quinta-feira, 30 de junho de 2011

Bolsonaro e a Insustentável Leveza do Conselho de Ética

Ontem, por 10 votos a 7, o Conselho de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara dos Deputados arquivou a representação do PSOL contra o deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ), na qual ele era acusado de quebra de decoro parlamentar por ofensas aos negros e homossexuais, além de ter ofendido a senadora psolista Marinor Brito. O PSOL optou por não recorrer, o que resulta em decisão terminativa. Os deputados que votaram pró-arquivamento alegaram que punir o deputado seria ferir seu direito  constitucional à livre expressão. Ruminemos e reflitamos: a Constituição estabelece uma ampla liberdade de expressão (e é bom que assim seja), mas ressalva limites claros, pois palavras também são atos e podem afetar negativamente a vida em sociedade. A própria imunidade parlamentar, garantia específica aos nossos legisladores, serve para que eles possam forçar o debate público ao seu limite quando decidem as linhas gerais do funcionamento do ordenamento jurídico, mas isso, caro leitor, não equivale a dizer que deputados são irresponsáveis pelo que dizem, do contrário, viveríamos em uma aristocracia eletiva (ou, pelo menos, em uma declarada), não em uma democracia. Aliás, a existência de imunidade parlamentar quanto às declarações dos deputados tem a contrapartida do decoro parlamentar, o que contrabalanceia a liberdade de opinião mais ampla de um parlamentar com a exigência de uma postura moral que não é demandada de um cidadão comum. 

A ficção jurídico-constitucional da liberdade de expressão, por sua vez, equivale a direito-meio, constitucionalmente estabelecido pelo poder constituinte e garantido pelo Estado, que serve como modo para o sujeito exprimir sua potência dos mais diversos modos e, assim, ser feliz. É claro que isso sempre enfrentará problemas práticos; o que fazer quando alguém, usando da liberdade que tem previamente garantida, atentar contra o outro? O fato é que a garantia da liberdade de expressão se caracteriza pela inexistência de censura prévia no debate público e, também que, no campo filosófico, ela reside no campo do exercício das faculdades construtivas, não das destrutivas; liberdade de expressão serve para amar o outro, não para destruí-lo - e é uma via de mão dupla, que precisa conceber a existência da multidão, não o um totalizante da unidade popular ou o um atomizante do indivíduo. Desse modo, estaríamos diante da selva e, lá, existe tão somente a lei do mais forte. 

No caso Bolsonaro, até as pedrinhas da rua sabem que ele se utiliza de uma leitura infantilóide e umbilical da liberdade de expressão para fazer seu jogo demagógico contra as minorias da vez. Assim, sentado no auto-falante midiático, que sua condição de deputado lhe concede, às custas da integridade de grupos inteiros, ele acerta os corações e mentes dos nichos eleitorais que garantem, de quatro em quatro anos, seu ganha-pão - e a tirania, como sabemos há muito, sobrevive à base do discurso supersticioso, no qual o tirano opõe os viventes contra eles mesmos pelo medo. Liberdade de expressão é, no plano do debate público, liberdade de crítica, não de incitação ao ódio ou liberdade de repressão a outrem. A postura desdenhosa de Bolsonaro, já não é de hoje, emporcalha uma Casa Legislativa cuja credibilidade é, infortunadamente, baixíssima junto à nossa sociedade. Aliás, como nos lembra o filósofo Vladimir Safatle, debater a cassação do referido deputado hoje por racismo e homofobia já é, por si só, uma extravagância, haja vista que há muito ele defende publicamente a tortura e nada foi feito.

É certo também que qualquer debate sobre o caso será sempre marcado por simetrias falsas, portanto, não se espante quando certos setores usarem o argumento de que se  a liberdade de expressão serviu para garantir a marcha da maconha, também serve para dar guarita aos pronunciamentos de Bolsonaro. É uma estratégia retórica bastante óbvia, na qual os discursos são reduzidos a qualquer coisa dita sobre qualquer um de qualquer forma, meras formas vazias equiparáveis entre si, como se o problema não fosse sempre a conotação. É como se a defesa da liberdade à manifestação de um grupo vinculasse o seu defensor a defender qualquer liberdade, seja usada ela para o que for - aí, a liberdade dos cidadãos se manifestarem publicamente para dispor de seus próprios corpos acaba nivelada a manifestações públicas de um deputado que se usa de preconceitos correntes para chamar a atenção para si. Evidentemente, neste caso como em tantos outros de cunho jurídico, o problema reside na questão da decisão final, fissura elementar do Estado de Direito: o que interessa mesmo é quem, como e por que decide, aí está o nó górdio. Seja como for, a decisão de ontem do Conselho de Ética só colabora para a manutenção do debate desqualificado na Câmara, cujas sessões pouco a pouco se convertem definitivamente em um verdadeiro show de horrores.


terça-feira, 28 de junho de 2011

Capita vs.Tostão: A Questão da Pensão dos Campeões Mundiais

Tostão e C.A. Torres
Há alguns anos atrás, o então Presidente Lula prometeu uma pensão aos campeões mundiais de futebol. Hoje, ela tornou-se uma proposta concreta e está prestes de passar por votação no Senado. Não só, ela já acende polêmicas, mesmo no meio seleto dos campeões mundiais, como podemos ver pelas acusações pesadas de Carlos Alberto Torres - capitão do Tri e favorável à medida - feitas contra seu ex-companheiro de Seleção - e contrário a ela -, o hoje médico e colunista esportivo Tostão. A contenda em questão traz à baila uma série de questões sobre a condição do jogador de futebol na nossa sociedade e, ainda, qual a responsabilidade do Estado em relação a eles. O futebol é uma parte importante da cultura nacional, mas jogadores não são mitos, são gente de carne e osso.  

A promessa de Lula faz sentido, muitos dos nossos ex-campeões restam em asilos, onde se encontram, não raro, doentes e desemparados. Mas também pode-se argumentar que a medida é insuficiente. Por que não algum tipo de aposentadoria para todos os ex-jogadores da Seleção? E a questão da aposentadoria de jogadores de futebol e atletas de um modo geral? Sim, pois sua carreira, via de regra, é curta, o que os obriga a arranjarem uma nova profissão no auge da vida adulta, o que nem sempre dá certo. Jogadores de futebol, especialmente, nem sempre reagem bem ao final da carreira: uma hora são astros, nem que seja de uma cidade do interior, mas num passe de mágica, não são mais nada. Isso, ao mais tardar, aos quarenta anos de idade.

Alguns jogadores recomeçam suas vidas em outras áreas com o pé de meia que fizeram, outros nem isso conseguiram fazer - a vida média de um jogador de futebol brasileiro está longe do glamour dos grandes campeonatos -, existem aqueles que continuam no mundo do futebol como treinadores, empresários e afins, mas muitos terminam deprimidos, no alcoolismo, perdidos. Somos uma pátria de chuteiras, não de coturnos, portanto, a síndrome do veterano aqui não se refere à guerra, mas sim a uma peculiar versão sua, domesticada e contida nas quatro linhas do gramado. 

Sim, o Capita errou feio ao se referir a Tostão da maneira belicosa que fez, rotulando-o com adjetivos de toda sorte - justo Tostão, sujeito tão pacato e educado -. mas será que ele estaria errado? Quer dizer, embora se entenda que a proposta de Lula, por si só, seja insuficiente, será que isso exclui a sua implementação? Ou deveríamos, em nome de uma ética maior e transcendente, abrir mão de uma medida boa, pois se não dá para fazer tudo agora, temos de nos contentar com nada? Cá entendemos que não é bem por aí, ainda mais quando se tratam de vidas. Há quem não precise de ajuda, então que abra mão e doe o dinheiro, mas não é possível ser contra direitos para o grupo ao qual pertence em nome da sua condição privada. 

Argumentar que isso é "dinheiro público" também não nos parece um bom caminho, afinal, isso não oneraria de forma relevante o erário público: tanto se esvai, por que não gastar um pouco com nossos velhos campeões? Além do mais, o dinheiro, meus caros, sempre é público. Longe de ser excluído de pronto, a pensão para ex-campeões mundiais de futebol é justa e pode ser, ainda por cima, instrumentalizada no debate sobre a aposentadoria de ex-atletas de um modo geral - desde que tenha quem o faça, é claro, se ficarmos às voltas com os muxoxos de sempre, nunca saíremos do lugar.



segunda-feira, 27 de junho de 2011

Versos de Inverno

Napoleão no Inverno
Eu crio
e rompo a anestesia
mesmo no frio
faço alguma folia


Bobos são os meus versos
mas ocupam a minha vida
loucuras eu não te peço
só lembre de mim na despedida


Pobre coração,
condenado ao abandono
escuta essa canção
ela trespassa o mais profundo sono


Temores do inferno
façam-se rima
tremores do inverno
não duram à mudança do clima


Gira o mundo em pesado andor
mas sempre restam as eternas amigas
de um lado a dor
do outro lado a bebida



O AI-5 Digital, a Pedofilia e a Exceção

Não resta dúvida que problematizar a questão da exceção é o que há de mais interessante no Direito. Para que uma medida de exceção cole, um argumento de emergência precisa sustenta-la, o que, por sua vez, demanda um álibi - uma justificativa racionalizante para o rompimento das regras do jogo ser deglutido pela massa (tornada) passiva; multidão reduzida à rebanho, o delírio máximo do Poder. O caso recente de ataques a sites do Estado e de um link de um site com cenas de pedofilia que rodou pela rede tem servido para, olhem só que coincidência, os defensores do energúmeno projeto de lei d0 deputado Eduardo Azeredo (PSDB-MG), devidamente apelidado de "AI-5" digital, voltarem a coloca-lo em pauta no debate público: controle da internet, com direito à espionagem de servidores, como forma de "evitar o mal". Tratam-se de sofismas muito óbvios, que, no entanto, se repetidos à exaustão sem réplica, podem se tornar verdades: o álibi da pedofilia nem se fala, pois (I) o distúrbio mental que leva adultos a abusarem crianças não se confunde com tipo penal do estupro de vulnerável (art. 217-A do Código Penal) ou com demais formas de abuso previstas em lei, (II) tais abusos não ocorrem, obviamente, em meio virtual, mas sim em meio físico = e é falso o argumento de que como a Internet serve para disseminar material, ela deveria sofrer algum tipo de controle, desse jeito o Estado deveria grampear previamente o telefone de todos só porque é possível ameaçar outrem de morte por meio de uma ligação. Ademais, como felizmente pontuou o Ministro da Ciência e Tecnologia Aloizio Mercadante, invasão de sites estatais significa que o governo deve aprimorar seus sistemas de defesa, não que isso deva servir de mote para censura ou perseguição indiscriminada. Não podemos deixar as superstições se espalharem, sob pena de pagarmos caro - um dia, há muitas e muitas luas atrás, os boatos sobre o incêndio de um parlamento serviram para tirar o pino da granada que deu no Holocausto. Prestemos atenção nisso.



domingo, 26 de junho de 2011

A Europa e o Espaço Schengen: Exceção, Imunização e Migração

Espaço Schengen:
O Espaço Schengen refere-se ao acordo homônimo travado entre vários Estados europeus, mediante o qual eles resolveram se integrar fisicamente, abrindo suas fronteiras para possibilitar a circulação de pessoas pelo continente. Ele não se confunde com a área da União Europeia nem com a da Zona do Euro, mas também faz parte do projeto de integração continental europeia, que se opera em múltiplas frentes; Sua realização remonta ao ano de 1985, mas sua institucionalização data de 1997. No entanto, agora, as coisas começaram a mudar: há poucos dias, em uma cúpula europeia em Bruxelas, os Estados-parte deliberaram pela emenda do acordo, criando assim cláusulas de salvaguarda para situações excepcionais - a saber, pressões de imigrantes nas fronteiras, mas o estado de emergência em questão foi decretado sob o mote da preocupação com o processo revolucionário no norte da África. É curioso relacionar imigração em massa com o fim de ditaduras: o que está em jogo, sejamos honestos, é a imunização da velha Europa não só em relação a outras etnias como também a novas ideias.

Schengen reúne mais membros do que a União Europeia e a Zona do Euro, o que demonstra a falta de confiança de muitos europeus frente ao modo como se trava os dois últimos projetos. Há mais gente integrado fisicamente do que política e economicamente, isso é sintomático. Só estão fora mesmo do Espaço Schengen a área de influência direta da Rússia - mesmo os bálticos estão lá - e os países que, um dia, formaram a Iugoslávia. O Reino Unido está lá com um pé fora e outro dentro do mesmo modo que está na UE - e a Irlanda, apesar de integrada ao projeto europeu, está parcialmente dentro do Espaço Schengen. Países da Escandinávia e a Suíça, que, por razões internas, estão com um pé dentro e um fora da UE e da Zona do Euro, estão lá também. Ainda assim, o mito do encanador polonês, o rude e pobre trabalhador do leste que viria tomar o emprego dos trabalhadores dos países desenvolvidos - a troco de baixos salários, só que legalmente - sempre esteve de alguma forma no ar ou, pelo menos, alimentando o discurso xenófobo da extrema-direita. Agora, reforça-se a imagem do muçulmano - árabe, otomano ou negro -, que irá se usar das brechas de Schengen para corromper o bem-estar, a cultura e a economia da Europa.

A questão da imigração e da condição do imigrante é central no mundo contemporâneo, como pontuam com precisão Negri e Hardt, sem pensar nelas, é impossível problematizar a questão social nos dias de hoje. A condição do imigrante e, mais até do que isso, o próprio  fluxo migratório, representa um potencial revolucionário ímpar em um mundo de estruturas políticas e socioeconômicas cada vez mais rígidas. É essa possibilidade de movimentação corpórea que põe, a bem da verdade, em xeque o quase-perfeito esquema tirânico da sociedade de controle. Poder escapar à área de jurisdição do tirano ou adentrar-lhe como corpo estranho, fluxo indecodificável - o horror em pessoa para o déspota - são as grandes ameaças a essa ordem. Isso não é novo, embora agora, pelas contingências da História, tenha tomado uma intensidade sem igual; essa é a história de um sem número de povos, inclusive a dos judeus na Europa, como a vida de Spinoza, para ficar em um exemplo que agradaria a Negri, ilustra: sua família foge do Portugal tomado pela Inquisição para aportar na Holanda, ainda que fosse para ser capturada pelo sábio déspota da Casa de Orange - é daí que se pôde operar a produção de diferença, esvaziando o poder despótico da Igreja e da Coroa pela fuga, para, nas muitas zonas em que o radar do despotismo esclarecido flamengo não alcançava, construir um país razoavelmente mais livre e tolerante ao norte. 

E falando no sempre necessário Spinoza, não é demais lembrar que mesmo às voltas do Tratado Teológico-Político completar 350 anos, ele continua tão atual: hoje, ainda, continua-se usando o discurso da superstição para fazer os súditos combaterem contra si como se por si fosse; o mito do encanador polonês ou mesmo do muçulmano corruptor da cultura europeia são das muitas narrativas típicas que o tirano faz uso para inimizar os trabalhadores europeus contra seus companheiros de desdita. De repente, são as pessoas que ocupam funções que nenhum europeu gostaria de ter para si que são apontadas como responsáveis por um desemprego estrutural, causado pelo próprio exercício da tirania na forma da atual governança União Europeia - pior ainda, só para ficar entre amigos, não custa  relembrar as palavras de Deleuze no Abecedário sobre a questão social na França dos anos 30: lá, como em toda Europa, a construção da rede de bem-estar social e a conquista de direitos pelos trabalhadores causou mais estupor à boa sociedade do que a própria invasão nazista. A mesma direita francesa que hoje usa a integridade da rede de bem-estar social (que ela nem defende, aliás) como forma de inimizar seus nacionais contra os imigrantes, é a mesma que um dia se opôs à sua criação - e a nega ao deixar de fora os imigrantes, cada vez mais responsáveis pela produção de riqueza em um continente estagnado.  

O pré-cosmopolitismo limitado que o Acordo de Schengen trouxe à Europa abria um flanco importante, ao começar a estabelecer uma neutralização parcial do mecanismo de nacionalidade - responsável pela atribuição de identidade subjetiva primordial do Estado, qual seja, aquela que reduz a multidão ao binarismo nacional-estrangeiro, por meio do qual começa a se operar todo o esquema de regulação da capacidade de agir do indivíduos, inclusive no que toca à sua autonomia interior.  A emenda feita ao soneto, portanto, começa a erodir o espírito do acordo e o que poderia evoluir, estagna-se. O mesmo sistema que explora os imigrantes é aquele que ergue válvulas - e não barreiras - fronteiriças para tentar decodificar o fluxo migratório - para, aí, legitimar melhor a construção de uma figura intermediária, o imigrante (cuja humanidade relativizada é porta para a sua sobre-exploração laboral) e assim justificar como na Europa igualitária, uns são mais iguais dos que os outros. O imigrante interessa ao Capitalismo europeu seja pelas funções que desempenha quanto pelo modo como poder exercê-las, mas é preciso que ele esteja adstrito aos mecanismos de controle jurídicos e políticos que permitam isso e, mais importante, que isso tenha legitimidade junto à sociedade. 

Para além da economia, interessa ao poder europeu neutralizar também neste momento os ventos que sopram do norte da África; faria mais sentido fechar mais as fronteiras em relação à Tunísia e ao Egito, se o problema fosse mera proibição de entrada, enquanto aqueles países estavam sob ditaduras enferrujadas, não agora que, em tese, têm a oportunidade de se refundar. O modo e o que se propõe nessa refundação, com efeito, não interessa à Europa, sobretudo agora que espanhóis lotam as praças de seu país enfrentando o farsesco sistema parlamentar local à moda do Egito. A medida em tela consegue ser, portanto, ao mesmo tempo sintomática e agravante da crise europeia atual, cuja soma de uma esquerda torpe a líderes ineptos marca o tom da caminhada para o abismo.

sexta-feira, 24 de junho de 2011

Crise na Europa: O Novo Governo Português

Passos Coelho e Paulo Portas
O XIX Governo Constitucional português tomou posse há menos de uma semana. A coalizão liderada pelo novo primeiro-ministro social-democrata Pedro Passos Coelho assume o país, sucedendo seis anos de governo socialista que, sob a liderança de José Sócrates, chefiou o XVII e (o curto) XVIII Governo Constitucional. A vitória de Sócrates, ano passado, se deu muito mais pelo temor do eleitorado frente ao radicalismo ultra-liberal de Manuela Ferreira Leite do que por sua força eleitoral; este ano, com a constância do fracasso das tentativas de Sócrates de salvar o país da crise e sua demissão e, ainda, a reunião dos (até então rachados) social-democratas em torno do nome jovem de Passos Coelho, o pleito resolveu-se facilmente para o PSD, que teve 38,6% dos votos (e mais os 11,7% do CDS-PP) contra 28,06% do PS (e, ainda, 7,91% da coalização comunista-verde e 5,1% do Bloco de Esquerda).

Basicamente, a história recente de Portugal não é outra coisa senão a própria expressão da ordem decorrente da Revolução dos Cravos em 1974, quando o tardio regime fascista foi enfim derrubado. Nenhum partido se assume como "direitista" - nem mesmo o CDS-PP - e o grande representante da centro-direita local é, tal como no Brasil, um partido nomeadamente "social-democrata" - que nasce nos corredores universitários sob a inspiração do sucesso da social-democracia nórdica nos anos 70, enquanto o Partido Socialista é uma criação de marxistas independentes da linha de Moscou e trabalhistas no exílio, restando o outro naco para o Partido Comunista, ortodoxo e alinhado à União Soviética. Não à toa, quem é imediatamente reconhecido como representante da esquerda europeia ocidental é o PS e não o PSD, que vagou perdido pelo espectro político local para, depois de colaborar com a entrada de Portugal na Comunidade Econômica Europeia (CEE, embrião da União Europeia), dar uma guinada para o social-liberalismo sob a liderança de Aníbal Cavaco Silva, se estabelecendo como o representante da centro-direita no país.

A existência não-social-democratizada dos social-democratas lusos tem muito a ver com os rumos que os socialistas, uma vez tendo assumido a hegemonia política após a Revolução dos Cravos, deram à própria Revolução; o fervor revolucionário e todo o caldeirão de ideias do Portugal do início dos anos 70 foi, rapidamente, liquefeito em prol de uma entrada segura e conservadora do país no "sistema europeu" - na prática, a abertura do país para a entrada do Capitalismo europeu. Nesse sentido, torna-se Portugal mais uma democracia parlamentarista (aqui, republicana, mas isso é uma alegoria como a monarquia o é em outras partes do velho mundo), na qual os partidos hegemônicos tendem a ser apenas a variação do mesmo padrão alinhado, por sua vez, ao processo de universalização do capital europeu. O PS de força revolucionária assume o que ele realmente foi desde seu nascedouro, numa medieval cidade alemã sob a proteção da social-democracia local, um partido reformista de centro-esquerda enquanto os social-democratas se puseram como antagonistas.

Os socialistas portugueses, diferentemente dos seus congêneres gregos e espanhóis, não conseguiram fazer governos de concertação minimamente eficientes, com o líder socialista Mário Soares amargando relevantes fracassos nos anos 70. É aí que começa a longa história da crise que o país vive hoje; depois de um duradouro governo social-democrata com Cavaco Silva, os socialistas voltaram ao poder apenas com António Guterres nos anos 90, perdem o poder para o mal sucedido (e curto) governo de Durão Barroso (PSD) e retornam com José Sócrates, que conduziu o PS para a chamada terceira via, ocupando uma larga faixa que ia da centro-esquerda à centro-direita, empurrando seus rivais para a extrema-direita - o que o permitiu governar por mais tempo que o ícone de sua legenda, Mário Soares. 

Seu grande mote, o europeísmo, rigorosamente, não tem nada de original ou própria dos socialistas, é uma bandeira compartilhada por todos, fosse um social-democrata e faria, rigorosamente, o mesmo. Sob sua liderança, aliás, as matizes que ainda diferenciavam socialistas e social-democratas se apagaram. Manuela Ferreira Leite tentou estabelecer, sem sucesso, um diferencial para os social-democratas à direita, o que lhe custou a derrota. O atual primeiro-ministro luso, Passos Coelho, ascende depois de vencer a disputa interna do PSD este ano, ao defender que o partido volte ao centro político. Eleitoralmente, isso não só faz sentido como também funciona, mas a política, como sabemos, vai muito além de meras eleições. Suas ideias, entretanto, nada tem de novo ou melhor como seu próprio livro "Mudar" - a bem da verdade, uma peça publicitária-eleitoral - ilustra: o pouco que há de original ali não é bom e o resto já está superado.

Hoje, o problema português em nada difere do caso grego: existe um déficit em conta corrente gigantesco porque uma economia como a lusitana, ao compartilhar a mesma moeda que economias muito mais competitivas, estará fadada a apresentar grandes déficits comerciais; não só, os mecanismo da União Europeia apenas serviram para construir uma falsa equiparação econômica entre as partes, com o crédito sendo estimulado para portugueses (assim como para gregos e espanhois) que estariam fadados a importar produtos de Alemanha e França. Abalado os mecanismos da dívida infinita ou melhor, o sistema financeiro internacional, com a atual crise, supervalorizado o Euro por conta da desvalorização do dólar, a hemorragia aumenta em Portugal e o resultado é que o Estado precisa gastar recursos salvando bancos e, ao mesmo tempo, a balança comercial começa a ficar mais desfavorável ainda; por outro lado, as potências europeias saem de perto para não se contaminarem e Portugal arca, mais rápido do que pode gritar por socorro, com um ônus imenso.

O que teria Passos Coelho a dizer sobre isso? A velha cantilena da centro-direita europeia, enevoando fissuras estruturais evidentes com uma cortina de fumaça primária, que passa por chavões que culpam o bem-estar social pela crise; de repente, são as pessoas comuns, que não assumem o "custo" dos serviços de saúde e de educação que oneram a máquina pública - nesse mundo mágico, não há mais déficits comerciais crônicos por conta do Euro nem custos sociais gravíssimos resultantes da financeirização econômica (fruto de algo mais grave, que atende por problema da realização do valor), apenas uma população fraca e covarde, que não arca com seus gastos e assim destrói o erário público. Em nome de "uma responsabilidade pessoal", o sistema de proteção social deve ser desmontado, enquanto o Estado resta gigantesco, mas posto em função de um sistema econômico disfuncional por sua própria natureza - incapaz até de reconhecer que tais investimentos em educação e saúde sempre serviram para a capacitação (engorda) dos trabalhadores cuja produção explora (devora).

Nessa farsa, se encontra a centro-esquerda local, tão parecidos com seus rivais que os próprios atores começam a confundir a personagem que deveriam representar. De repente, o eleitorado da Islândia e da Grécia tiram seus governos e de centro-direita para elegerem governos de centro-esquerda que farão algo parecido, enquanto portugueses e húngaros ( talvez espanhóis logo mais) fazem o contrário; é a "covardia" (que não é  outra coisa senão o próprio ethos) da social-democrata servindo como ponte para o fascismo - como não só testemunhou Walter Benjamin, mas anteviu como constante. O que há, agora, é o Estado feito grande pelos progressistas d'antanho que, tão logo pôde, terminou por fagocitar as tendências libertárias em seu interior para se livrar dos grilhões de um estado de bem-estar social, aparentemente desnecessário com a ausência de um certo espectro que já rondou a Europa. A luta, agora, passa pelas ruas.


quinta-feira, 23 de junho de 2011

Santos Campeão das Américas

Neymar abraça Muricy -- daqui
Ontem o Santos venceu o Peñarol por 2x1 e venceu pela terceira vez a Copa Libertadores. É a primeira vez, desde a era Pelé, que o Santos venceu o maior torneio sul-americano. A geração de Robinho não conseguiu, parou no Boca Juniors multicampeão em 2003, embora ontem dois de seus representantes, Elano e Leo, tenham levantado a taça junto com a geração de Neymar e Ganso. Caso vença o Barcelona no fim do ano, o Santos se iguala ao São Paulo como maior vencedor brasileiro de grandes competições internacionais. Essa atual geração, a quarta notável já formada na base da Vila, dominou o cenário nacional no primeiro semestre do ano passado sob o comando de Dorival Júnior, mas confusões sem fim - e a própria queda do comandante por conta de uma delas - fizeram o time entrar em espiral. Muricy Ramalho, que há muito amargava fracassos em torneios eliminatórios, largou este ano o Fluminense com o qual foi campeão brasileiro ano passado e fez a equipe do litoral paulista funcionar; isso foi o suficiente para levar o Paulista deslanchando na fase final e ganhar a Libertadores do mesmo modo. Ontem, o Peñarol foi um adversário duríssimo, assustou bastante no primeiro tempo, mas na segunda etapa algo mudou e o time santista entrou com outro ânimo para definir o jogo em 2x1.  Não acho esse time do Santos melhor do que aquele construído por Leão - e liderado em campo por Robinho e Diego -, que teve pela frente na Libertadores de 2003 um Boca Juniors que ganhava tudo - sim, o Peñarol tem história e é um belíssimo time, mas passa longe de se comparar ao Boca do começo da década passada -; embora esse Santos atual seja melhor que o de 2007, que era treinado por Luxemburgo e parou no Grêmio de Mano Menezes na semi, talvez, pela campanha daquele time na Libertadores, ele merecesse mais o título do que esse time atual nessa edição do torneio sul-americano. Seja como for, esse Santos é campeão incontestável da Libertadores e tem o melhor time do continente mesmo. Não sei se Neymar conseguirá ser melhor do que Robinho, ele vai precisar ter a regularidade que o segundo não teve, mas tem muito a amadurecer; Ganso, ao meu ver, se criar um pouco mais de cabeça tende a ser a grande nome que esse Santos legará ao futebol brasileiro, ocupando de cara uma camisa dez da Seleção que, por ora, está a espera de um dono à altura - e Elano continuará a ser uma peça importantíssima na Seleção pelos próximos anos. Aliás, será um jogão com o Barcelona no final do ano.


quarta-feira, 22 de junho de 2011

O Brasil e o Segundo Tempo da Crise Econômica Mundial

Como nos lembra o nosso sempre perspicaz Allan Patrick, a Crise Econômica Mundial se aproxima do seu Segundo Tempo. Se, em um primeiro momento, vimos a explosão da bola do sistema financeiro, cujas implicações transcenderam o campo das finanças,  atingindo o domínio econômico e arrastando vários países junto. Agora, baixada a poeira do primeiro momento da crise, assistimos a uma nova escalada, na qual a economia americana começa a arcar com o ônus do seu largo e continuado endividamento - a despeito de emitir a moeda hegemônica, como previmos aqui -, a União Europeia vê sua situação se agravar, vítima da sobrevalorização internacional do Euro e dos impactos internos da homogeneidade monetária - como se vê no caso grego - e o Japão, por sua vez, além de estar enrascado com a crise econômica, ainda se viu destruído por um violento desastre natural que comprometeu sua planta energética nuclearizada, o que terá um impacto profundo e duradouro; enquanto isso, China, Brasil e Índia emergiram fortalecidos desse cenário, mantendo altas taxas de crescimento econômico e se voltando para dentro 

Acrescentamos da nossa parte que embora a desregulamentação nos países cêntricos, sobretudo os EUA, tenha colaborado para o atual momento, isso foi apenas uma fissura que se abriu mais ainda com o abalo, mas não foi a causa dele.  O fato é que as economias capitalistas se reuniram desde o pós-guerra em torno dos Estados Unidos e não constituíram instituições internacionais propriamente ditas para auto-sustentarem o sistema; nada de moeda única como sonhava Keynes: o dólar passou a funcionar como essa moeda de reserva, embora seu funcionamento como tal nunca tenha deixado de ser precário. Fosse como fosse, o mundo capitalista seguiria dali em diante dependente de decisões internas dos EUA a respeito de sua moeda.


A grande questão que não foi levantada é: e se os governos americanos começasse a tomar atitudes irresponsáveis de forma indiscriminada? Todo o sistema capitalista - agora mundializado, com o colapso soviético - dolarizado nas trocas comerciais e nas reservas dos Estados, acabaria por ruir. Com a política de irresponsabilidade fiscal de Bush Filho - altos gastos militares, favorecimento do grande complexo bélico-industrial junto com o petroquímico - e a insustentabilidade do modelo de produção e consumo local - expresso por um incontornável déficit comercial -, a multidão tomou um susto: o rei estava mesmo nu e tudo era é uma farsa. A partir daí, as coisas saem dos eixos.

Se na primeira onda de choque, o Brasil acionou os mecanismos do regime contracíclico de gastos públicos - que consiste basicamente em economizar nos tempos das vacas gordas para gastar na crise- para sustentar a economia por meio do aquecimento do mercado interno - pela geração de emprego e da renda e incentivar o consumo das famílias -, empreitada da qual se saiu muito bem-sucedido, agora o momento é outro; a economia voltou a crescer e, como prova o exemplo chinês, é preciso que os Bric's se voltem para dentro, uma vez que o comércio internacional tende a declinar severamente.  


Apesar da propaganda da oposição no último pleito, que pegava uma fotografia de certo momento do funcionamento da política contracíclica para "provar" que as contas do país estavam estouradas, o Governo executou devidamente a política; passado o pior, novamente a austeridade e o déficit público voltou a encolher, tomando dimensões razoáveis. 


Neste momento, o Governo está a pôr em prática uma política de grandes obras para aquecer o mercado interno - ainda que de forma um tanto atribulada, como demonstra o caso de Belo Monte e das obras da Copa e das Olimpíadas -, busca agregar valor à cadeia produtiva - como demonstra a troca de comando da Vale feita por Dilma - e segue com políticas que estimulam a geração de emprego e renda salarial - segurando em outra ponta a inflação por conta de um cálculo de custo-benefício em relação aos ganhos que determinada oferta de crédito pode produzir contra o impacto da desvalorização monetária. O câmbio - livre, mas "sujo" - é deixado valorizado como instrumento de combate à inflação porque isso colabora para a incorporação tecnológica, sendo que já não é mais tão relevante para o país continuar a ter gigantescos superávits na balança comercial, até pela boa quantidade de reservas que temos. 


Em tese, está tudo no lugar, mas esse novo momento forçará o Brasil invariavelmente a adotar uma postura ofensiva: é possível aliviar as contas públicas se o país começar a adquirir títulos das dívidas dos europeus, mas não só: isso seria importante para o equilíbrio da União Europeia, que é, enquanto existir, uma importante parceira brasileira. Se boa parte do processo de internalização da nossa dívida externa se deu, infelizmente, por meio de uma operação de alto custo na qual convertemos boa parte das divisas que ingressaram com o boom das exportações em títulos da dívida americana - que até outro dia não traziam grande retorno - para constituir nossas reservas. 


Isso não só teve um custo econômico alto - pois a diferença entre o que esses títulos nos traziam de retorno e o quanto nós gastamos com a manutenção da nossa dívida é um ônus pesado para arcar - como também serviu, de certa forma, para alimentar por alguns anos mais a irresponsabilidade fiscal e monetária dos EUA, causa de boa parte dos problemas do mundo hoje. Agora, em tese, temos mais opções e, não só, o mundo precisa que o Brasil assuma efetivamente o peso que acabou ganhando nos anos Lula: temos como e precisamos ser um ator global de relevo.








segunda-feira, 20 de junho de 2011

Zeca Afonso: a Morte Saiu à Rua

Ano passado, postei algo aqui sobre o bom e velho Zeca Afonso: Os Vampiros - o que vinha bem a calhar no momento político das últimas eleições, convenhamos.  Honestamente, considero que Zeca não foi apenas um dos nomes mais relevantes da cena musical portuguesa no século passado, mas também uma das maiores figuras históricas do país, seja como artista ou como ativista. Ele foi parte de uma geração de ouro portuguesa, a mesma que nos deu um Saramago, nascida sob a égide de um regime fascista que tardava a ruir e, em relação ao qual, não só resistiu bravamente como ajudou a derrubar. Sua arte transpira um intenso devir partisan, algo tão importante nesse momento em que vivemos: é preciso uma política do sensível que se funde na emoção intensa de resistir ao fascismo. Fiquemos com a Morte Saiu à Rua:

Uma carta, um devir

Chegada de Maria de Médici em Marselha -- Rubens
Querida D.B.,


Sim, de fato, há muito não nos falamos e é claro que esse desencontro se deu por culpa exclusivamente minha, mas peço que não me compreendas mal. Isso foi bom para nós dois, tu sabes muito bem das razões para tanto e no fundo hás de concordar comigo - do mesmo modo que não hás de se amolar pelo fato de, apesar de tanto tempo já ter passado, ainda assim eu me referir a ti usando a segunda pessoa do singular. Agora, me escreves para falar sobre teu vindouro casamento e, como se não fosse o suficiente, ainda assumes uma postura inquisitorial, questionando-me sobre o que eu penso de uma instituição tão precária e provisória  quanto o matrimônio. Confesso que me sinto tentado a te responder com uma troça, mas pela consideração mútua, declino - ou, quem sabe, eu decline porque, talvez, não desacredite nele de um todo, desde que isso seja tomado como uma possibilidade existencial e não como uma necessidade social ou, quem sabe, por eu ser bem mais conservador do que gostaria de ser; a minha relação com o matrimônio é curiosa, embora eu não me conceba em um - e grande parte dos casamentos que eu já tenha testemunhado tenham dado errado -, justo aquele que eu presenciei de mais perto, acabou por dar certo. 

Creio que há qualquer coisa de racional nisso, quem sabe se as partes se esmerarem em desenvolver a capacidade de saber conjugar suas vidas no plural, mas também existe a parte obscura, em relação à qual não temos controle algum - e por isso tanto nos amedronta -, que é justamente a que diz respeito ao sensível: certamente a sustentabilidade da vida conjugal passa por uma afinidade demente pelos defeitos do outro - o que não se explica nem se aprende, apenas se sente. Se a vida pós-burguesa, egocêntrica ao infinito, nos faz não aguentar nem mais a nós mesmos, não sei como operaríamos isso ainda hoje - se bem que é tão bom saber que não podemos ter o controle total sobre as coisas, pois isso significa que sempre nos depararemos com uma saída, nem que seja a própria morte, afinal, sempre haverá razões que a própria razão desconhece. 

Mas talvez tudo isso seja uma bobagem tremenda da minha parte. Eu estou dissertando longamente sobre o tornar-se perfeito cônjuge, quando isso, a bem da verdade, pouco importa: talvez fosse tanto mais útil para ti falar no devir eterno amante, o qual há de coincidir com isso que pretendes experimentar tão logo. Antes de mais nada, convém diferir o tornar-se do devir: jamais poderás tornar-te novamente uma linda menininha - como deves ter sido -, mas é possível devires menininha sempre; tornar-se é passar a ser, enquanto devir é sentir a intensa emoção de ser. Preocupar-se com o que podemos - ou pior, devemos - ser é o pior dos pesadelos, enquanto sentir a intensidade de ser é justamente libertar-se das amarras do destino. Portanto, esqueça-te desde já de pensar em uma maneira de tornar-te bem sucedida nesse pacto que ensejas, devenha eterna amante: como já disse o Poeta, e quem sou eu para contradizê-lo, que seja imortal enquanto dure, posto que é chama. Pouco importa a duração, a quantidade, tente sentir isso ao máximo, pois o infinito só existe em ato.

Espero que ele te mereça tanto quanto eu mereço a desdita.

saudações tão cordiais quanto cordial é o meu povo, do teu
F.E.

domingo, 19 de junho de 2011

A Crise Grega como Ponta do Iceberg para a Crise Europeia

Resistência na Acrópole
O mundo foi atingido por uma verdadeira onda de choque entre meados de 2008 e início de 2009. Passado o susto inicial, começou a ficar claro quais eram os reais problemas da economia mundial: longe de ser ela mesma a crise, o abalo do mercado imobiliário americano foi apenas um gatilho financeiro que expôs os pés de barro da economia globalizada. A União Europeia, o grande projeto do capital europeu desde o pós-guerra - e um dos maiores pilares dessa nova ordem -, foi aquele que teve mais fissuras expostas e agravadas. Um dos casos mais taxativos da atual crise foi o dos periféricos da Europa Ocidental, sobretudo, o caso grego: em um primeiro momento, a relutância do Consenso em admitir o que realmente aconteceu, colocando tudo na conta da corrupção local e do caso cavalar de sonegação fiscal que se viu ali; no máximo, falava-se que "o país acumulou dívidas demais" - como se pudesse não tê-las contraído -, mas sempre passávamos batido por eventuais causas daqueles problemas, é como se as coisas, de repente, tivessem brotado do nada. Trata-se, como bem sabem os leitores deste blog, de uma tragédia anunciada.

Pois bem, o arguto leitor deste blog deve estar se perguntando qual a importância de um país tão pequeno para toda a estrutura da Europa e do Mundo e de que modo - e por qual motivo - ele  contraiu tantas dívidas. O primeiro ponto diz respeito como a União Europeia já era um projeto concebido desde o fim da Segunda Guerra: o que restou do Capitalismo na Europa precisava não apenas de políticas de emergência internas para frear a expansão do socialismo soviético - o que deu na social-democracia do pós-guerra - como também de integração e cooperação direta, entre os Estados, no plano externo. Um primeiro passo foi a integração dos grandes mercados - França, Alemanha Ocidental, Itália, BeNeLux, Reino Unido -, depois a absorção dos periféricos - Portugal, Espanha, Grécia e Irlanda -; por menores que fossem a economia dos pequenos, era da ausência de um processo de rejeição deles que dependia - como depende - a expansão do bloco. Eis aí que chagamos ao segundo ponto: se tudo corre bem com a integração de mercados e a política de acesso ao crédito e programas de equiparação regionais, dos anos 70 aos 90, com a adoção do Euro surge um problema, as contas dos países começam a não fechar, pois eles não estão nem de longe de condições de igualdade com a Alemanha ou a França.

Aparentemente, isso não era um problema: os gigantescos déficits comerciais de Portugal, Grécia ou Espanha - e os déficits públicos para bancarem essa equiparação - eram cobertos por vultuosos empréstimos que resolviam o problema de caixa, engordavam a receita de bancos alemães e franceses e, de quebra, movimentava a indústria dos grandes países - naturalmente mais competitiva que a dos seus vizinhos periféricos.  Um país como a Grécia enriquecia de um modo estranho, sem desenvolver devidamente sua cadeia produtiva, mas recebendo funções adjacentes da administração do Capitalismo Europeu; pátrias de consumidores de produtos dos seus vizinhos, abastecidos pela (aparentemente) infinita máquina de crédito europeia. Como em matéria de economia não há intervenção que não tenha, ao mesmo tempo, ônus e bônus e nada que não tenha limite, a corda do endividamento dos pequenos esticou demais e, com o choque da crise financeira americana, acabou por estourar: a estrutura financeira de Alemanha e França entenderam por bem não correr riscos, cortaram linhas de crédito e os periféricos foram deixados a própria sorte, precisando de empréstimos do FMI e expostos a "´planos de austeridade".

No que toca ao caso grego: é fato que a alta sonegação fiscal e o fato que as contas públicas, de fato, estavam numa situação pior do que a alegada, agravaram a situação, mas ela não é causa da problemática grega. Do contrário, seria um fenômeno meramente grego. Infelizmente, não é o caso. O endividamento atual, está para além de 150% do PIB decadente e, simplesmente, não há condições de paga-lo. De acordo com os dados do Eurostat, a situação do país não é nada animadora e o problema não é apenas o déficit de 10,5% do PIB nas contas públicas: A Grécia também está arcando com um déficit comercial de quase 9% do PIB. O déficit em conta corrente, que é o que realmente interessa, portanto, é gigantesco. O ponto é que justamente por não ter mais um moeda própria - e, pior, fazer parte de uma homogeneidade monetária com países muito mais competitivos -, que o Estado grego precisa arcar com um pesado custo dessa integração. O Euro gera um custo altíssimo para a Grécia, que precisaria trabalhar com superávits nas contas públicas na casa de 8% ou 9% para manter o equilíbrio sistêmico. Concretamente, isso é impossível, ainda mais graças às fraudes fiscais e aos resgates do Estado junto ao seu mercado financeiro interno devido a crise, o que fez com que o erário público local foi mais pressionado mais ainda, extrapolando seus limites. Não há como cortar quase 20% do PIB em gastos públicos do nada  no curto ou médio prazo, sem um plano de reequilíbrio acompanhado pela comunidade internacional.

Não existe, dentro desse contexto, "plano de austeridade fiscal" - eufemismo para cortes de programas sociais para o pagamento de dívidas - que seja social ou politicamente sustentável na Grécia. A moratória da dívida é a única saída possível para os gregos, mas não só: por mais que seja altíssimo o ônus de arcar com a saída da Zona do Euro, é nesse sentido que as autoridades gregas deveriam, ao menos, discursar para criarem uma pressão sobre o motor franco-germânico; é preciso que ele também arque com os prejuízos do bloco, depois de tanto tempo apenas ganhando com ele. Tivessem uma moeda própria, os gregos não apenas não teriam entrado em uma situação tão greve como também teriam como, da desvalorização monetária, conseguir fazer ajustes nas contas de uma forma um tanto menos pesada - basta lembrar do Brasil dos anos 90 que, depois da rotunda trapalhada da paridade com o Dólar, pôde desvalorizar sua moeda e, assim, garantir um ajuste sustentável nas suas contas. Claro que isso tornaria a Grécia a pequena pedra que, uma vez movida, derrubaria todo o monte, gerando um soterramento; isso teria consequências que iriam para muito além do econômico e do diplomático, mas é a saída.

A postura autista da chancelar alemã Angela Merkel e do presidente francês Nicolas Sarkozy denota, na verdade, desespero: esperam eles que os contribuintes dos países periféricos arquem sozinhos com o custo (como se pudessem!) da crise atual para fazerem seus países atravessarem a tempestade sem se molhar, mas esquecem que se isso der errado, e o arrocho derreter aquelas economias, tratar-se-á não mais de um efeito dominó financeiro como também político e social, cujas consequências são assombrosas. Logicamente, é preciso rediscutir o pacto monetário europeu, o que tem implicações profundas. Seriam capazes as atuais lideranças europeias, sobretudo dos grandes países, assumirem realmente os encargos da manutenção do sistema de "solidariedade continental", peça-chave que tem garantido a paz desde o final da Segunda Guerra? Claro que esse é um questionamento cínico da minha parte, essa problemática não está, nem pode ser, posta pelas atuais forças políticas dominantes no Velho Mundo: a organização da UE nesses moldes não é fruto do mero acaso do destino, mas das necessidades [de universalização] do grande capital local. A questão atual é saber se o movimento multitudinária que está a invadir as praças públicas, como visto na Espanha mês passado, ganhará força e esvaziará, por falta de público, a farsa encenada nos parlamentos europeus ou se, uma vez mais, a máquina tirânica catalisará a xenofobia continental e assim irá sobreviver.


sábado, 18 de junho de 2011

Melancolia

Othello e Desdemôna -- Berchem.
No fundo o sol se esconde
e ao fundo toca a sinfonia
te encontrarei onde,
fugaz alegria?
responde


Resto cá com minha fiel companhia
aquela que me segue há muito e desde longe:
a velha e impiedosa melancolia
esse é o seu nome
e por sua culpa escrevo esta poesia


Só palavras ao vento
em rimas tão pobres
Mas esse é o meu sincero lamento
espero que não me demore
enquanto vago ao relento


Nos tempos presentes,
terno segue o amor,
mas como nos lembram os ausentes
eterno mesmo só a dor,
não nos percamos olhando para os horizontes


Fugaz alegria,
agora te vejo melhor,
teu nome é melancolia
e nunca negaste o meu clamor:
tu sempre foste a minha guia.

sexta-feira, 17 de junho de 2011

O Governo Dilma e a Questão do Sigilo

Gleisi (Casa Civil) e Ideli (SRI) Conversam com Dilma -- O Globo
Como tratado aqui recentemente, algo aparentemente inexplicável aconteceu no Palácio do Planalto e o governo pensou em voltar atrás no que toca à sua política de publicização dos dados da Ditadura: depois de aprovado na Câmara o projeto de Lei que estabelecia prazo limite de 50 anos para divulgação de dados ultra-secretos do Estado - projeto apoiado e articulado pelo próprio governo - eis que, por meio de declarações bombásticas da nova secretária de relações institucionais, o Planalto parecia estar resolvido a declinar de sua proposta original e articular no Senado a não aprovação daquele PL. Contra isso, levantou-se uma enorme pressão oriunda da sociedade civil e da própria bancada petista no Senado, o que, junto ao senso de oportunidade da oposição (que encampou a defesa pública do projeto), levou a Presidenta a pronunciar-seratificando a posição original do governo de apoiar o projeto - que ora será submetido ao Senado, onde sua aprovação já tem o apoio das bancadas do PT, PSDB, DEM e parte do PMDB. Nem vamos entrar no mérito da questão novamente, mas do ponto de vista da prática política, foi uma manobra infantil que gerou um desgaste desnecessário: se era essa a posição de Dilma, por que diabos isso não foi deixado claro logo? Se não era, por que resolver barrar o processo legislativo justo agora? Foi um grave falha de articulação política, o que suscita sérias dúvidas a respeito da recém-empossada equipe da Casa Civil e das Relações Institucionais. De todo modo, o "recuo" ou o "mal-entendido" veio em tempo e, com a aprovação do PL, muito em breve teremos a revelação de arquivos da Ditadura Brasileira, o que acerta em cheio grandes políticos, oligarcas da mídia, gente da esquerda. 

Agora, a nova novidade fica por conta da Câmara dos Deputados, que aprovou nesta semana o Regime de Contratações Diferenciado (RDC), mecanismo licitatório excepcional, criado especificamente para as obras das Olimpíadas do Rio e da Copa de 2014. Em tese, esse novo regime serviria para facilitar o processo de contratação, pelo Estado, das empresas que vão construir as instalações esportivas - e obras infraestruturais conexas - para tais eventos, o que parece necessário pelos prazos e a grandiosidade da demanda, mas, por outro lado, ele abre uma brecha importante quanto à transparência do procedimento licitatório, algo temerário, ainda mais depois do histórico pregresso dos Jogos Panamericanos do Rio de 2007, evento no qual a distância entre o custo previsto e o custo final das obras foi astronômico.  Pelo texto inicial do RDC, basicamente a previsão de gastos do governo não seria revelada, devendo os lances do processo licitatório serem feitos sem a informação de quanto o governo estaria disposto a gastar -  daí, os valores das obras se tornariam públicos apenas com a decisão do certame. Sim, de fato, pode-se argumentar que o RDC poderia gerar um impacto deflacionário, mas só e somente só no caso do custo que o governo estipulasse previamente fosse muito alto - e, assim inflacionasse a disputa -, pois se o governo chutasse as previsões de gasto para baixo - ou as colocasse no seu devido lugar -, fatalmente seria produzido um impacto deflacionário até mais relevante, sem precisar recorrer a esse expediente e correr os riscos graves que correremos. Em suma, o que o governo admite? Que aquilo que ele estaria disposto a gastar é maior do que os preços de mercado das obras porque ele, talvez, não teria controle sobre o processo de estipulação dos custos? E como saberemos se o sigilo desaqueceu a disputa se nem sabíamos qual é o real das valor das obras nem quanto o governo iria gastar? 

Tratam-se de questões seríssimas que tornam-se prementes, não apenas no âmbito jurídico-político como também no sentido econômico mais elementar. O governo parece estar encantado com a ideia do sigilo, mas a história prova que isso, ao contrário, tem custos altíssimos. Cá, continuamos a seguir céticos em relação a tais grandes eventos esportivos e cada vez mais fervorosos no que toca à defesa da memória histórica, passada e presente.



quarta-feira, 15 de junho de 2011

Breve Comentário em relação à Decisão do STF sobre a Marcha da Maconha

Agora há pouco, o STF entendeu, por unanimidade, que marchas da maconha não constituem apologia ao crime. Até aí, nenhuma novidade, qualquer aluno razoável do primeiro ano do curso de Direito conseguiria chegar a essa brilhante conclusão, não se confunde apologia ao crime com defesa de mudança na lei - e, pior ainda, a própria tese de apologia ao crime é perfeitamente desconstrutível. De repente, a imprensa direitista caiu de pau em cima do Supremo e a esquerda comemora efusivamente a "nova vitória" conquistada na Suprema Corte. Trata-se só de um retrato da decadência do debate público brasileiro, pois o buraco, meus caros, é muito mais embaixo: o ponto-chave não está na decisão do STF, mas no fato de que nosso sistema político está se afunilando de tal maneira que é possível acontecer um julgamento como esses, onde foi dado a oito iluminados (Toffoli, Gilmar e Barbosa não votaram) o poder para julgar se a liberdade de expressão e o direito de reunião pacífica valem mesmo. É claro que isso só tomou força e chegou vitoriosamente ao Supremo por conta da força dos movimentos libertários nas ruas, mas é  muito preocupante esse fortalecimento da tutela que os tribunais exercem sobre as nossas vidas.  Se o STF decidiu dessa forma é porque poderia decidir o inverso: e se aquele órgão dissesse que, na verdade, a marcha da maconha não pode ser realizada mesmo - como fizeram os tribunais pelo Brasil, sobretudo o TJ-SP -, acaso deixaríamos de nos manifestar perpetuamente quando entendemos que certas normas jurídicas devem mudar? Esse salvacionismo em vestes liberais do Judiciário pode afirmar direitos individuais, mas o faz deixando bem claro quem tem o poder para decidir sobre a exceção. O horizonte tem nuvens negras. 


Lei de Anistia, Sigilo Eterno e Memória Histórica

Historia - Gyzis

O recente debate que opôs o Governo Dilma - com sua nova equipe de articulação política - aos senadores petistas, a respeito do projeto de Lei que defende o sigilo eterno dos arquivos da Ditadura não pode passar desapercebido. É profundamente preocupante que o Palácio do Planalto tome uma posição pró-sigilo eterno e a louvável negativa dos senadores petistas ao projeto, por sua vez, apenas reforça que o clima de animosidade entre governo e partido hegemônico permanece em pauta, sobretudo pela falta de habilidade na articulação política e truculências gerenciais de um governo que apesar de extremamente competente na área macroeconômica, esbarra solenemente em pautas como essa. Recapitulemos então a história recente da relação da democracia brasileira e o fantasma de sua ditadura, que insiste em nos rondar:

A Lei de Anistia de 1979 foi um dos marcos do processo de distensão e abertura, se dando quando a tecnocracia militar que se apossou do Estado brasileiro com o Golpe de 64 - sob os auspícios da burguesia local e dos interesses das potências capitalistas - preparava uma retirada segura à luz da crise do regime: era um movimento que visava o desmonte do autoritarismo  fardado para, quem sabe, nos conduzir a uma democracia alegórica como a que viviam México e Venezuela no mesmo período. A pressão da sociedade civil em processo de organização - com os adventos do renascimento do sindicalismo no ABC paulista e das comunidades eclesiais de base - ia em sentido contrário, visando conquistas mais relevantes: clamava-se com força por uma anistia ampla, geral e irrestrita para os perseguidos políticos, uma nova constituinte que concebesse não apenas a redemocratização do país por meio de eleições diretas como a construção de um Estado social.

Como sabemos - ou como se pode depreender de uma rápida leitura do texto da referida lei -, a Anistia conquistada não foi ampla, geral ou irrestrita, muito pelo contrário: o Estado não perdoou aqueles que levantaram armas contra o regime, mas apenas os condenados por "crimes políticos" - ou seja, os políticos incômodos afastados dos cargos que ocupavam pelos atos institucionais e congêneres:
Art. 1º É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares (vetado).       
 § 1º - Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política.       
 § 2º - Excetuam-se dos benefícios da anistia os que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, seqüestro e atentado pessoal. [grifo nosso]       
 § 3º - Terá direito à reversão ao Serviço Público a esposa do militar demitido por Ato Institucional, que foi obrigada a pedir exoneração do respectivo cargo, para poder habilitar-se ao montepio militar, obedecidas as exigências do art. 3º.


Mais do que isso, o Estado brasileiro não perdoou jamais os seus agentes que mataram e torturaram, pois ele jamais reconheceu que houve políticas de eliminação física de adversários e tortura como politica de Estado nas suas prisões. As decisões judiciais que aplicaram a Lei de Anistia para proteger torturadores não poderiam ter perdoado quem a Lei não beneficiou e, nem por analogia, essas decisões poderiam ter sido tomadas, pois os guerrilheiros não foram perdoados - isso, supondo que pudéssemos aceitar uma simetria entre algozes e vítimas. Essas decisões, aliás, foram tomadas pelos tribunais da democracia brasileira, o que só prova o ponto que temos batido nos últimos dias: "exceção" e "regra" não se opõem, elas bailam juntas.

No recente e fatídico julgamento no qual o Supremo Tribunal Federal (STF) - sempre ele - entendeu ser válido esse, digamos, cordial entendimento da Lei de Anistia, tivemos um caso absurdo de auto-perdão, o que consiste na própria implosão do edifício contratualista sob o qual o nosso Estado se assenta: Se o Estado Constitucional é aquele baseado em um acordo amplo, no qual a sociedade acorda de forma multilateral os termos nos quais se dará o exercício da soberania e do governo, o auto-perdão promovido pelo STF expõe tanto o calcanhar-de-aquiles do Estado de Direito como, ao mesmo tempo, nos remete ao absolutismo. Isso nos valeu, inclusive, uma condenação na Corte Interamericana de Direitos Humanos. 

Esse permanente calcanhar-de-aquiles do Estado de Direito, no entanto, não significa que um governo constitucional e democrático possa ser nivelado a uma tosca tirania - como o marxismo vulgar nos faz crer -, mas sim apenas aponta para sua insuficiência como meio para resolução de contradições reais, mas ele, evidentemente, não deixa de diferir para melhor (em muito) do Estado absolutista ou das formas contemporâneas de totalitarismo, as quais tem por premissa central do sistema a possibilidade de um homem decidir, de acordo com sua vontade, por meio de atos unilaterais e irresponsáveis. A decisão em tela, portanto, teve um custo altíssimo, pois ela validou em nosso atual sistema constitucional uma interpretação que protege a tirania em sua forma mais óbvia.

Novo corte. A luta pela punição dos torturadores ainda vivos - em relação à qual nos mantemos céticos quanto à efetividade de seus aspectos penais, embora discordemos totalmente da seletividade com a qual seus críticos à direita empregam aqui o argumento anti-punitivista e, sobretudo, com a doutrina de exceção que valida esse (auto)-perdão  -, uma outra luta, talvez mais importante, se desenrola: aquela que diz respeito à abertura dos arquivos do regime, cuja obscuridade não é outra coisa senão o maior crime da democracia brasileira: a saber, sua cumplicidade com aqueles que entendem não apenas ser correto apagar a memória histórica daquele período como, ainda por cima, enxergam a destruição da memória histórica como horizonte politicamente aceitável e possível. 

A proposta de um sigilo eterno é absolutamente preocupante. Muito mais efetivo do que nos preocuparmos em condenar qualquer velho torturador com uma sanção penal, tendo em vista os crimes contra a humanidade que ele cometeu, é trazer à luz o que aconteceu: e o fato da verdade absoluta ter sido destruída pela filosofia crítica contemporânea, não depõe contra a existência da Verdade, mas apenas a coloca no plano da relatividade; a verdade histórica, portanto, é a expressão pública da vida da nossa coletividade, relativa às narrativas documentadas da existência dela - ou de um dado período seu. Portanto, é inadmissível o corte, a narrativa negativa das omissões, isso é vida que se captura, o que conta esse silêncio ensurdecedor é o hino dos opressores que poderão, assim, passarem mais tempo se utilizando da cândida máscara do bom-mocismo. É preciso, pois, tirar tais arquivos do quarto fechado para purgar de vez a ferida aberta desse período histórico. 

Essa medida contradiz posturas anteriores do governo, como a defendida pela própria Dilma - favorável ao projeto que limita para 50 anos o tempo de sigilo de documentos ultra-secretos quando na Casa Civil - e o próprio atual Ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, que defendeu publicamente na 48ª caravana da Anistia a realização da comissão da verdade - de acordo com um clamor de mais trinta anos que justifica ainda precisar existirem caravanas da anistia. Aliás, essa nova posição do governo já enfrenta uma justa oposição do próprio Procurador-Geral da República, Roberto Gurgel: ontem, durante lançamento de projeto de digitalização e disponibilização pública dos arquivos da Ditadura em São Paulo - que já conta com a chegada de inúmeros arquivos sobre a nossa ditadura, vindos dos Estados Unidos, maior apoiador do golpe -, ele que declarou que tomará providências contra isso - o que é razoável, afinal, a eternidade do sigilo viola claramente o princípio constitucional da publicidade, basilar em nosso sistema. Entendemos, no entanto, que o próprio Projeto de Lei que tramita hoje no Senado é problemático, pois o prazo máximo de 50 anos para a liberação dos arquivos já é demasiadamente longo e pouco razoável.

Portanto, nem anistia, nem anestesia: nada mudará o fato que durante vinte anos do séculos vivemos sob um indisfarçada tirania, agora o assunto é outro, precisamos combater o fascismo que há entre nós, aqui e agora.