ou não a pena ainda defendermos o governo do Syriza, mas materialmente as coisas são inquestionáveis: quem pode dizer que os funcionários públicos gregos, os trabalhadores ou aposentados, que estão prestes a ser mais dilacerados ainda, estão errados em se mobilizar contra o acordo de Tsipras? Ou que os deputados rebeldes estão errados em se opor a tudo isso?  

Por favor, o Syriza é um instrumento político. Ou funciona ou não funciona sob o prisma das lutas materiais -- não de uma grande estratégia, plano ou ideia.

Mas o Syriza precisou aceitar todas as condições que seu próprio povo rejeitou em plebiscito, afinal, entre a dignidade e a Europa, é preciso prevalecer a Europa, pois é a unificação europeia o nome pós-moderno do velho internacionalismo -- e só com a concretização desses ideais poderemos chegar a uma sociedade absoluta e definitivamente digna.


A máquina estatal alemã fez uma aposta infinita e venceu.  Enquanto isso, se ouve a risada das hienas europeias. A Europa se unifica na forma não de um internacionalismo, mas de um estatismo bem Europeu -- como na unificação de todos os modernos Estados modernos, quando uma potência regional subsumiu as unidades políticas menores, como fez a própria Prússia em relação aos pequenos Estados germânicos para, em torno de si, fundar o Império Germânico.

A Europa unificada nascerá não-democrática -- em oposição à realidade conquistada (nem que seja parcial e relativamente) nos planos dos atuais Estados europeus. A Europa, esta Europa, nada tem a ver com democracia como observou com imensa lucidez Giorgio Agamben.


O realismo cínico da direita -- e de burocratas apáticos e apolíticos de bancos e da Europa -- faz com que seu projeto avance, sobretudo quando as forças de oposição colaboram consigo sem querer, movidos a ideias.


Um cadáver insepulto ronda a Europa, é o cadáver de Hegel. Eis a atualização correta para a célebre fala de Marx e Engels neste 2015 -- ano 8 ou 9 da Crise --, quando a bandeira europeia trêmula sobre as ruínas da economia grega.  No Brasil, a síndrome de Bentinho nos toma de assalto e nos imobiliza: se não basta apenas entender o mundo, mas muda-lo, antes é preciso deixar de julga-lo, abandonando a mania de fazer da multidão uma pilha de absolvidos e condenados.

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