Largo da Batata -- São Paulo |
Hoje, centenas de milhares de pessoas saíram às ruas em São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, alguns jovens invadiram o Congresso Nacional em Brasília, depois de dias de manifestações contra o reajuste das tarifas nas capitais brasileiras, além do levante durante a Copa das Confederações. Grande parte dessas movimentações foram reprimidas duramente pelas polícias. O estopim parece ter sido a enorme violência que a polícia militar paulista usou contra manifestantes há poucos dias numa das manifestações contra o reajuste nas passagens -- depois de ter abusado em manifestações anteriores.
Violência policial em alta escala não é novidade no Brasil, um país cuja democracia carrega até hoje o fardo de ter uma polícia militar com competência de atuação sobre a população civil, uma herança histórica de sua ditadura militar. Contra o que protestam os brasileiros? Contra e a favor de muita coisa. Coisas diferentes e até conflitantes entre si. Por exemplo, José Dirceu e Arnaldo Jabor estão, neste exato instante, apoiando as manifestações -- embora certamente por motivos muito diferentes e o segundo só depois de um mea culpa.
Além disso, há uma miríade de pautas e insatisfações diferentes que vieram à tona muito rapidamente e há, também, um efeito caleidoscópio geral -- seja porque se veja o que quer ou se quer fazer com que se veja o que desejamos nisso tudo. No entanto, existe um sentimento sincero, sublime e difuso que perpassa as pessoas. Há um incômodo, um verdadeiro nó na garganta, com o modo como as coisas são postas, ou como não são, neste exato momento. A era da inércia, da paralisação da redução da política encontrou seu limite.
O problema aqui é o déficit afetivo no funcionamento da democracia brasileira atual, a insatisfação em relação à era dos políticos-executivos que vieram na esteira dos -- merecidamente ou não considerados -- campeões da "redemocratização" -- que jamais se concretizou e passou a funcionar à base de composições cada vez mais confusas, contraditórias e insuficientes. Uma série de gambiarras cujas faíscas são apagadas às custas dos extintores policiais, que apagam fogo com querosene.
Há uma crise política e uma crise que não foi feita da catástrofe -- e aumento das passagens ou não investimento em áreas estratégicas é lateral -- mas do fortalecimento da multidão -- que come, que veste, que toma remédios -- acompanhada de um vazio simbólico cada vez maior. As coisas passaram a não fazer sentido e a incompreensão foi recompensada à base de cacetetes.
Trata-se de um fenômeno parecido com o Maio de 68 europeu, não só por sua natureza de alastramento global, no qual os ganhos objetivos do bem-estar social, decorrentes de governos social-democratas e democratas-cristãos, vieram desacompanhados de um vazio espiritual que se tornou insuportável: no Brasil de 2013, vive-se melhor do que em 1993 ou em 2003, mas a dimensão subjetiva é reduzida ao dado estatístico -- assim como os fluxos não codificados precisam desesperadamente serem reduzidos a um regime qualquer, sistemicamente válido. Ainda assim, não havia meios tecnológicos em 68 suficientes para possibilitar uma efetiva disposição em rede do movimento.
Desse modo, a disposição em rede, o rápido alastramento das chamas, a intensidade fugaz e, ao mesmo tempo, potente são características semelhantes tanto cá quanto na Primavera Árabe, nas revoltas estudantis chilenas ou nos occupy americanos e europeus -- em todos os casos, Maios de 68 2.0, cujas consequências culturais-políticas permanecem por muito tempo sem que impliquem na resolução de impasses: são movimentos sobreproblematizantes, que expõem tensões, trazem à tona o submerso, operam uma catarse social ímpar e atentam para o abismo monstruoso entre o velho e o novo, sem necessariamente resolverem seus impasses.
O tamanho da movimentação hoje aqui em São Paulo foi espetacular. Ainda mais por se tratar de uma cidade que mais até do que outras capitais, o espaço comum está erodido entre os carros e a especulação imobiliária. Sem dúvida alguma, a enorme tolerância e leniência da população paulistana esgotou-se quando as liberdades burguesas foram abaixo via ação policial. A polícia do Carandiru, do Pinheirinho e da Cracolândia não poderia ter mostrado a cara de verdade.
Em termos práticos, todo o jogo político-partidário de 2014 será rearranjado, o que não quer dizer que os partidos simplesmente deixarão a obsolescência, se renovarão ou serão substituídos por formas melhores. Mais o repeteco monótono de 2010 dificilmente acontecerá. O que não quer dizer que o alívio, ou o desabafo, de hoje será a salvação de amanhã. Hoje, o que fazer, no hoje de amanhã, como.