Dizemos que o presente levante é
singular, pois suas feições decorrem da composição
técnica do trabalho metropolitano própria ao
capitalismo cognitivo, de uma abundância material – tanto
social quanto econômica -- própria dos anos Lula e de
ferramentas de luta próprias ao nosso tempo como sublinha
Giuseppe Cocco.
Mas existe uma coincidência que une este momento a outros
episódios históricos, seja por sua posição
histórica enquanto efeito das tensões da luta social –
que não apareceu agora – ou pela maneira como ela expressa
uma distonia semelhante a que se via nas ruas parisienses de Maio de
68: miséria afetivo-política versus
abundância efetivo-econômica.
A miséria afetivo-política
à qual faço aqui referência é o fechamento
dos espaços de resistência comuns aos movimentos sociais
no campo político, cuja estrutura principal era, desde as
lutas constituintes que derrubaram a ditadura militar brasileira, o
Partido dos Trabalhadores. Uma vez na chefia do governo do Estado,
ainda que de forma frágil e ameaçada, com o presidente
Lula, uma série de medidas que deflagraram a abundância
atual foram tomadas: o discurso moderno da esperança
entrelaçava-se, de forma ambivalente, a uma alegria
renascentista de fazer política.
A
ascensão de Dilma à presidência foi menos com uma
mudança pessoal na cabeça do Estado, mas a resolução
deste dilema, com a arimética tomando o lugar do ritmo, o
futuro glorioso ditando o presente, a despeito do aqui-agora. A
“modernidade” como paradigma de governo no Brasil dos anos 2010
parte de Dilma, não por ela ter inventado o mito
gerencialista, mas por ela, no comando prático de quem
afirmava a subjetividade, ter praticamente renunciado à
política. O ingovernável é menos a perda da
super-maioria parlamentar, mas o temor de se deparar com o
indecodificável no plano da política.
Nada
disso, evidentemente, é novidade como sublinhei em pelos duas
outras ocasiões nesta mesma Casa de Rui de Barbosa, nos dois
últimos anos. Mas se naquelas ocasiões, os fluxos já
estavam represados nos canais pelos quais eles correram por tanto
tempo, agora eis que a barragem arrebentou e a vazão da água
é violentíssima.
Retomando
o que está posto acima, não é uma experiência
alheia às revoltas e levantes europeus dos anos 60 e 70,
quando a social-democracia, ao fornecer a base material para tanto
por suas políticas de bem-estar social, foi incapaz de
reinventar-se para constituir o comum das lutas. Em meio às
atribulações causadas pelo repasse dos “custos” do
bem-estar social para os preços, operado pelo capital, e a
força reivindicatória, no entanto, burocrática,
vertical e lenta de partidos de esquerda e sindicados, sobreveio uma
ruptura letárgica, suprida pela flexibilidade neoliberal.
Thatcher fez a cirurgia que nazistas e fascistas sonharam, pois sabia
usar anestesia.
Mas
o Brasil atual encontra-se em meio ao paradoxo histórico de
estar no pós-neoliberalismo enquanto o abismo desta ruptura
letárgica se avizinha. E não há mais uma
centralidade decadente do trabalho fordista, mas, de fato, uma nova
composição do trabalho, na qual a remuneração
salarial, o emprego e o proletariado industrial já não
tem mais lugar. O modernismo de Dilma, a esperança no
progresso civilizatório tecnicamente alcançável,
aplicado verticalmente como bálsamo contra a pós-modernidade
horizontal e hegemônica, na qual a vontade de segurança
face ao desespero generalizado é total(izante), culminou em
uma resultante ontologicamente incalculável e imensa.
A
ascensão
selvagem
da classe sem nome,
que propus ano passado, como paradigma efetivo dos anos Lula,
mantém-se em curso: e isto vai desde uma suspensão da
Lei Maior oculta que ordena o Brasil até a derrogação
iconoclasta de estatutos e convenções. Uma delas, a da
lei do número e da quantificação, com focos de
explosão aqui e ali, sempre que se tenta a tradução
dos modos infinitos em dados. Como disse naquela
ocasião:
“A classe sem nome, portanto, é um monstro como aqueles que se perfilam no claro-escuro do entretempo entre o velho mundo que morre e o novo que tarda a nascer -- para citar aqui Gramsci lembrado por Bruno Cava. Enquanto monstro, essa classe é ambivalente, mas tal ambivalência se desfaz no fato de que, no fundo, ela, como qualquer monstro, apenas deseja ser amada, embora suas feições assustadoras não ajudem muito na empreitada: e o que vemos, hoje, no Brasil senão uma perseguição fantástica com tochas e arados contra essa classe sem nome, esse monstro feito dos retalhos possíveis -- e como o PT, ele mesmo, se comporta como um Dr. Frankenstein extemporâneo (mas igualmente neurotizado), em desespero por ter autorizado essa criatura a desejar, quando poderia ter lhe dado uma vida meramente vegetativa, se era o caso de fazê-la viva”
Sobreposta
à devoração da civilidade desde dentro, de modo
selvagem, ocorre o atual evento, bárbaro na metáfora
–
descrito como um processo de vandalismo – e na metonímia.
E na barbárie, despotismo e liberação, bailam
desde sempre, esquizofrenicamente.
A barbarização da classe média frente a
civilização é, em outras palavras, a exposição
de sua insustentável condição de existência,
espremida entre os seus sonhos de segurança e glória
social e a incapacidade obter os meios para tanto.
É
a partir daí que podemos traçar uma linha que nos
permita entender/operar em meio às energias conjurantes. Não
há medo ou esperança que possam designar,
satisfatoriamente, o monstro que caminha agora nas ruas, tampouco há
segurança possível ou desespero irremediável
face ao seu rosto disforme. O monstro está, o que ele será,
trata-se de mera conjectura. Seu signo é a própria
flutuação
de ânimo,
o seu terreno é menos o do amor e do ódio e mais o do
ciúme e da carência afetiva.
O
movimento monstruoso não tem fim certo ou previsto. Não
tem itinerário. Ele não é governista ou
governável, mas tampouco é anti-governo, ele é
desgovernado. Sua constituição não está
dada, ela é uma metamorfose ambulante. O que resultará
dele é o que fizermos de si, numa prudência
terapêutica de
nós mesmos: novos agenciamentos, constituições e
determinações positivas de afetos.
Nesse sentido, o fantasma do fascismo, a perversão do desejo
gregário, não está longe, nem poderia estar
longe. A violência e o modo de vazão da correnteza não
permitiria nada substancialmente diferente. Mas a naturalidade da
constatação não pode nos fazer alheios, embora
nenhuma paranoia possa ser tolerada: talvez seja hora do devir-animal
de Deleuze, lembrando que o animal é aquele que está
sempre à espreita.
Do outro lado, é inegável a abertura, mesmo a
fórceps, da democracia, o que se vê na proposta de Dilma
de realizar a reforma política depois de um plebiscito.
Isto faz com que o discurso da mídia de captura dos
manifestantes seja reduzido a pó, uma vez que resta exposto
seu desejo seletivo de presença popular (nas ruas contra o
governo sim, votando, não!), e, também, expõe o
horror à multidão dos velhos oligarcas do parlamento
(sejam os “modernos” ou os “retrógrados”) – como se
fossem senadores romanos de um tempo muito antigo, que sequer aceitam
a voz dos plebeus reunidos em assembleia.
O momento requer ação criativa, requer intensidade,
sem perder de vista os limites do corpo tensionado: sem tensão,
vem atrofia, com tensão demasiada, ele estoura. As balas de
chumbo na Maré comparadas às balas de borracha da
Avenida Paulista nos levam, de um modo pungente, a perceber qual a
cota do latifúndio que caberá a cada um. Aconteça
o que acontecer, o discurso administrativo-economicista foi a pique,
seja lá de qual identidade ideológica for, e a luta é
constituir causas políticas suficientes para suplantar a
polícia militar, ideológica, judicial, burocrática
ou, sobretudo, o tira(no) que há nas nossas cabeças.