Ontem, por 10 votos a 7, o Conselho de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara dos Deputados arquivou a representação do PSOL contra o deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ), na qual ele era acusado de quebra de decoro parlamentar por ofensas aos negros e homossexuais, além de ter ofendido a senadora psolista Marinor Brito. O PSOL optou por não recorrer, o que resulta em decisão terminativa. Os deputados que votaram pró-arquivamento alegaram que punir o deputado seria ferir seu direito constitucional à livre expressão. Ruminemos e reflitamos: a Constituição estabelece uma ampla liberdade de expressão (e é bom que assim seja), mas ressalva limites claros, pois palavras também são atos e podem afetar negativamente a vida em sociedade. A própria imunidade parlamentar, garantia específica aos nossos legisladores, serve para que eles possam forçar o debate público ao seu limite quando decidem as linhas gerais do funcionamento do ordenamento jurídico, mas isso, caro leitor, não equivale a dizer que deputados são irresponsáveis pelo que dizem, do contrário, viveríamos em uma aristocracia eletiva (ou, pelo menos, em uma declarada), não em uma democracia. Aliás, a existência de imunidade parlamentar quanto às declarações dos deputados tem a contrapartida do decoro parlamentar, o que contrabalanceia a liberdade de opinião mais ampla de um parlamentar com a exigência de uma postura moral que não é demandada de um cidadão comum.
A ficção jurídico-constitucional da liberdade de expressão, por sua vez, equivale a direito-meio, constitucionalmente estabelecido pelo poder constituinte e garantido pelo Estado, que serve como modo para o sujeito exprimir sua potência dos mais diversos modos e, assim, ser feliz. É claro que isso sempre enfrentará problemas práticos; o que fazer quando alguém, usando da liberdade que tem previamente garantida, atentar contra o outro? O fato é que a garantia da liberdade de expressão se caracteriza pela inexistência de censura prévia no debate público e, também que, no campo filosófico, ela reside no campo do exercício das faculdades construtivas, não das destrutivas; liberdade de expressão serve para amar o outro, não para destruí-lo - e é uma via de mão dupla, que precisa conceber a existência da multidão, não o um totalizante da unidade popular ou o um atomizante do indivíduo. Desse modo, estaríamos diante da selva e, lá, existe tão somente a lei do mais forte.
No caso Bolsonaro, até as pedrinhas da rua sabem que ele se utiliza de uma leitura infantilóide e umbilical da liberdade de expressão para fazer seu jogo demagógico contra as minorias da vez. Assim, sentado no auto-falante midiático, que sua condição de deputado lhe concede, às custas da integridade de grupos inteiros, ele acerta os corações e mentes dos nichos eleitorais que garantem, de quatro em quatro anos, seu ganha-pão - e a tirania, como sabemos há muito, sobrevive à base do discurso supersticioso, no qual o tirano opõe os viventes contra eles mesmos pelo medo. Liberdade de expressão é, no plano do debate público, liberdade de crítica, não de incitação ao ódio ou liberdade de repressão a outrem. A postura desdenhosa de Bolsonaro, já não é de hoje, emporcalha uma Casa Legislativa cuja credibilidade é, infortunadamente, baixíssima junto à nossa sociedade. Aliás, como nos lembra o filósofo Vladimir Safatle, debater a cassação do referido deputado hoje por racismo e homofobia já é, por si só, uma extravagância, haja vista que há muito ele defende publicamente a tortura e nada foi feito.
É certo também que qualquer debate sobre o caso será sempre marcado por simetrias falsas, portanto, não se espante quando certos setores usarem o argumento de que se a liberdade de expressão serviu para garantir a marcha da maconha, também serve para dar guarita aos pronunciamentos de Bolsonaro. É uma estratégia retórica bastante óbvia, na qual os discursos são reduzidos a qualquer coisa dita sobre qualquer um de qualquer forma, meras formas vazias equiparáveis entre si, como se o problema não fosse sempre a conotação. É como se a defesa da liberdade à manifestação de um grupo vinculasse o seu defensor a defender qualquer liberdade, seja usada ela para o que for - aí, a liberdade dos cidadãos se manifestarem publicamente para dispor de seus próprios corpos acaba nivelada a manifestações públicas de um deputado que se usa de preconceitos correntes para chamar a atenção para si. Evidentemente, neste caso como em tantos outros de cunho jurídico, o problema reside na questão da decisão final, fissura elementar do Estado de Direito: o que interessa mesmo é quem, como e por que decide, aí está o nó górdio. Seja como for, a decisão de ontem do Conselho de Ética só colabora para a manutenção do debate desqualificado na Câmara, cujas sessões pouco a pouco se convertem definitivamente em um verdadeiro show de horrores.