segunda-feira, 28 de julho de 2014

Diário da Terra do Nunca: a Palestina é Aqui

Gaza sob ataque de Israel
No ano do centenário da Primeira Grande Guerra estamos, ironicamente, às voltas com um quadro agitadíssimo: cenários de guerra tomam conta da Ucrânia, Síria, Iraque e, sobretudo, a Palestina -- e o massacre de Gaza toma conta do noticiário --, as potências do mundo emergente se unem nos BRICS -- numa alternativa ao mundo americanocêntrico --, o Brasil segue agitado em sua política, depois das Jornadas de Junho, uma série de prisões políticas é empreendida -- inclusive com a pirotécnica operação que prendeu dezenas de militantes no Rio de Janeiro, os quais foram recém-libertos, muito embora continuam a responder a processo criminal.

Nada disso está desvinculado, no entanto. O Brasil potência emergente, aquele que se alinha aos demais países pobres para fazer frente ao "mundo unipolar", é o mesmo Brasil potência que partiu para a repressão política organizada -- numa operação que passa pela integração dos vários tipos de polícia de vários estados, judiciário e mídia. O Brasil de fora não contradiz o Brasil de dentro, ao contrário, eles se explicam em um sentido extra-moral: articulam o capital e o trabalho a partir de uma burocracia de Estado nação, o que, entretanto, implica em ações específicas no plano interno e no plano externo -- que podem ter, dependendo de como se veja, efeitos diversos, mas não causas dissociadas.

Esses movimentos da diplomacia brasileira, em sintonia com a vanguarda emergente, geram, em certa medida, algum grau de liberdade na política internacional, quando se opõem ao eixo americano, mas isso é colateralidade: não estamos falando de um internacionalismo, mas de uma outra arquitetura para um mesmo arranjo global. O mesmo mundo, mas articulado de um outro jeito. O que, de certa maneira, não é qualquer ameaça ao capitalismo global, muito pelo contrário: ao criar uma alternativa que não aquela de um Império Global assentado na estrutura centralizada, e decadente, dos EUA -- isto é, o santíssima trindade Hollywood-Bombas Atômicas-Dólar --, o capitalismo ganha sobrevida.

Sim, porque a pior ameaça ao capitalismo global é, ironicamente, os EUA, que de guardião militar, cultural e monetário do mundo unificado, se tornou uma superpotência desequilibrada, instável, dada a aventuras. Sua substituição não é fácil, mas é necessária. E não tem a ver com "imperialismo", "colonialismo" ou "alter-mundialismo", não há coincidência entre as demandas do capital global e da multidão insurgente, mas sim que esta pressiona de tal forma a gestão atual do Império que aquele precisa se rearticular -- e não só existe essa pressão, mas que os próprios mecanismos atuais são insuficientes.

Boa parte da crise econômica atual se deve às crises americanas internas que, no entanto, foram exportadas para o globo: o rombo das contas públicas, por uma guerra patética como a do Iraque, foram pagas pelos excedentes do mundo emergente, os ajustes nas contas públicas -- que passavam sim pelo enxutamento de suas forças armadas -- foram protelados pela emissão desenfreada -- e artificial desvalorização -- do Dólar, as suas instituições públicas e privadas de regulação financeira fracassaram clamorosamente, as guerras se voltaram mais para a satisfação de um esquema protecionista industrial -- no caso, do complexo bélico-armamentista -- do que na contenção das classes perigosas.

A aliança entre os Estados "emergentes", Brasil à frente, cada dia mais suscita uma possibilidade mais segura para o capital. Inclusive porque a Europa, com o Euro, não conseguiu se tornar a alternativa a Washington. Mas esses Estados, todos, sustentam e gerenciam, cada qual ao seu modo, o capitalismo local. É certo que, no caso de sucesso dos Brics, haja um intercâmbio cada vez maior entre os parceiros em termos de tecnologias de poder, além de políticas macroeconômicas. E tudo isso serve, a priori, para a sustentação dos capitais nacionais ou egressos do "primeiro mundo" que hoje estão radicados em seus territórios.

Aí, aportamos novamente no Brasil. No mesmo ciclo em que ele protagonizou, na esfera internacional, alguns dos episódios mais relevantes em direção à nova ordem mundial -- ao sediar a reunião chave dos Brics e reagir diplomaticamente à ofensiva israelense em Gaza --, por outro lado, existe uma política de Estado voltada ao endurecimento com manifestantes; a democracia substituída pela razão econômica e, também, pelas razões geopolíticas. Realizar a Copa a qualquer custo é tarefa de honra. Organizar os Estados emergentes, idem. 

A tese da bondade externa do Brasil, quando vista apenas em confronto com a opacidade de Washington, prevalece, mas ela resta relativizada quando ponderada à luz de si mesma: o mesmo Brasil que critica a ação em Gaza é aquele que intercambia intensamente com Israel, inclusive no plano militar, seja na venda de armamentos leves para lá quanto na incorporação de armas e logística israelense na opressão de nossas favelas. Em outras ocasiões, como a ocupação brasileira no Haiti, temos uma outra página pouco questionada da história brasileira -- que serve também para a opressão internacional e, também, para o treinamento para a repressão social no plano interno. A política externa terceiro-mundista e alternativa importa, também, na exportação de empreiteiras brasileiras para obras questionáveis pelo mundo em desenvolvimento, sobretudo na América Latina.

A análise que Bettelheim fazia acerca da União Soviética pós-Stalin é válida, também, para o Brasil, atual: existe um mecanismo duplo de colaboração e contradição com a ordem mundial; e não há qualquer disfunção nisso, o movimento duplo é como o de qualquer sócio que disputa uma corporação com demais sócios ou, na política, de um partidário que disputa um partido com correligionários rivais. No fim, a ordem mundial ou a corporação e o partido dos exemplos restam intactos. A rivalidade e a disputa por hegemonia é, no entanto, retrabalhada ideologicamente para, gradualmente, servir à legitimação da repressão interna -- o que potencializa a gestão do trabalho pelo capital (nem que seja estatal ou sob o comando de um Partido "Comunista").

O Império global concebido por Negri e Hardt está na ordem do dia, embora precise ser repensado diante da complexidade das relações internacionais atuais: a unidade econômica foi feita, mas não tem, ainda, anteparos políticos para dar conta das contradições entre o capital global e cognitivo e a multidão produtiva e produtora. A crise americana gerou um desarranjo que expôs as vísceras da máquina, mas ela está longe de ser derrotada. Há apenas um abalo no céu. O que se passa no Brasil de hoje não está longe ou alheio a nada disso. Mais do que os velhos trotskystas, que insistiam na internacionalidade da luta, seria o caso de relembramos Rosa Luxemburgo, clamando contra os trabalhadores que se esfacelavam nas trincheiras da (centenária) Primeira Guerra. 

O antagonismo central em 2014 não é, como na Copa, uma disputa entre estados-nação, mas sim o capital contra a multidão em escala global, o que perpassa os Estados. O Estado brasileiro só interessa quando posto em função da luta global por democracia, o que importa num movimento externo e um outro interno de democratização, sem ressalvas. Nenhuma violência pode ser tolerada, ou criticada seletivamente, sob os auspícios de uma revolução socialista silenciosa vinda de alguma burocracia celeste, se é que alguém realmente acredita nisso. É tudo muito simples: Gaza e o Complexo da Maré são metrópoles do mesmo país.

P.S.: Nada disso apaga a complexidade das relações políticas internas e externas do Brasil. Nem seus defensores à esquerda negam os fatores heterogêneos que compõem a organização do Brasil Novo. Só vemos com preocupação a reviravolta dos últimos anos, que potencializaram tendências, em parte, mitigadas nos oito primeiros anos do ciclo petista. É preciso reinverter certos sentidos.  

P.S. 2: Um mundo pós-americano é interessante e necessário. Talvez, uma nova ordem mais pulverizada fosse, a priori, melhor. O que não quer dizer que seja uma saída. Uma confederação global de fundo estatal não responde à altura as demandas libertárias. 

PS. 3: Se opôs aos Estados Unidos pode sim ser uma brecha democratizante interessante, mas é preciso fazê-lo sem pretensões de tomar seu lugar -- ou construir algo que pense em fazer isso.



segunda-feira, 21 de julho de 2014

Pós-Copa: Somos um Estado de Exceção?

Pássaro da Liberdade -- Clarisse Lispector
Ou liberdade para Eles e nós todos.

A prisão política de Fábio Hideki Harano e Rafael Lusvargh em São Paulo, depois de uma manifestação, e a prisão de dezenas de ativistas no Rio de Janeiro, fruto de uma investigação que vem desde Junho de 2013, em uma ampla blitz midiática-judicial-policial levam à pergunta. Mas é uma pergunta que nasce de uma ideia ingênua, praticamente uma superstição. É como se Estado "de Exceção" e Estado "de Direito" fossem antagonistas em uma esquema maniqueísta: bem e mal, mocinho e bandido, Superman e Lex Luthor. Não adianta perguntar se o que está aí é o tira bom ou o tira mau, na verdade, o Estado é sempre um dualismo formado pelo tira bom e o tira mau -- juntos.

Uma digressão necessária: no mundo antigo e depois no medievo, a Casa era o centro da vida e da produção. Nela, havia o senhor -- o despotês ou dominus -- que imperava em sua glória eterna enquanto o villicus -- o vilão -- comandava os servos e distribuía as penas nos termos das leis da casa, a economia. Na economia brasileira colonial, o senhor e o capataz eram a dualidade central da fazenda, que se fazia em Casa Grande e Senzala. O Estado, enquanto modelo econômico de administração da política, sempre teve seus dualismos: o diplomata e o espião, o presidente e o general, o servidor público e o policial. Nunca quem faz o bem deve fazer mal. Um apaixona e o outro pune.

Os Estados, portanto, mantém uma postura de respeito à vida e à integridade apenas quando forçados a tanto. E não por uma pressão mítica-fundante, um carta de intenções como a Constituição, mas sim pela pressão perene dos cidadãos -- e a própria capacidade dos aparelhos de Estado reagirem à pressão da multidão por meio da construção de discursos ou intervenções práticas. O que pode conter esse "Estado" já mais foi interno, por qualquer sistema de "direitos e garantias" judicializado. Do mesmo modo que o Estado é fato puro, transcendente ao direito, seja aquele comum ou achado na rua, ou ao seu próprio discurso jurídico monopolizador.

Desse ponto de vista, o fato é que há, desde 1822 um Estado brasileiro que se reconfigurou ao longo do tempo. Às vezes para melhor, às vezes para pior. Nos seus melhores momentos, também suspendeu direitos. A repressão social foi praticamente uma constante, mas a repressão política permanente, nem sempre. E o momento de repressão política é quando o Estado, perturbado por uma atividade política qualquer, criminaliza o que não é, ontologicamente, crime: uma manifestação política no momento em que ela se torna ato de subversão, isto é, quando ela reúne forças para transformar o que quer que seja sem depender da homologação do aparato. A partir daí, ações de desobediência civil se tornam crimes, atos pacíficos acabam criminalizados por provas plantadas -- e há fortes indícios de que isso aconteceu no caso Hideki -- e qualquer violência acidental ou não passa a ser punida com rigor excessivo.

A democracia foi imposta pelo decreto da multidão que inviabilizou a ditadura militar. Mas ela não resolveu o formidável problema da repressão social, as sementes do mal deixadas pelo corpo repressivo da ditadura militar: seu oligopólio de mídia, seu judiciário, suas polícias...A partir daí, a repressão política, mantida em fogo brando nos últimos voltou a plenos pulmões: a Copa do Mundo e sua demanda por segurança serviram de pretexto para a reunificação operacional das polícias. Depois, esse aparato puniu seus alvos. O clima não tende a melhorar. 

O cenário global de rachas entre blocos na disputa por posições, ironicamente há cem anos da Primeira Grande Guerra, tem degenerado sistemas protetivos de direitos e garantias até então respeitados. Mas a degeneração é uma possibilidade real do sistema.Os Estados Unidos da América passaram a aplicar para seus próprios cidadãos o mesmo que ajudaram, não raro, a patrocinar fora do país: invasão de privacidade, prisões sem devido processo legal, tortura. Do outro lado, a Rússia, apesar da breve inflexão tentada na perestroika, se viu sem gradativamente sem direitos individuais ou sociais. Países como a China apenas repetem a realpolitik que lhe fez, nos anos 1970, apoiar Pinochet e guerrear contra o Vietnã. Quem não era democrático não se democratizou, quem era em parte, enfim, se desdemocratizou como um todo.

A nova rodada de repressão no Brasil, que repete a tragédia como farsa, se deve a um consenso amplo entre a velha direita e endireitados, mas também à incapacidade analítica da esquerda que ainda resiste por aí: não, o sistema não tem escrúpulos. A democracia sempre estará posta contra o Estado. Se há Estado, ele convive com a democracia enquanto lhe for conveniente, seja por bem ou por mal. Quem crê em democracia de Estado (ou no Estado), crê em qualquer coisa. Mas isso que se passa se deve ao fato de que algo foi abalado: Nenhuma ação fica sem resposta, fazer política fora do Estado leva a recaptura por da máquina. É nesses termos que a resistência precisa ser constituída. Mais do que tempos de exceção, vivemos tempos excepcionais.

P.S.: Escrevi minha monografia de conclusão sobre o tema. Há um ano e meio e já antevia algumas tendências. Quem quiser dar uma olhada é só clicar neste link.

terça-feira, 24 de junho de 2014

Com a Copa em Campo: Futebol ou Política?

Jogo de Futebol -- Pennacchi
A Copa do Mundo de 2014 segue em disputa. E a disputa é dentro e fora do campo. O Brasil surge -- e se insurge -- em meio a uma polifonia na qual podemos ouvir o barulho de bombas explodindo, gritos de gols, xenofobia, hospitalidade, ódio, amor, tons graves, tons agudos. Tudo muito rápido, tudo muito difícil de distinguir. Tudo monstruoso. Uma questão ética que se impõe, sobretudo no momento político em que vivemos, é pensar em como se portar diante de tudo isso. Torcer ou protestar? Ou a velha questão de politizar o futebol sem deixar "futebolizar" a política. Sem dúvida alguma, não são questões fáceis.

Sim, futebol e política são coisas diferentes. Não é possível politizar o futebol sem incorrer na caricatura mais perversa -- exatamente do mesmo modo que politizar a arte, mesmo à esquerda, cria algo que nem é política, nem arte, vide o realismo socialista. Isso se deve a uma razão elementar: o futebol existe de maneira autônoma enquanto expressão humana. Os esportes possuem um estatuto ontológico próprio, os esportes coletivos mais ainda -- e quase são uma outra categoria de coisas. O é que não só é possível, como também desejável, é, mesmo modo que ocorre entre a orquídea e a abelha no célebre exemplo de Deleuze, um agenciamento entre ambos: dois corpos, uma máquina única por uma implicação de mão-dupla. 

Isso é diferente de politizar o futebol, isto é, torna-lo meramente objeto de uma política, projeção de uma sociedade no contexto de sua História. É reconhecer que existe uma dimensão própria no esporte bretão. Outra coisa é a tese da futebolização da política, com um sentido evidentemente pejorativo, sobretudo no que se refere à política brasileira atual, vez ou outra levantada: estaríamos às voltas de um "Fla x Flu", no sentido em que os partidários deste ou daquele segmento se comportam como "torcidas".

Bem, o futebol não é aclamação e catarse, seu estatuto ontológico remete a uma guerra às avessas. E essa constatação nada tem a ver com o fato do futebol "já ter parado guerras", mas sim que sua organização é, ela própria, avessa à guerra na medida em que copia seu fundamento e o subverte. Dois grupos, que precisam ser coerentes entre si, disputam um território em busca de metas. Eles precisam atuar coletivamente e confrontar o outro, mas o jogo coletivo ao representar o real, o faz como brincadeira: está além da ficção e aquém do concreto e do literal. Torcer é, sobretudo, reclamar e reivindicar. E o confronto desloca a violência destrutiva da guerra, se apropriando do que nos anima no conflito -- ao mesmo tempo em que desliga o dispositivo que nos é fatal. O futebol encanta e, não à toa, mobiliza multidões pelo mundo.

Não ocorre, pois, uma futebolização da política brasileira, quando estamos diante de reduções binaristas da realidade. Inclusive porque, no caso da política ter se tornado projeção do que se passa no futebol, estaríamos diante de uma quimera, uma bola quadrada: polis e polemós, cidade e guerra, e suas respectivas artes, a política e a polêmica (a arte da guerra) são relações com fundamentos inversos.

É evidente que o chamado ao ócio e ao sabático do futebol, por óbvio, é antagônico ao mundo dos negócios. E a tentativa de Estado de usar o futebol como elemento político e, mais tarde, do mercado transforma-lo em negócio -- ou torna-lo, quem sabe, um negócio de Estado -- é avesso à sua lógica, o que faz com que não seja estranho que as pessoas comemorem o jogo e, no mesmo movimento, ataquem a Fifa -- ao contrário, é perfeitamente coerente.

Quando vemos, no Brasil e em muitas partes do mundo, fenômenos como uma onda de emergência e ascensão dos negros via futebol, não estamos diante da "politicidade" do futebol. Mas da própria expressão, no futebol, por suas regras e princípios, do antirracismo. A própria lógica inerente ao ludopédio fez do racismo e da eugenia letra morta. Não foram medidas políticas. Na Europa atual, na contramão do que se passa na política, o futebol impõe espaço aos imigrantes e filhos de imigrantes nas seleções nacionais. A Lei Anti-imigração da Suíça, caso votada anos atrás, simplesmente mudaria a face da seleção local, composta por imigrantes diversos.

A Seleção Francesa, então, nem se fala. A grande quantidade de negros e árabes no time francês, inclusive no time vencedor da Copa de 1998, tornou comum a presença dessas minorias nas grandes seleções da Europa. Por outro lado, exprimindo as inflexões da política, Laurent Blanc, ex-ídolo nos gramados e então treinador daquela Seleção concordou com a política de restringir a presença de negros e árabes no time gaulês. O ex-líder da extrema-direita francesa, Jean-Marie Le Pen não cansa de lançar ataques contra sua seleção pelo mesmo motivo -- sua filha, e atual líder do radical Front National, também não perde chance para o ataque. Talvez isso explique porque Benzema, craque do Real Madrid e da Seleção, candidato a artilheiro da Copa atual não canta o Hino Nacional: "Se marco gol, sou francês. Se não marco, sou árabe”.

Nos Estados Unidos, onde o futebol foi popularizado em paralelo com a chegada de mais e mais imigrantes pobres da América Latina -- e onde se popularizou sobretudo e em primeiro lugar entre as mulheres --, o esporte é alvo preferencial da extrema-direita local: estariam conspurcando os ideais e os valores americanos. Ironicamente, o futebol avança. O último jogo entre EUA e Portugal, válido pela primeira fase da Copa, foi um dos recordes de audiência televisiva americana, em matéria de esportes salvo o futebol americano.

Evidentemente, o que naufragou é a crítica direitista da Copa, que se deliciava com a possibilidade de um fracasso de um modelo de gestão "mais estatal" e esperava, a partir de um caos qualquer, nos estádios ou nos aeroportos, um modo de voltar ao poder plenamente -- ou de impor "por dentro" suas demandas. Essa crítica jamais se voltou contra remoções, violência policial, vedação de manifestações ou quetais. Ironicamente, ela não está nas ruas, mas sim bem protegida nos camarotes vips dos estádios e dos clubes, torcendo porque é "in", muito embora não ajude muito: é uma distorcida.

Na aclamação do sucesso da Copa, a "Copa das Copas", mora um erro: o que perdeu foi um direitismo qualquer, o que não quer dizer que as coisas estejam perfeitas; esse ufanismo que esconde os males e ataca os dissidentes não é positivo. Os comitês populares da Copa, o Não Vai ter Copa, e quetais impuseram uma nova agenda: a Copa que está aí não é a Copa que estava para ser. É uma outra Copa, que independentemente de ser boa ou ruim, é o produto da contestação à crise da construção social, política e, também futebolística da Copa do Mundo. É a resultante de forças.

E a potência de um não vai ter Copa estava em provocar: confrontar o necessário, o inevitável e o imutável. Fazer o impossível se tornar contingente. O que evidentemente se desfaria se tomado em um sentido literal e, do seu lado, também necessário: NVTC é forte por trazer um quadro onde um evento surgia transcendente -- haveria Copa de qualquer modo -- para a imanência -- a Copa haveria mas poderia não haver, ela estaria sujeita às condições e as regras da contingência. Por isso, nesse exato instante, se é possível que haja violência policial, por outro lado, é impossível imaginar que isso não repercutirá. Imaginar que a Copa não aconteceria necessariamente, por decreto de uma antagonismo qualquer, seria incorrer em alguma forma de pensamento meramente abstrato. Uma outra Copa, uma Copa com direitos, inclusive à festa, não é também um mote errado. Nem menos potente.

Equívoco é, de um lado ou de outro, pretender que a objetificação do futebol possa conduzir a alguma vitória política porque ele, assim como a vida, escorregará pelos dedos das mãos do poder -- porque é nessa relação que estará o objetificador -- como água. Do ponto de vista das esquerdas, nem protestar ou torcer, mas sim protestar por torcida, torcer por protestos, protestar torcendo e torcer protestando.


terça-feira, 17 de junho de 2014

O Neoliberalismo é um Boneco de Papel

É uma paráfrase válida, no nosso contexto atual, para a famosa frase do filósofo, revolucionário e político chinês Mao Tsé Tung : "o imperialismo [norte-americano] é um tigre de papel" -- e Mao pode ser acusado de muitas coisas, menos de ter sido um sujeito pouco perspicaz. Ele sabia muito bem que a força do imperialismo era, sobretudo, ficcional e simbólica, mas também que mesmo uma mentirinha (desde que devidamente contada) é capaz de produzir efeitos bem reais. E o neoliberalismo brasileiro, ora personificado no PSDB, é bem isso: igualzinho aos moldes de papelão de seu candidato à presidência, Aécio Neves, feitos para aparecerem em fotos de correligionários menos nobres; um grande boneco de papel animado pela pirotecnia dos bruxos do marketing, o apoio da mídia, a presença de militância paga ou qualquer outra coisa que lhe faça aparentar ter alguma representatividade junto à "sociedade civil". 

De onde tira forças para disputar a presidência, há mais de vinte anos, um partido que não é querido sequer por 10% da população brasileira? Ou mesmo, um partido que não tem sequer um único deputado negro em um país como o Brasil? Naturalmente, nada que não possa ser pago. Para a elite do capitalismo rentista global situada, ou interessada, no Brasil, nada mais cômodo: o PSDB é um partido que sem dinheiro não é nada e, graças a isso, lhe é plenamente fiel. Mas faltar gente não é, em verdade, um problema para tucanos, ao contrário, é solução: resolve-se tudo pelo alto, sem tanto atrito ou "reunionismo".

A economia vai mal? Ora, o problema há de estar no salário mínimo que, afinal de contas, "cresceu muito" -- como afirma o principal consultor econômico de Aécio, o derradeiro presidente do Banco Central de FHC, Armínio Fraga. Nada como resolver eventuais problemas repassando, vejamos só, o ônus para os trabalhadores. Inexplicável é, no entanto, como o próprio capitalismo brasileiro efetuaria o valor, uma vez que a crise mundial corrói potenciais mercados importadores. "Austeridade", como nos ensina a Europa atual, é sempre em relação aos pobres e trabalhadores, uma vez que é a forma mais bem acabada da sujeição voluntária. E se esse arrocho, por um acaso, levar a quadros de aumento da criminalidade ou revoltas, poderíamos espalhar as UPP's pelo Brasil todo ou simplesmente rebaixar a maioridade penal -- e assim matamos e prendemos todos os que restam. E na dúvida, se censura a imprensa.

Mais e mais coisas poderiam ser ditas, mas é preciso pensar como chegamos aqui. Curiosamente, o PSDB volta à carga, com um discurso menos autocrítico ainda em relação aos anos 90, simplesmente porque o PT, em vez de pensar a partir dos conflitos existentes na sociedade, tem pensado e agido a partir de um ideal e uma meta: haveria um só povo brasileiro, que pode ser organizado pelo Estado-demiurgo por meio de uma política intervencionista na economia, conservadora nos direitos civis e policlassista. O fato é que não há o Povo, há povos brasileiros -- e talvez Dilma tenha percebido isso de uma maneira tardia e triste, quando foi vaiada pelos ricos e famosos que estavam dentro do Itaquerão na abertura da Copa; ironia maior de não ter feito uma festa acessível ao brasileiro comum é, ironicamente, ter sido agredida pelos que lá estavam -- enquanto movimentos sociais foram agredidos, do lado de fora, pelo aparato de segurança da Copa.

O próprio mito da construção de um país de "classe média", em vez de um país de cidadãos, já dá margem ao mesmo: estamos presos ao mundo do economicismo, longe da política e dos direitos. Daí não espantam repressões localizadas, suspensões de direitos e quetais. E é da debilidade de uma esquerda em enfrentar os nós górdios de uma sociedade que avança uma direita. Aécio 2014, pois, é consequência. Se eleito, a culpa encontrará um lugar e, em nome, do bem maior precisaremos apertar os cintos. Os desconfortos, quem sabe, ficariam por conta de governos anteriores "irresponsáveis". 

Essa engenharia austera, a princípio, poderia dar certo favorecendo ricos às custas de pobres, mas é possível que mesmo do ponto de vista do capitalismo esse tiro saísse pela culatra com o desaquecimento do mercado interno, do consumo das famílias e do Estado: mas será que "remédios amargos" no capitalismo em vez de se referirem à saídas duras para mais ganhos econômicos se tratam, na verdade, da manutenção de estatutos sociais em seus lugares desiguais, onde um manda e o outro obedece? E como isso poderia funcionar, como funciona, por exemplo, hoje na Europa sob a ditadura da Troika?

As chances desse vazio político enorme, tão unidimensional e frágil quando sua existência na forma de recortes de papelão, dar certo depende do quão média, pequeno-burguesa e acomodada se tornou nossa sociedade nesses últimos anos. E dar certo aqui é mais do que perguntar o quanto isso pode ser eleitoralmente viável, mas sim politicamente possível -- coisa que Collor ou Piñera no Chile não conseguiram ser, apesar de eleitoralmente vitoriosos, ao contrário de Menem ou Fujimori na Argentina e Peru. 

A chave para entender isso é a reflexão sobre o homem novo pretendido por Dilma, o homem médio, que não é a comportada e semi-feliz engrenagem de uma democracia automática, mas um neurótico destrutivo capaz de aderir à banalidade do mal -- e, nesse processo, ele pode, ironicamente, levar a própria presidenta, seu aparato e até as conquistas dos últimos anos (inclusive as suas) juntos. Nunca é tarde para mudar de rumo, alguns acenos como o Mais Médicos, bem ou mal o Marco Civil da Internet e o Plano Nacional de Participação Social até são positivos, mas se esse projeto se tornou sujeito, teremos, contraditoriamente, um problema.




quarta-feira, 11 de junho de 2014

(Não) Vai Ter Copa?


Maracanaço -- Final da Copa de 50

Ou Notas sobre a Economia Política da Copa


A Copa do Mundo, normalmente, traz uma única grande novidade a cada quatro anos: faz de todos os brasileiros torcedores de futebol, unindo quem o é de verdade a quem resolve sê-lo apenas quadrienalmente. Para os que desconhecem as sutilezas da regra do impedimento, pelo menos o "dever patriótico" compensava o estranhamento com festa. Desta vez, no entanto, as coisas foram diferentes: a Copa deixou de ser assunto esportivo -- e indiretamente político -- para se tornar uma questão propriamente política, uma vez que o Brasil sediará a Copa 64 anos depois de ter abrigado o primeiro mundial pós-guerra. E tome polêmica. O que era um largo apoio difuso em um primeiro momento, foi se tornando pouco a pouco motivo de celeuma nacional. A Copa perdeu apoio, logo, quem fundava seus argumentos pró-Copa no fato de que a maioria desejava, perdeu o rumo. À direita e à esquerda, ser contra o mundial se tornou bandeira, pelas mais variadas questões. Qual o enigma desse processo?

As Jornadas de Junho acabaram, no calor da repressão, dando vazão ao #NãoVaiTerCopa. As opiniões, por fim, se dividiram: num primeiro momento, 4 entre cada cinco brasileiros eram favoráveis à Copa, depois eram dois terços, agora não se sabe mais. Um misto de obras atrasadas, não terminadas ou simplesmente não iniciadas, o catastrófico modelo de "segurança" do torneio -- regado à militarização, drones, repressão contra manifestações etc -- e declarações infelizes de figuras notórias do futebol nacional escolhidas se sucederam -- incluindo nomes como Pelé, Ronaldo ou mesmo a neta do ex-dirigente JoãoHavelange.

A Copa se tornou, pois, o que nunca ninguém poderia esperar: um problema. E um problema que transcende ao governo federal que aí está, mas perpassa inclusive todos o sistema político vigente: não só porque inclui a responsabilidade de prefeitos e governadores dos mais diversos partidos, nem apenas em virtude da confusão político-partidária, mas, sobretudo, em razão da contestação à Copa ter atingido a função política e econômica do futebol no nosso país e, possivelmente, no mundo todo -- e  a própria FIFA, antes intocável, entrou na mira. A esse respeito, cabem algumas considerações.

O esporte coletivo é a grande novidade da modernidade. Ele supre uma certa função que a guerra pré-industrial tinha: servir igualmente como diversão dos homens adultos. Com a guerra se tornando um processo de aniquilação total, ela, obviamente, perdeu sua utilidade lúdica. Isso abriu espaço para um novo espaço cultural, uma guerra representada dentro de regras mais ou menos pacíficas: o esporte coletivo, ao contrário do individual, pressupõe um tipo de disputa territorial fundado na integração de vários corpos -- não no desempenho de um corpo individual em relação a outrem --, algo entre a representação, a realidade e a disputa real. Estar num campo ou numa quadra é menos real do que uma guerra, mas é mais real do que uma encenação teatral.

Nesse contexto, o futebol prosperou pelo mundo. Sobretudo porque sua dinâmica é aberta para vários biotipos diferentes. Altos, baixos, asiáticos, africanos ou europeus, todos podem disputar uma partida de futebol de alto rendimento. Num país de mestiços como o Brasil, o futebol só poderia se expandir e se enraizar. Mas não vivemos mais o ápice do esporte bretão no nosso país. Uma das causas é a transformação brutal das cidades, o desaparecimento dos campos de várzea, ou mesmo profissionais, por conta da superlotação e sobrevalorização das cidades -- e também das terras --, a dinâmica de vida e trabalho de um brasileiro do século 21º não lhe permite mais se dedicar ao futebol, a profissionalização do futebol e seu impacto sobre o mundo do futebol amador etc etc. O futebol já não é algo tão presente na nossa vida como era, por exemplo, em 1950: ele é agora espetáculo altamente profissional, restrito, exclusivo e excludente.

O futebol, enquanto fenômeno de massas, deixa de ser uma generalidade e passa a ser uma especificidade social e cultural do brasileira. Uma especificidade importante, mas especificidade: aqueles para quem o futebol é atividade comum são cada vez mais um número menor, mas possivelmente sabem e consomem mais do que um brasileiro da era de ouro do nosso futebol -- mas sabem mais informativamente, menos performativamente, pois é cada vez mais incomum praticar o futebol e vivenciar o mundo do futebol. O Brasil dos campos de várzea está para o Brasil que sedia a Copa-espetáculo como a Europa da propriedade comum estava para a Europa industrial e pós-industrial. O cercamento, meus caros, foi feito.

A partir daí, o futebol perde o aspecto comum que, por outro lado, permitia que o Estado se utilizasse dele em tempos remotos. Em 1970, o futebol não era mercadoria, mas justamente isso, ser expressão cultural e não elemento econômico-mercantil, é o que permitia o regime militar usa-lo simbolicamente para legitimar-se e, por outro lado, organizar o trabalho: sim, trabalhadores, precisam de válvulas de escape sociais para suportar sua vida -- então o futebol da era industrial era espetáculo e experiência que servia como elemento político a serviço da manutenção do sistema econômico.

Com o neoliberalismo, a arte de governo própria do capitalismo pós-industrial, o futebol se torna atividade propriamente econômica -- tudo bem, nutrir a expectativa de ter dinheiro para pagar o pay-per-view ainda anima trabalhadores a trabalhar, mas o futebol agora serve à economia como elemento econômico, ele faz parte do circuito.

Quando o desenvolvimentismo buscou retomar o futebol e, também, trazer a Copa do Mundo como forma de coroar a hegemonia de seu projeto, ele fracassou porque o espetáculo em si não é acessível o suficiente para ser uma "festa nacional": também porque os efeitos simbólicos são menores pela maneira que o futebol é incomum para as pessoas hoje, ou é comum apenas do modo que um serviço pelo qual pagamos o é. Aí, a Copa se torna um entrave. Uma frustração. Ainda mais quando a "economia" parece esfriar, não correspondendo às nossas expectativas, quando o sistema político parece não funcionar; diante do inexplicável, do inquietante, surge um mantra que começa a se espalhar: a culpa é da Copa. 

É um sentimento de ausência que explodiu em condições específicas; a falta de boas escolas, bons hospitais ou os altos preços da moradia, do transporte e outros serviços não se devem a algo que não custou sequer 1% do PIB brasileiro de um ano; a exploração cotidiana do capital, nem se fala, certamente pesa mais do que isso. Mas a Copa se torna um elemento subjetivamente magnetizador de angústias determinadas e indeterminadas, muito além do problema que ela representa objetivamente -- mas também pelo que ela representa objetivamente. Some-se isso à maneira como a militarização da segurança repercute junto ao imaginário das vanguardas políticas do país, traumatizadas com a ditadura, e temos uma tragédia. Nem o peso da camisa canarinho do outro lado, por si só, dá conta.

O que esperar da Copa que se inicia amanhã? Podemos dizer que já não teve Copa, pela fragilidade da mobilização em torno dela, podemos dizer que haverá Copa, pois o otimismo das pessoas cresce à medida que o torneio se aproxima, podemos dizer que houve Copa, embora tudo isso, mas nada disso importa: entre um niilismo conservador anti-Copa, aquele fundado no argumento de que não seríamos dignos de realizar o torneio ou porque teremos estádios no interior do país, e o ufanismo militar que garantirá a Copa nem que seja à bala, existe uma coincidência no grau zero de intensidade. Há potência no #NãoVaiTerCopa nas ocasiões em que ele é colocado como um chamado ao impossível -- antagonizando determinados desmandos.

Existe, é verdade, o esgotamento da captura política do futebol como elemento de adestramento dos trabalhadores e das pessoas em geral, seja pela força dos movimentos ligados à crítica da Copa ou pela luta social travada apesar da realização do torneio -- e reprimida, ou atendida, porque poderia resvalar no torneio. Há dois fatores preponderantes aí: (1) a força da luta, dentro do futebol -- como o Bom Senso F.C. e outras iniciativas --, fora dele -- ou nas novas formas de luta que assumem movimentos tradicionais, e os novos movimentos, que não se intimidam com os acordos de Estado e os consensos; (2) O esgotamento do futebol à medida que ele foi capturado e, agora, se torna mais e mais parte do próprio processo econômico capitalista, isto é, passa da subsunção relativa à subsunção total; se ele servia como elemento social-político-cultural voltado à organização do trabalho, o que lhe sustentará, uma vez que, em seu interior, existe agora uma fricção entre capital e trabalho? E como o futebol cumprirá seu papel cultural na organização do trabalho em geral? 

Vejam bem, a segunda questão corresponde a uma das rachaduras do neoliberalismo, isto é, o problema que aparece com a transformação de elementos não-econômicos de sustentação do sistema econômico em, também, peças do xadrez do mercado: a escola, o hospital, o esporte e assim por diante deixam de ser atividades meios, atividades de sustentação para se tornarem fins.  Uma vez que eles deixam de ser motores auxiliares da organização do mercado para serem organismos de mercado, passa, pois, a haver o problema da organização do trabalho no interior do que servia para organizar o trabalho em geral. Mesmo quando a escola e o hospital ainda estejam sob regime público, eles passam a se submeter à lógica empresarial, o que impõe uma simetria da relação em seu interior e de si com a sociedade, semelhante às indústrias e comércios. O professor, mesmo da escola pública, devém proletário e o estudante e suas famílias, mero consumidor, o que desencadeia um efeito dominó na medida em que o capital profana províncias que não eram sequer econômicas.

Mas a luta radical que se levanta nesse estado de emergência, por seu turno, é inimiga tanto desse neoliberalismo quanto, também, de tentativas de retornar tudo às práticas do velho capitalismo -- inclusive no que diz respeito à sua melhor forma de gestão, isto é, uma espécie de keynesianismo pós-industrial, um novo social-desenvolvimentismo. Ironicamente, é possível que o grande legado da Copa seja o arrefecimento da importância do futebol, em específico, como elemento de conciliação de classes e domesticação do trabalho -- o que poderá projetar, por vias tortas, um futebol melhor na medida em que expectativas políticas (de Estado) e econômicas diminuem sobre ele. O mesmo vale para os espetáculos globais e quetais, o que implica numa crise num setor importante da cultura de massa global -- quantas cidades não estão, neste momento, recusando sediar os Jogos Olímpicos e a própria Copa? O futebol (e o esporte) mercadoria entra em crise e o futebol instrumento político do sistema idem.

Crises em sistemas econômicos, ou pelo menos nas formas políticas que os sustentam, em geral se explicam pela maneira como eles não conseguem mais arregimentar o trabalho: isto é, tornar contingentes não-proletários em trabalhadores empregados (isto é, condicionados a criar sob sujeição relativa), mantê-los dessa forma, convencê-los de que vale a pena viver assim. Sem trabalho, pois, não há capital. A libertação do trabalho é a própria liberação da condição do trabalhador, do mesmo modo que é com a escravidão e os escravos -- o trabalhismo é tão absurdo quanto uma política de melhor tratamento dos escravos, caiando a senzala em vez de destruí-la. A queda da nossa própria ditadura se explica pelo exaurimento da capacidade daquele regime em mobilizar trabalhadores (cf. Cava, 2014).

Se há captura e uso político é, por outro lado, porque existe riqueza comum e real no futebol -- do mesmo modo que o nacionalismo se utiliza da expressão positiva das diferenças culturais para criar uma negatividade; portanto, mesmo na bandeira e no hino há uma dimensão positiva. Existe, pois, a necessidade de lutar dentro do futebol -- da mesma forma que Spinoza confrontava dentro da teologia -- pelo futebol, um futebol qualquer e livre de qualquer função utilitária -- eleitoral, política ou econômica: isto é, dissociar o futebol brasileiro da CBF, o Mundo do Futebol da FIFA, a democracia do Estado. Não é uma tarefa fácil. As esquerdas têm dificuldades históricas nisso, sempre colocando tudo no mesmo balaio, o que ora as faz abraçar tudo de forma ufanista, ora as leva a renegar o futebol como um todo por lhe julgar "alienante" (confundido a captura feita com a relação capturada).

É preciso defender o futebol, quem sabe defender o futebol brasileiro e lutar contra quem se aproveita dele. Haverá sim Copa, ela começa amanhã, mas o que não aconteceu, nem acontecerá, é a Copa nos termos que o poder desejava. Deu jogo. Se a FIFA, o Estado ou qualquer um outro poderoso ganhar ou perder, não será por W.O. -- nem sem ter levado gols.

P.S.: Por tradição, eu torço moderadamente pela Seleção. Não simpatizo muito com o time, embora reconheça que ele seja bom -- e, pelo fator campo, acaba se tornando um dos favoritos. Gosto de Holanda, Portugal, Argentina, Chile e Uruguai. Desgosto da Espanha e da Itália por motivos diversos. A Alemanha me é indiferente como a Inglaterra.






segunda-feira, 9 de junho de 2014

O Rolezinho de Negri (e do Negrianismo) por São Paulo

Cocco e Negri no Cacs-PUC
No topo dos seus oitenta, quase oitenta um, anos, o pensador italiano Antonio Negri é uma figura adorável. A uma primeira vista, aquele senhor alto, de jeito sereno e olhar bondoso chama a atenção pela simpatia, mas assim que se pronuncia, ele impressiona ao desfilar um repertório intelectual potente e polêmico: e, enfim, não há como ficar neutro diante do pensamento de Toni Negri, dos mais iconoclastas, criativos e coerentes pensadores do nosso tempo. Coerência que, aliás, lhe custou caro quando confrontou a farsademocrática italiana do pós-guerra e, por isso, foi parar no cárcere em 1979, acusado de ser "mandante moral" do assassinato do premiê Aldo Moro ocorrido um ano antes -- acusação movida pela natureza revolucionária da sua obra -- e também sob alegação de ser cattivo maestro -- isto é, mau mestre, corruptor de jovens como Sócrates. A "farsa democrática" em questão se fundava no  grande acordo  da direita democrata-cristã, com seus parceiros socialistas, e a esquerda “comunista” em torno de um indeterminado "progresso": a direita fazia concessões pelos direitos sociais, mas, em troca, a esquerda deveria condicionar seus sindicatos a impedir greves e reivindicações da sua base trabalhadora -- e também vetar, ou levar em banho-maria, certas demandas insurgentes ligadas aos direitos de minorias, que emergiam com singular potência desde os anos 1960.

Negri, há pouco, esteve no Brasil, onde deu um giro pelo Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e São Paulo. Cá, participou de conferências, deu entrevistas, circulou entre movimentos sociais, participou de lançamento de livros, conversou com estudantes etc.  Essa foi uma de suas muitas visitas ao país, sendo a primeira no fim do ultimo período em que esteve no preso -- entre a primeira prisão de Negri e a última, houve o exílio na França, onde se tornou professor da prestigiosa Universidade de Paris; o retorno voluntário para Itália, nos anos 1990, que culminaria em novo período no cárcere, foi uma tentativa de dar visibilidade à causa dos refugiados italianos dos anos de chumbo. De lá para cá, o Brasil de Lula e as experiências latino-americanas foram importantes objetos de reflexão-ação de Negri. 

Há, é verdade, um longo caminho que separa a Itália do fim dos anos 1970 do Brasil de 2014, mas há  coincidências importantes: tanto a "direita” quanto a "esquerda” partidárias se confundem cada vez mais -- enquanto, no mesmo processo, a(s) esquerda(s) se descola(m) da realidade social e política do país; o cálculo político passa, então, a girar em torno do consenso em um “progresso” que justifica quase tudo, inclusive a repressão militar e judicial de movimentos sociais, minorias e afins. Como na Itália, houve um processo anterior de empoderamento econômico, e autonomização subjetiva, mas o sistema político e econômico chegou no limite do que poderia tolerar. Lá, no entanto, a esquerda parlamentar aparecia como parte do sistema, mas não em um primeiro momento como cabeça dele, coisa que cabia à conservadora democracia cristã. Aqui, as mudanças foram deflagradas por uma ampla coalizão política e um forte movimentação social, a princípio, protagonizada pela esquerda. 

Negri foi, e é, dos maiores apoiadores internacionais das transformações sociais pelas quais o Brasil passou nos últimos anos, sendo dos primeiros entusiastas internacionais do governo Lula -- enquanto os pensadores de esquerda estavam ora encantados com uma Terceira Via, ao estilo de Tony Blair, do nosso FHC e dos profetas do Fim da História; ora tributários de uma velha esquerda saudosa de modelos burocráticos como o da velha União Soviética ou da velha social-democracia, ambas formas mais ou menos referentes à falecida sociedade industrial. Lula, apesar das ambiguidades, trouxe uma lógica de governo virtuosa e aberta, voltada aos afetos e à subjetividade, mas agora se vive outro momento; o Lulismo parece, voluntariamente, ter se resolvido em desenvolvimentismo científico, no qual o gerencialismo e a técnica tomaram o lugar da política.

Ironicamente, se era até normal que conservadores como Demétrio Magnolli ou Merval Pereira atacassem Negri, de repente, um nome de esquerda como Marilena Chauí (em virtude da inspiração de parte dos manifestantes de Junho) foi ao ataque; depois, quando Negri, sem desmerecer os avanços do período Lula, fez críticas ao estado de coisas do impasse atual, ele passou a ser renegado pelo governismo oficial -- os mesmos que, até então, mantinham suas opiniões sobre o pensamento negriano guardadas para si ou faziam uma leitura domesticadora dele, como se il vecchio Toni fosse apenas um reformista de retórica radical. Antes, talvez,  Mas a causa do desentendimento atual é claro, os motivos que levaram, e levam, Negri a defender certo legado de Lula são uns, o deles, por certo, são outros -- o que não se resolve numa disputa sobre a qual pertence a melhor análise, mas sim para onde cada um pretende direcionar o que aí está.

O mais recente desses ataques veio de Mino Carta, editor da mais relevante publicação pró-governo: ele chamou Negri de “profeta do apocalipse”, teceu elogios ao Compromisso Histórico que unia comunistas a democratas-cristãos na Itália dos anos 1970 e fez uma defesa do desenvolvimentismo implacável: nada de “cultura da favela”, o papel do governo é civilizar e educar os favelados e diferentes. Após Negri fazer críticas aos megaeventos, Carta finalmente teve a oportunidade para abrir sua caixa de ferramentas, afinal, tudo pode ser dito contra quem ousou falar mal da Copa e quetais. E muito do que permanecia guardado vem à tona, seja a velha rixa sobre a política italiana ou a defesa do desenvolvimentismo, dois fatos historicamente diversos e conceitualmente parecidos. 

Enfim, é a mesma fúria que Carta investiu contra uma outra figura envolvida na oposição ao Compromisso Histórico italiano, o ativista Cesare Battisti: após ser condenado em um esdrúxulo processo político nos anos 1980, acabou refugiado em uma série de países, vindo parar no Brasil, onde foi preso e alvo de um processo de extradição digno de um Dreyfus. Na ocasião, Carta chegou a investir mais tempo e virulência em prol da extradição de Battisti para o sedento Estado italiano do que a própria direita brasileira, mas seus esforços foram em vão, sobretudo pela intervenção da ala esquerda do governo Lula -- representada naquele momento pelo então ministro da justiça Tarso Genro.

Carta, por certo, há de atribuir a Battisti, e muito mais a Negri, a responsabilidade pelo desastre político italiano, o que é uma hipótese que chega a ser mais louca do que inverossímil: A verdade é que não foi a esquerda revolucionária que jogou a Itália em um caos político simbolizada pelos longos e  tragicômicos governos de Silvio Berlusconi, e agora pela política europeia de austeridade aplicada com as bençãos de um presidente ex-comunista e um gabinete de centro-esquerda, mas o próprio Compromisso Histórico que implodiu por suas próprias pernas, depois da derrota de pirro que impôs aos movimentos sociais italianos.

Sublinhe-se que pouco depois da morte de Aldo Moro, o gabinete do premiê Bettino Craxi – do pequeno partido socialista local, sócio minoritário desde sempre dos democratas-cristãos e do grande consenso – implodiu em escândalos incontroláveis de corrupção. Isso foi seguido da própria implosão do Partido Democrata-Cristão, anos mais tarde, incapaz que era de se sustentar diante de mínimas investigações contra a máfia. Fim não muito diferente teve o partido comunista local, que se autoextinguiu com o fim da União Soviética, de quem ele alegava ter “críticas” e “manter distância”.

A “esquerda extraparlamentar” italiana, na verdade, expôs a fabulosa fraude política na qual a esquerda de Estado escolheu se enfiar. Esse é o motivo do ódio de Carta e tantos outros, que com sua narrativa fantástica imputam, até hoje, a responsabilidade do desastre aos denunciantes, como se Noé fosse o culpado pelo Dilúvio. E algo semelhante se opera no Brasil, onde a reiteração da tragédia italiana ressurge na ironia triste da repetição das posições de Carta e Negri, já anciãos, sobre fatos tão atuais e brasileiros, mas que poderiam muito bem se referir à Itália dos anos 1970. 

Talvez nem tudo esteja perdido, ainda, no Brasil, mas enquanto o neoliberalismo espreita para retornar, o governo liderado pelo partido dos trabalhadores ainda vacila quando não é plenamente ambíguo: ou tristemente inequívoco, quando insiste na militarização da segurança da Copa ou trata a violência de Estado como um problema menor das manifestações. Manifestações que, aliás, deveriam ser ouvidas antes de serem julgadas e condenadas de pronto e por inteiro.

Fica a proposta de desentender menos o enigma político brasileiro a partir, vejamos só, da análise da composição de classe: pensar as transformações do PT, e a inflexão reacionária da classe média brasileira à luz das transformações do capitalismo industrial para o rentista -- como ele mesmo suscitou em roda de conversa no Centro Acadêmico de Ciências Sociais da PUC de São Paulo. Ou de pensar e atuar cada vez mais nos movimentos em forma de enxame, os quais são mais e mais comuns na atual onda grevista brasileira. Também resta o exemplo da trajetória de luta de Negri. E da sua, aí sim, autêntica generosidade com os outros -- com a qual nos brindou ao longo dos últimos dias em São Paulo. 

P.S.: Foi a terceira vez que acompanhei uma visita de Negri ao Brasil, mas de todas elas, está me foi a mais marcante: engraçado e impressionante vê-lo em meio ao centro acadêmico que adotei e onde já debati tanto sobre a obra dele -- perto dos seus próprios livros e ao lado de gente tão querida.

quinta-feira, 29 de maio de 2014

O Adeus do Subcomandante Marcos: notas sobre a Imanência e Fascismo como Apatia

Esta semana, o Subcomandante Marcos anunciou seu fim. Sua despedida, sua revolta ao corpo coletivo do qual jamais transcendeu, pondo a seguir um ciclo, um movimento de re-volta e re-torno -- um desaparecimento por afirmação, Marcos será agora Galeano, companheiro morto recentemente, na imanência pela imanência. Paradoxalmente, a extrema-direita cresceu na eleições do Parlamento Europeu,  foi ao segundo turno das eleições colombianas, os neoliberais venceram na Ucrânia e os conservadores hindus chegaram ao poder na Índia poucos dias antes.

Marcos era o porta-voz mascarado, de origem enigmática e ideias firmes do Exército de Libertação Zapatista -- possivelmente, o primeiro movimento de relevo do ciclo de lutas da globalização: eram tempos agrestes quando eles surgiram, anunciava-se o Fim da História, seu México estava sendo tragado pelos EUA  e boa parte da América Latina, após conseguir se libertar das ditaduras militares, se via agora entrando no ciclo neoliberal que devorava as esperanças a respeito de suas jovens democracias. 

Quem era Marcos? Um personagem, um ser sem rosto, sem nome, sem patente: sua liderança, simbólica, estava posta sob o comando coletivo. Marcos seria o nome de um colega tombado na batalha, mas poderia ser o ajuntamento dos nomes das localidades onde primeiro se levantaram os zapatistas, no pobre estado mexicano de Chiapas. Quem seria Marcos de jure, mesmo que o governo mexicano tenha chegado a possível verdade, pouco importa. Um subcomandante. Os guerrilheiros tecnizados usavam a nascente Internet, mas se declaram índios. Estava na imanência das lutas e na imanência das lutas Marcos se desfez -- ao se refazer.

Em boa parte dos outros processos eleitorais nos quais triunfou a extrema-direita, um clima de indisfarçável apatia toma conta do cenário. O fascismo será sempre a atitude transcendente e totalizadora do Sistema se manter, a qualquer custo -- apoiado por pessoas suficientemente exauridas, física e mentalmente, para lhe servirem de anteparo.  No mundo da modernidade, o fascismo era a resolução negativa do homem do medo e da esperança; hoje, é a radicalização do desespero e do delírio paranoico securitário. A eleição do fascismo não é fruto da falta de "pragmatismo", de "prudência", de "estratégia", mas da própria apatia social e política, sobretudo entre quem poderia mudar algo.

Se o Subcomandante Marcos foi-se, como no "fim" de uma zona autônoma temporária, uma vontade de eterno [na potência] marca a complexa maquinaria da qual decorre, e se sustenta, as variadas formas de neofascismo -- o fundamentalismo hindu, o uribismo narco-bélico, o racismo dos Le Pen. A ideia de uma eternidade na potência, um imobilismo primeiro, como a máquina primordial do aristotelismo se associa com um movimento, e um jeito de garantir um certo movimento: num mundo onde o capital é plenamente livre, nenhum tipo de fluxo, nem mesmo o trabalho, pode deixar de ser represado.






domingo, 18 de maio de 2014

Água Bem Comum

A água está na ordem do dia. A água é algo tão terrivelmente natural que nos esquecemos como ela chega até nós. Ou melhor, nos esquecemos até que surjam riscos de não haver mais água potável. Ou até que inundações destruam cidades e plantações. Em um país como o Brasil, a água, ou sua falta, sempre foi algo sentido à distância, como um problema do sertão nordestino ou das longínquas periferias metropolitanas. Com a possibilidade, absolutamente anormal, de um colapso no fornecimento hídrico em São Paulo, com as enchentes anormais no Norte do país, que devastaram o Acre e as angústias em relação à Transposição do Rio São Francisco, uma nova rodada de reflexões e lutas em relação aos recursos hídricos se impõe.

"Água bem comum", ou acqua bene commune, é um bom mote e remete ao nome de um movimento que surgiu na Itália há poucos anos, na esteira da luta contra a privatização da água, espalhando-se logo mais pela Europa. E a água como bem comum é uma luta central do nosso tempo. Porque nossa luta precisar estar na luta pela distribuição comum de água, isto é, para além da administração burocrático-estatal dos recursos hídricos ou de sua paulatina conversão em mercadoria -- o que se vê quando um executivo de uma corporação do porte da Nestlé defende, sem maiores constrangimentos, a privatização da água ou, prestem atenção, quando a filial da mesma no Brasil lança uma ofensiva contra fontes de águas medicinais.

A gestão dos recursos hídricos, ou os recursos hídricos sendo sujeitos de um regime de gestão e gerenciamento, igualmente. A passagem da superabundância de água para o regime de processamento e fornecimento enquanto "serviço público" é própria da modernidade: de repente, as fontes "naturais" diminuíram, em grande parte pelos efeitos nocivos da produção industrial e a poluição urbana, e ter acesso a fontes e  técnicas de processamento e recondicionamento de água se tornou uma questão estratégica para os Estados, das atividades mais centrais dos governos. Água bem público, isto é, produto de Estado -- e o Estado é, também e sobretudo, uma máquina hidráulica, que decide para onde água -- a vida -- pode ou não pode não ir.

É claro, a relação entre Estado -- ou proto-Estado -- e água é muito anterior ao neoliberalismo e à modernidade. A própria civilização nasceu, não por acaso, no Egito pois foi lá que o poder político passou a dominar, e assim, a desnaturalizar o uso de um Rio [o Nilo], controlando seus ciclos naturais e impondo, assim, regras sobre o que há de mais elementar para a vida humana. Hoje, uma das maneiras que permitem, e explicam, a dominação israelense sobre os palestinos é, justamente, a disputa e a consequente repartição desigual dos recursos hídricos -- como bem lembrado por Lenora Bruhn em recente evento sobre a Nakba na PUC-SP.

Com o neoliberalismo, uma nova ofensiva: água enquanto produto mercantil com o movimento que vai desde a venda onipresente de garrafinhas de água mineral até, vejamos só, a exclusão gradual de parcelas importantes dos recursos hídricos para consumo direto ou indireto -- como no caso da geração de energia --- das indústrias dentro de um modelo de produção voltado apenas ao lucro privado. 

A gestão privada de recursos hídricos, com empresas privadas, ou semi-privadas, fazendo às vezes do que os órgãos públicos já faziam, é mais consequência do que causa de problemas. A água, mesmo quando administrada por órgãos públicos, já estava contabilizada em termos econômicos, embora sua eventual falta, nesse caso, atendesse a determinações de Estado e às contingências de seu domínio. Com a privatização do fornecimento, como aconteceu, p.ex., na Argentina por determinação do FMI, o lucro imediato e, logo mais, a possibilidade de fazer renda financeira com água passa a nortear a gradação, quantidade, qualidade de seu fornecimento e de sua falta.

A geração de energia a partir da água, com imensas hidrelétricas, como vemos no Brasil e causa tanta polêmica em obras como a usina de Belo Monte -- ou a igualmente megalomaníaca usina de Três Gargantas na China -- tem por resultado a destruição de cursos originais de rios com consequências imprevisíveis. A construção de barragens na Amazônia brasileira está diretamente conectada à cheia violentíssima do Rio Madeira. Em ambos os casos, o uso do "potencial hídrico [para gerar energia]" esconde uma demanda de energia voltada à alimentação de plantas industriais ineficientes -- inclusive no caso chinês, mais ainda no caso brasileiro --, voltadas à superprodução de bens industriais.

No que diz respeito ao consumo de água, o Nordeste brasileiro é um paradigma: região historicamente afetada pela seca, jamais foi alvo de qualquer intervenção política. O monopólio das águas, na forma das barragens de represas artificiais ou dos açudes, concedia poder efetivo a velhos coronéis. O que escapava a isso, acabava sendo uma interessante fonte de pressão "natural" para expulsar enormes contingentes humanos da região, os quais se tornaram a mão-de-obra barata para a indústria em outras regiões. 

A própria política de Transposição do Rio São Francisco é uma das pedras de toque do Lulismo na sua política de investimento no Nordeste -- invertendo o sinal da política estratégica nacional do país desde muito --, mas muito embora possa ter consequências ambientais menos severas do que as usinas na Amazônia, retrata uma política de Estado e molar, o qual se sustenta no modelo da mega-obra e não, digamos, em modelos mais inteligentes e democratizantes como a construção de amplas redes de cisternas

A crise da água em São Paulo, por seu turno, é o que mais chama a atenção, sobretudo pelo seu ineditismo. O governador paulista Geraldo Alckmin inaugurou o uso do volume morto -- isto é, o volume de água que está abaixo dos mecanismos de coleta da água -- do reservatório Cantareira, protelando o racionamento de água necessário pelas circunstâncias. O volume morto, pela maneira como se acumulam detritos e sedimentos é terrivelmente perigoso. Mas em um momento digno do realismo fantástico latino-americano, o governador bandeirante o inaugurou com pompa e cerimônia. Apesar do discurso de que é uma "tragédia natural", um acaso da mãe da terra, tudo isso esconde que a situação de calamidade iminente, mais do que uma seca ocasional. 

A omissão populista quanto à queda dos reservatórios, a falta de investimentos em canos para evitar vazamentos e a falta de uma política para uso da água potável geraram a crise. O não investimento na exploração do potencial hídrico do Aquífero Guarani é um detalhe, não falta água, ela sobra, mas com o atual nível de desperdício, com núcleo metropolitanos demasiadamente habitados, deflagraram a crise. 

Os desdobramentos da crise paulista não são alentadores. Inclusive porque a própria distribuição habitacional faz com que os pobres morem em lugares mais distantes, altos, precários e com menor possibilidade armazenar água do que os ricos. Se isso ainda pode ser piorado, com um racionamento mais duro aqui e não ali, é evidente que existe um risco posto, que aumenta na medida em que a transparência política diminui. Pior ainda, nas áreas mais ricas, os canos são mais novos, o que impede ou diminui a contaminação em situações nas quais a pressão do fluxo de água é menor.

O modelo paulista de gestão da água em São Paulo está nas mãos da Sabesp, uma empresa de economia mista, cujo maior acionista é o governo paulista. O lucro da empresa só no ano passado chegou a quase 2 bilhões de reais, com um faturamento de 11 bilhões. A Sabesp, apesar do controle do governo estadual paulista, tem ações na bolsa como qualquer corporação. Ela se situa, pois, no terreno pantanoso entre o Estado e o Mercado, expondo que a diferença entre ambos é mais relativa do que se imagina. 

Mais ainda, a relação de seus investimentos está longe, muito longe de políticas abertas e democraticamente construídas, com muita transparência corporativa, mas baixíssima transparência social e política. A empresa serve aos seus acionistas, as empreiteiras com quem contrata e, em derradeiro lugar, às demandas sociais e ambientais. O neoliberalismo tucano certamente colocaria pouquíssimo peso na demanda social e, tanto mais, na demanda societária naquilo que lhe cabe decidir.

Dilma tem razão quando diz, indiretamente, que Alckmin falhou na política hídrica, no entanto há mais coisas entre o céu e a terra do que pode supor uma análise apressada; a política de lucro, e logo mais capitalização sobre a escassez -- que é a definição técnica de renda financeira -- que o neoliberalismo tucano admite para a água antevê sempre problemas, pois a demanda social é atendida somente quando a coincidência disso com os interesses econômicos. 

No entanto, no neodesenvolvimentismo nem tudo são flores, as apostas em obras gigantescas, criam um modelo que varia entre insustentabilidade ambiental ou a estrutura de distribuição grandiosa, que pode efetivamente funcionar, mas que não traz uma emancipação à vista -- a sustentação em um sistema cisternas e uma rede marcada pela microcaptação em vez da macro-exploração cria relações democráticas e relativamente independentes do Estado, o que não se vê nas gigantescas máquinas construídas a partir da transposição de rios, como se vê, afinal, desde a época do Faraó.

Um horizonte possível para uma luta constituinte pela água como bem comum teria em vista redes menores e melhores de água nas quais a distribuição, e o cuidado comum, com os recursos hídricos -- desde a extração, tratamento e saneamento -- sejam o foco e as faltas d'água não podem se dever a razões de Estado ou maneiras de ganho -- como, também, as superabundâncias precisam, desde o primeiro momento estar a favor da vida, o que demanda a democratização da discussão sobre a água. Do contrário, o mar virará sertão em toda parte.



sábado, 3 de maio de 2014

Putin e seu Rasputin: Notas sobre Dugin e o Olavismo.

Dugin, simpaticíssimo, na Ossétia em 2008: Guerra Russo-georgiana
A atual crise russo-ucraniana trouxe uma novidade para o meio intelectual: de repente, a figura do pensador russo, e conselheiro de Putin, Aleksandr Dugin (pronuncia-se "Duguin") e seu  neoeurasianismo (isso mesmo: novo + Europa + Ásia) ganharam uma curiosa notoriedade. Dugin, anti-liberal, místico e barbudo parece ter se tornado o norte ideológico do claudicante regime russo, que de um neoliberalismo radical com Yeltsin ganhou mais e mais características nacionalistas e populistas com Putin -- sobretudo após os protestos massivos dos fins de 2011, quando o presidente russo viu seu nome, já em baixa, ser colocado em xeque depois de uma possível fraude eleitoral, com vistas a favorecer seu partido, nas eleições parlamentares.

Quando eu ouvi falar em Dugin, sua retórica pop e suas referências intelectuais -- uma verdadeira mistureba que vai do misticismo aos pensadores da nova direita francesa e os pensadores nazistas (sim, os nazistas!)  --, o nome do nosso Olavo de Carvalho me veio à mente -- não que Olavo seja fascista, mas pelo sua maneira, digamos, exótica de misturar ideias (no caso, astrologia e ultraliberalismo genérico) e retórica para defender uma posição reacionária qualquer. O Pior de tudo é que Dugin, que fez um longo tour pelo Brasil em 2013, com direito a palestras na USP e em outras universidades, debateu com Olavo em 2011 (!!!); por trás do debate e das visitas, uma galera ligada à "nova direita cultural" no Brasil.

Desde a revolução de outubro, e apesar do Stalinismo, do Revisionismo e do Neoliberalismo pós-soviético, costumamos associar a Rússia à esquerda -- ainda mais porque as geopolíticas de esquerda do governo Lula e da América Latina encontraram em Putin um (acidental?) aliado. Por outro lado, a direita brasileira sempre esteve associada aos Estados Unidos. Daí o fato de Olavo não ter curtido Dugin -- e, em sentido inverso, a razão (ou falta dela) que levou a política de Putin para a Ucrânia ter sido aplaudida pela esquerda progressista brasileira (que em seus blogs chegaram a dar eco a Dugin). 

É claro, o que se pode dizer de uma genuína esquerda russa, soterrada no mar de ultrapatriotismo dos últimos tempos, certamente não deve estar feliz com tal "engano". E parte da esquerda brasileira, pelo menos aquela que não foi sequestrada pelos delírios do Brasil Maior, tampouco. O próprio discurso triunfante de Putin em relação à incorporação da Crimeia acusa o golpe da influência duginiana: foi a principal fala política contrária aos levantes globais que se tem noticia, o que coloca tão ou mais à direita que Obama, que colocou no mesmo patamar, malandramente, o Tea Party e o Occupy Wall Street.

Dugin, que já esteve próximo de um certo saudosismo soviético, depois dos Nacional-Bolsheviks -- a versão "nacionalista" dos velhos bolsheviks -- até  conseguir finalmente o posto de conselheiro real -- coisa que não são poucos "intelectuais", mesmo de esquerda, que desejam.  É claro, Dugin tem mais consistência que os Olavos e quetais, mas só o fato dele ter debatido com O.C. em pessoa, já indica todo o rigor do seu pensamento ou de seus apoiadores internacionais. 

E seu neoeurasianismo é só uma teoria que serve bem a Putin e aos seus hoje na disputa entre os velhos blocos de poder nacionais. A teoria em questão, aliás, é sobretudo uma forma de destruir a União Europeia, o que construiria uma inevitável proeminência do Estado russo -- e talvez aí se explique a aliança de Putin com a extrema-direita francesa e, também, porque Washington esteja reticentes em confrontar abertamente Moscou na questão ucraniana, justamente por ver nisso um meio de enfraquecer Bruxelas. 

Enfim, isso é só um relato sobre como um mundo parece fazer cada vez menos sentido -- ou como velho poder, de olho no comando ou em formas de agenciamento com a "economia global", parece cada vez mais tributário de literatura barata (do mesmo modo que Reinaldo Azevedo influencia políticos tucanos). Se há poucos dias, o mestre Bruno Cava trouxe em seu blog um magnífico debate sobre a atualidade de Lenin, me parece que pelo menos um novo Rasputin já temos. Só para lembrar Cava, precisamos de uma *segunda via* para essa coisa que aí está -- e eu digo ao som das Pussy Riot, de preferência, por mais que elas sejam cândidas com Obama. Eis o estado da Arte, e a arte do Estado, deste grande pornô nonsense que é o Global.

Atualização de 04/05/2014 às 02:03: Bruno respondeu com um post de fôlego que dialoga com este e os dois posts anteriores sobre a temática russo-ucraniana.