quarta-feira, 30 de abril de 2014

A Situação de Dilma: Navegando na Tempestade

A Nona Onda (Grie)
Desde as Jornadas de Junho, temos testemunhado um verdadeiro bombardeio de novas análises. Todos concordam que nada mais é, e possivelmente não será, como antes. Mas ninguém também consegue definir o novo. Agora, com a proximidade das eleições gerais, um aspecto profundo dessas incertezas vem à tona: é a primeira eleição presidencial na qual a polaridade entre uma direita neoliberal -- primeiro, acidentemente incorporada por Collor, depois capitaneada pelos tucanos -- e o Partido dos Trabalhadores -- um complexo agenciamento sindical-popular-socialista -- está abalada. Nenhuma das duas narrativas estão gozam de confiança profunda, tampouco seus líderes e representantes. 

Desde a redemocratização, foram 12 anos de governos neoliberais e quase o mesmo de governos petistas. Dilma Rousseff pleiteia a reeleição, lidera todas as pesquisas, mas está em xeque, questionada por vários setores, por diversos motivos.  Nada indica, no entanto, um desejo de retorno ao neoliberalismo, embora isso possa acontecer por motivos acidentais exatamente como no fim dos anos 90, quando a polaridade parecia ser entre capitalismo de Estado fascista e alguma forma de social-democracia. Os anúncios da queda de popularidade de Dilma, verificados desde Novembro -- quando cessou um movimento de recuperação desde o impacto causado pelas jornadas --, sobretudo a última queda (nas pesquisas Datafolha e CNT), criam um paradoxo: hoje, Dilma ainda venceria no primeiro turno, mas seus próprios companheiros e aliados ensaiam um forte coro de "Volta Lula!"

O ano de 2014, pois, marca a primeira eleição na qual as "esquerdas" não estão mais, pelo menos na sua larga maioria como antes, convictas de que o PT é a saída. Intelectuais, artistas, militantes e quetais sempre estiveram ali, se mobilizando ou desmobilizando de acordo com o norte dado pela bússola do partido da estrela. Talvez o único momento em que isso não aconteceu foi o primeiro turno de 1989, quando o trabalhismo de Brizola disputou palmo a palmo com Lula e o petismo a posição de líder do campo canhoto do espectro. E Lula venceu essa disputa, mesmo que tenha perdido para a direita. Mas os rumos da esquerda brasileira foram definidas ali. Ironicamente, Dilma, que foi um importante quadro brizolista entre os anos 80 e 90 e, depois, foi peça chave do esquema lulista é quem está no olho do furacão. Nem por isso, o PSOL ou qualquer outro partido de esquerda tomou esse posto. Nem o PSB parece que esteja sequer disposto a disputa-lo -- ao contrário da Rede de Marina Silva que, a rigor, ainda não existe. 

O que desejam os brasileiros, afinal? Eles sabem bem, uma sociedade mais justa, pacífica, humana, mas não sabem como realizar isso, como dar forma institucional à essa imensa tarefa. E quando têm alguma ideia, se deparam com uma desoladora falta de canais e espaços para construírem saídas. Eles se ressentem, eles desejam mais e melhor, mas não encontram bem o que querem, se perdem em um desejo difuso, uma flutuação de ânimo considerável. Mas se o punitivismo penal é aparentemente palavra de ordem, por outro lado, dificilmente os seus concordam com violência contra os seus: dificilmente se verá alguém de classe média defendendo punição à sonegadores de tributos, tampouco trabalhadores tolerando violência policial, ou arbitrariedades judiciais, contra os seus -- algo que não defendem, por exemplo, para a população que se põe para fora do regime do Trabalho. Na verdade, falta senso comum, ou melhor, o senso de comum.

Entre os jovens, mobilização como nunca. E eles desconfiam dos partidos socialistas, embora não queiram a direita: a geração mais bem informada da história do Brasil, integrada à Internet e à sociedade global, defendem quase em uníssono a luta pelos direitos civis, pelas liberdades todas, mas não tem um norte tão definido quanto ao resto. A sociedade da informação, das redes sociais, do compartilhamento instantâneo, por um lado, ainda está longe da História. Algo, no entanto, de maneira precária, provisória e experimental tem se criado, esteja ou não à altura das demandas impostas. É claro, a História pode esquecer, mas não perdoa, o que não muda o fato de que há algo em criação e aplicação agora, em matéria de política. Entre esses ativistas dos fins dos tempos, as formas de anarquismo e autonomismo parecem mais divertidas: longe da disciplina socialista, sem aquele sentimento pesado de dever...

Intelectuais e variados tipos de ativistas também se enveredam mais por aí, no fundo, pegando textos dispersos, a esquerda ativa pode até não saber, tampouco admitir, mas concorda cada vez com Bakunin e menos com Marx quanto ao plano de ação. A distância geracional entre os jovens de 16 ou 18 anos com seus pares dez anos mais velhos é, no entanto, enorme: o homem de 2003, por exemplo, é peça de museu. Em outras palavras, via de regra, os estudiosos -- e entenda estudioso aqui como pensador "de Estado", aquele chato que Deleuze e Guattari imaginavam como o cara que escreve em lei transcendente o caos que ele organiza -- não têm boas explicações sobre o que estamos passando porque, simplesmente, não há projeto de atuação política suficientemente forte para se apoderar, ou reapoderar, da disputa de forças posta, na forma como ela está posta.

Cá da parte deste blog, a hipótese traçada parte da leitura da composição de classes sociais. E o social é aquilo que está entre a confusão que se tornou o econômico e o político no mundo moderno. O Brasil mudou, em parte pelas mudanças globais -- e não me refiro à mudanças tecnológicas, mas no próprio uso dessas novas tecnologias -- e pelas transformações internas.  A ascensão selvagem da classe sem nome é o processo anômico de suspensão multitudinária de uma certa ordem tradicional brasileira. Mas ela não é aquilo nem que o PT ou a esquerda clássica desejavam ou esperavam. Tampouco é também o que o velho tradicionalismo brasileiro, que tomou a forma da pós-moderníssima social-democracia-neoliberal, quer. 

As duas linhas mestras, parecem equívocos, ideologias que se tornaram credo até para quem as professa: a primeira, do governismo, de que tudo está bem e sempre esteve, mas que todo o abalo é fruto de uma larga conspiração parece cada vez mais maluca e disparatada, sobretudo quando se vê que os frutos do atual ciclo são renegados; a segunda, que une a direita neoliberal e a esquerda socialista, de que tudo sempre esteve mal, mas ninguém dava conta, não consegue explicar o porquê o atual estado de coisas, sobretudo quando se percebe que o caos reivindicativo não produz, nem na média, nem na moda, qualquer narrativa que se enquadre plenamente no discurso oficial seja do PSDB ou do PSOL.  

A falta de adaptação de esquerdas e direita ao processo se dá, dentre outras coisas, porque uma força política qualquer, mesmo que perceba certas mudanças, nem sempre possui a potência de atuar com elas -- e eu duvido que estejam sequer percebendo o que está em curso, mas suponhamos que não seja esse o caso. Foi Marx o primeiro pensador a formular uma crítica à essa leitura de mundo que mistura explicação e, por assim dizer, wishful thinking, a vontade de que as coisas sejam como se quer que elas sejam, o que ele chamou de "ideologia", mas ironicamente os próprios partidos socialistas estiveram presos na armadilha ideológica: e isso explica parte do fracasso do "socialismo real".  

A direita, pelo menos os setores de direita na fora do aparato político formal, na mídia, é quem tem melhor se adaptado ao novo cenário: a política de captura começa como política de cultural da grande mídia. E a representação da classe sem nome se dá na forma da caricatura, o popular vira populacho. Ironia das ironias, um dos programa responsáveis pela sedução e captura da CsN, o Esquenta, da TV Globo teve um de seus dançarinos morto em mais um ato de abuso policial das doces Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) - e a resposta foi um programa especial de homenagem cheio de sentimentalismos e...absoluto vazio político. Nada de críticas, nada de denúncias, contrastando com a postura indignada e corajosa da mãe da vítima. 

A representação da classe sem nome em caricatura é central para entender o novo Brasil -- e foi alvo de recente artigo de João Telésforo, muito embora sempre vá frisar cá deste cantinho que é bom diferenciar a captura da existência a ser capturada (e da forma como essa existência re-existe nos sem número de levantes plebeus que acontecem agora mesmo pelo Brasil, sobretudo nas favelas cariocas).  Seja como for, o que interessa é que essa representação se dá, grosso modo, em uma mídia de Estado, estabelecida muitas vezes em concessões públicas -- nos casos da televisão e do rádio --  e sempre sustentada por dinheiro público por meio da publicidade estatal.  Essa mídia funciona como doutrinadora da sociedade e como  filtro ideológico dos governos.

Enquanto existe uma crescente desconexão entre o PT e o Brasil que ele ajudou a criar -- o que é "resolvido"com tentativas de domesticação e, até mesmo, repressão militar contra essa magnífica multidão em ações elaboradas pelo, ou com anuência, do executivo federal. A mídia clássica, enquanto brada por um neoliberalismo, vive justamente do setor público e da porta giratória entre este e o setor privado. Setores como o PSDB ou PSB, embora não sejam, na matriz, conservadores, navagem à deriva de conexão com a "sociedade civil" e quando o fazem, aproximam-se do mercado, ou melhor do oligopólio capitalista que ocupa qualquer coisa que possa chamada de mercado. Como do mesmo modo, a esquerda tem uma aliança tática, fugaz, ocasional com a multidão, mas sua força reside em franjas sindicais burocráticas.

Há, é verdade, a questão mal-resolvida da nossa transição democrática, que na falta de disposição real de varrer o "entulho autoritário", acabou por incorpora-lo -- como seu viu, já nos anos 80, no PMDB, o curioso e acidental sujeito político-partidário hegemônico da redemocratização. Não foi a Ditadura Militar que perdoou os torturadores, ele sequer reconheceu qualquer violência para poder perdoa-la, foi o STF da democracia, cuja quase unanimidade dos membros foi escolhida por governos eleitos diretamente e aprovada por um senado na mesma situação, que reconheceu a existência de violações e as anistiou usando-se da expressão vazia dos "crimes conexos". Não diríamos que houve, sequer, uma pacto político estável durante a estadia de Dilma no poder, como diria o mestre Idelber Avelar na sua série sobre o "enigma de Junho" -- na feliz reativação do Biscoito Fino e a Massa -- conforme avaliamos no post deste blog sobre um ano do governo Dilma.

A queda nas pesquisas é natural. A larga vantagem de Dilma é, obviamente, inflada, posto que em nenhuma ocasião das últimas três eleições, o PT, seja com Lula ou com Dilma, conseguiu mais do que 50% dos votos válidos -- calcule então nas atuais circunstâncias --, portanto, o pleito em disputa, apesar de toda histeria a cada movimento, é apertadíssimo e só deve ter uma solução no segundo turno. A vantagem é recall, a vantagem real certamente é menor do que isso, mas nenhuma pesquisa irá calcular isso para trabalhar com a ansiedade da direção petista face às quedas e, assim, negociar uma queda à direita por parte do segundo governo Dilma ou do terceiro governo Lula. 

A genérica leitura de que "tudo depende da economia" pouco quer dizer. Para os não-proprietários sempre há crise econômica -- que pode ser maior ou menor --, para os proprietários raramente isso acontece, mas quando acontece, e só aí, é que se fala em crise. O fato é que a política social-democrata aqui, e em toda parte, fracassou na tentativa de distribuir renda sem modificar a forma de exercício da propriedade: até as pedrinhas da rua sabem, embora nem sempre admitam, que a inflação europeia dos anos 70 era a maneira como o capital tentava anular, na formação dos preços, os ganhos salariais conquistados pelos sindicatos. Não era nada fruto de qualquer mistério ou de alguma lei transcendente que foi violada. Mas a social-democracia, embora pudesse saber, não foi capaz de admitir ou agir em relação a isso. E compactuou, como compactua, com o desmonte do Estado de Bem-Estar Social. As cartas estão na mesa e a situação se tornou mais tensa do que, em uma situação habitual, já tornaria, com a interdição do debate nos últimos quatro anos -- e o que iria acontecer em alguns anos, precipitou. E agora cai uma tempestade.







sexta-feira, 25 de abril de 2014

E Rózà, Luxemburgo, foi às Ruas


Aqui jaz

Rosa Luxemburgo,

judia da Polônia,

vanguarda dos operários alemães,
morta por ordem dos opressores.
Oprimidos,
enterrai vossas desavenças!

Bertold Brecht, Epitáfio de Rosa Luxemburgo


Rózà, espetáculo teatral em cartaz na Casa de Povo, narra a história da revolucionária polonesa Rosa Luxemburgo. O título da peça é assim mesmo, com a grafia original do nome dela, o que desperta um efeito exótico como a música de fundo, em ídiche, do teaser da peça: uma Rosa primeira, uma arqui-Rosa que, no entanto, não é uma Rosa velha, mas uma Rosa atemporal. O ex-ótico é sempre isso, aquilo nos salta ao olhar (usual) e nos faz ver as coisas de um jeito diferente. 

Eu nunca tinha me dado conta da grafia original do nome dela, mas isso desperta a atenção para uma coisa óbvia (e o óbvio é sempre revolucionário, embora nem sempre seja evidente): a Rózà mulher, judia, comunista e polonesa, todo esse seu magnífico -- e privilegiado -- estar-em-minoria não é apenas um adereço, um detalhe biográfico, mas sim o próprio fundamento da Rózà revolucionária. 

Isso ajuda explicar porque Rózà não apenas esteve na esquerda revolucionária, mas também esteve à esquerda. E a sua atualidade, em um momento de tamanha agitação, que suscita, dentre outras coisas, também o pré-guerras, é instantânea. Como se portar diante das manifestações que, enfim, chegaram ao Brasil? Da emergência da questão feminina? De uma escolha necessária de lados face ao racha do blocos de poder mundial? Não é que isso não seja novidade, mas é que não há como não sê-lo, seja em qual época for.

Rózà, assim como os bolsheviks, colocou a questão da Revolução novamente na ordem do dia da esquerda mundial -- quando os social-democratas já ensaiavam uma grande aliança com o Poder -- mas ela, mais do que eles, pensou a questão do pós-Revolução -- e só conseguiu fazê-lo pela sua condição de pensadora, e militante, maldita no sentido que dizemos que Marx foi maldito. Daí o fato dela ser uma personagem histórica formidável. E é essa noção que essa obra transmite bem. 

Tudo na peça transcorre com três Rosas confinadas em um quadrado forrado por plásticos brancos dentro do qual também ficam os espectadores. Elas se intercalam momento a momento, se reunindo apenas quando formam uma banda -- uma banda --, protagonizando uma sucessão de experiência sensoriais: imagens projetadas nas paredes, música, a leitura das cartas -- as várias etapas e momento da vida, Rózà jovem e furiosa, Rózà presa, Rózà solta para depois ser morta. 

Uma vida em meio às massas que foi, a rigor, uma vida solitária -- quando não, na própria solitária. Sons e silêncios, épica e dramática, multidões e solidões giram em uma peça que assume o ponto de vista do feminino, do comum, do perseguido -- e que opção mais feliz do que escolher como palco justo da Casa do Povo, fundada por tantos judeus fugidos e estabelecidos no agitado centro de São Paulo.

Pelo menos duas sacadas merecem atenção no texto: a referência às manifestações atuais e à prisão das Pussy Riot na Rússia de Putin -- justo a mesma Rússia que, hoje, força a esquerda a cair na mesma falácia de "escolher um dos lados". Isso tudo passado na mesma Alemanha na qual o consenso ainda persevera entre as forças políticas, sobretudo no que toca à "austeridade" -- o nome bonito que deram à política de crise, equivalente macroeconômica à política de guerra (civil ou não) daqueles tempos. 

Rózà, pois, é mais atual impossível, sobretudo quando pensada nos termos de uma Rózà-minoria. E as atrizes seguram bem a peça com carinho e afetuosidade, sobretudo no final -- envolto por uma carga dramática densa e potente: Rózà morre e a prisão se desfaz, as paredes são destruídas, mas ela ressurge, literal e metalinguisticamente...nas ruas...


Rózà, Brasil (2014), direção de Martha Kiss Perrone, Joana Levi; Dramaturgia: Martha Kiss Perrone e Roberto Taddei; Instalação Cenográfica: Renato Bolelli Rebouças; Criação Vídeo: Marília Scharlach, Olivia Niculicheff; Direção Musical: Edson Secco; Composição: Edson Secco, Ligiana Costa; Preparação Vocal: Ligiana Costa; elenco: Lowri Evans,  Lúcia Bronstein e Martha Kiss Perrone. Casa do Povo, Rua Três Rio, 252, Bom Retiro, São Paulo-SP. Página da peça no Facebook.

domingo, 20 de abril de 2014

Réquiem para Gabo: A Excedência do Fantástico

Ilustração retirada daqui
"Antonio Pigafetta, um navegante florentino que acompanhou Magalhaes na primeira viagem ao redor do mundo, ao passar pela nossa América meridional escreveu crônica rigorosa que, no entanto, parece uma aventura da imaginação. Contou que havia visto porcos com o umbigo no lombo e uns pássaros sem patas cujas fêmeas usavam as costas dos machos para chocar, e outros como alcatrazes sem língua cujos bicos pareciam uma colher. Contou que havia visto um engendro animal com cabeça e orelhas de mula, corpo de camelo, patas de cervo e relincho de cavalo. Contou que puseram um espelho na frente do primeiro nativo que encontraram na Patagônia e que aquele gigante ensandecido perdeu o uso da razão pelo pavor de sua própria imagem. Este livro breve e fascinante, no qual já se vislumbram os germes de nossos romances de hoje, está longe de ser o testemunho mais assombroso da nossa realidade daqueles tempos. Os cronistas das Índias nos legaram outros, incontáveis (...)"

Gabriel García Márquez, A Solidão da América Latina, trecho inicial do discurso de agradecimento ao Prêmio Nobel de Literatura de 1982.

Faleceu na última quinta-feira, 17 de Abril, o escritor colombiano Gabriel García Márquez, o Gabo, estandarte do realismo fantástico latino-americano. Ele foi autor de obras magníficas como Cem Anos de Solidão e O Amor nos Tempos do Cólera -- o último filmado há poucos anos --, mas sua contribuição foi, sobretudo, sua presença como seu mais intenso personagem; um e mordaz crítico da realidade latino-americana, ativista e combatente que amou sua gente como poucos e lutou com suas armas: a caneta e uma imaginação sem limites.

Gabo foi o quarto latino-americano a conquistar o Nobel de Literatura -- e hoje o número chega a apenas seis nomes dentre os mais de cem já premiados ao redor do mundo:  a chilena Gabriela Mistral (1945), o guatematelco Miguel Ángel Asturias (1967) e o também chileno Pablo Neruda (1971) o antecederam; depois, só o mexicano Octávio Paz (1990) e o peruano Mario Vargas Llosa (2010) foram lembrados. Bobagem hierarquizar o conjunto de uma obra literária pela conquista, ou não, de um Nobel, mas também como não há como negar o peso e a chancela política que o prêmio concede aos seus vencedores, sobretudo quando premia, talvez por acidente, alguém do escopo de Gabo e ainda mais vindo destes confins exóticos da Terra.

Alguns dirão: foi amigo de Fidel e limitou sua enorme capacidade criativa em virtude de um, digamos, apoio ao autoritarismo "só que de esquerda". Mas Gabo não precisa de defesa quanto a isso: assumiu o lado que lhe cabia no seu contexto histórico e, venhamos e convenhamos, não foi o regime cubano o maior responsável por qualquer irresignação diante do analfabetismo nem pela miséria na América Latina, apesar de suas claríssimas limitações -- do mesmo modo que nenhum artista pode ser responsabilizado pelas contingências residuais de posições políticas, determinadas e pontuais, que venham a assumir. No entanto, provavelmente você não lerá por aí que Mario Vargas Llosa é cúmplice da morte de incontáveis pessoas largadas ao relento pelo neoliberalismo, o que mostra o óbvio: não há simetria possível entre as partes envolvidas nessa conversa.

No caso de um escritor que tinha o que dizer como Gabo, digamos que a importância da láurea foi de lhe dar voz para denunciar o mascaramento do conflito social latino-americana -- coisa que ele fez, magistralmente, já no seu discurso de agradecimento à premiação em Estocolmo, o fabuloso A Solidão na América Latina. É certo que Mistral, Asturias e Neruda já o tinham feito com singular habilidade, mas foi Márquez que apanhou a crítica à América Latina e a elevou além dos limites da realidade, mesmo da realidade poética.

Pode parecer uma contradição em termos que o idealizador de Macondo, e tanta coisa fantástica e mágica, também seja, ele mesmo, um dos maiores reivindicadores da verdade histórica de sua terra, mas não é: nada mais surreal e desafiador do que trazer à tona a história da América Latina aos olhos do mundo, pois Gabo sabia muito bem que o real é aquilo que está chancelado pelo, e como, discurso del Rey -- isto é, a verdade da luta e dos oprimidos será sempre realismo fantástico.

Uma América Latina cheia de gentes com cor, cheiro, sensualidade e afetuosidade, na qual "ainda assim, diante da opressão, do saqueio e do abandono, nossa resposta é a vida" é o plano que Gabo registrou; um mundo de pequenas e profundas intensidades, fugazes chamas que apesar de tudo transbordam e se fazem vivas. A literatura de Gabriel García Márquez é a escrita do triunfo do elemento vivaz do comum e do plebeu em meio à guerra permanente de nossa América. Viveu virtuosamente e partiu idoso deixando tantos mundos a se criar a partir do nosso.







domingo, 13 de abril de 2014

Uma Antropologia Americana no Terror às Avessas de Stephen King

Stephen King, autor de umas boas dezenas de livros de terror e suspense, muitos deles reproduzidos com sucesso em outras mídias, como os clássicos O Iluminado, Carrie, Christine, Cemitério Maldito, À Espera de um Milagre, Na Hora da Zona Morta (Dead Zone, tanto no cinema quanto na TV) é um cara que tem o que dizer. Talvez seja um dos últimos ícones pop americanos a ter o que dizer. Seja na sua defesa da cobrança de tributos sobre os mais ricos (inclusive sobre ele mesmo) ou na sua crítica à venda desenfreada de armas de fogo em seu país. Mas o que interessa realmente é a sua obra e o que ela diz.

King, por dentro e contra, subverteu o típico romance de terror americano e tirou dele o seu melhor. Muitas de suas obras assustam mesmo. Agora, a novidade de King é ter, massiva e intensamente, brincado com o ponto de vista do paranoico: olhando a partir dele, de seus temores, ele apresenta um mundo no qual a ameaça e as contradições internas dão origem ao Mal -- que não vem "de fora", mas  já está "dentro". 

O Iluminado: papel icônico de Jack Nicholson
A genealogia do terror americano aponta para um aspecto importante da fundação do país, a tradição da agressão vinda da ameaça externa, do outsider como o inimigo perpétuo: não só aquilo que é externo ao país, mas externo à comunidade, à vizinhança. Olhado do ponto de vista do forasteiro, da minoria, isso é pura paranoia, indiferença e intolerância, mas do ponto de vista da comunidade sob o regime do pavor que se protege, se imuniza se fechando é diferente: de fato, o inesperado, o diferente e a novidade dão medo, horror real e profundo que corrói a alma. King não assume o ponto de vista nem de um, nem de outro, mas subversivamente assume que o medo do paranoico pode ter explicação para, daí, o desconstruir.

Martin Sheen em Dead Zone
O político conservador e oportunista em Dead Zone (foto), os alunos populares em Carrie ou, de maneira mais explícita impossível, o racismo e o sistema prisional americano em À Espera de Um Milagre -- imortalizada pelas atuações brilhantes de Michael Clark Duncan e Tom Hanks -- constituem em alguns exemplos dessa subversão. Do mesmo modo que em o Iluminado e em Cemitério Maldito (Pet Sematery) não é quem vem de fora que traz o Mal, mas sim que o Mal já está lá, incutido no ambiente doméstico e fechado, nas suas contradições convenientemente abafadas e escondidas.


Se a literatura de terror de King, até  hoje, não caminhou para a vertigem fóbica segundo a qual tudo se passa à sombra de um terror(ismo) exterior, onipresente e transcendente -- a exemplo do que aconteceu com um Frank Miller, para ficar na cultura pop -- é justamente porque ele sabe que a causa do medo é interior e imanente: não há porque invocar ameaças externas, sendo  que, a priori, as ameaças estão nas contradições internas, nossas e da nossa comunidade.  

Se é de paixões tristes que se faz o poder, a incorporação delas e sua subversão talvez seja o melhor remédio. King nos faz sentir medo, mas seu medo nos desperta para um mal que está no lado no normal, do homem e das pessoas "de bem". Com o mundo global calcado cada vez mais na forma na (bio)política do terrorismo, sob a sombra da lógica da caça às bruxas -- tão comum nos EUA do século 17º, no marcatismo dos anos 50, na guerra ao terror e, também, no nosso e tão nosso culto ao punitivismo e na nossa cultura de linchamento --, as pequenas operas trágicas de King, no susto, nos fazem refletir que o problema não é o Outro.



domingo, 6 de abril de 2014

50 Anos do Golpe Militar: A nossa República é um Monstro sem Cabeça



Texto meu publicado para o dossiê da Uninomade sobre o Golpe de 1964.

Primeiro de Abril de 2014: Cinquenta anos de Golpe Militar e tanto a pensar. Existem dois discursos predominantes, e antagônicos, sobre a ditadura cujo marco inicial (um golpe!) ora completa o cinquentenário: (1) a ditadura acabou e, em seu lugar, sobreveio um ciclo democrático absoluto que, apesar dos seus defeitos, conseguiu colocar um termo no nosso histórico de autoritarismo -- e tudo o que não é democrático ou é herança não resolvida da ditadura ou, possivelmente, algum tipo erro; (2) a ditadura jamais terminou realmente, portanto, vivemos, na verdade, uma farsa democrática, um estado de exceção sofisticado em plena operação.

É natural que a elite política brasileira -- incluso aí os três últimos presidentes da república --, a qual ascendeu na luta contra a ditadura, tenha uma visão edulcorada sobre o processo de redemocratização. Do outro lado, muitos intelectuais de esquerda creem que o sistema incorporou esse entulho autoritário à sua essência (ou já o trouxe incorporado) e/ou que os supostos acidentes e erros seriam uma constância caracterizadora do regime atual -- a normalidade de exceção, exposta na ainda persistência de uma polícia militarizada e integrada à estrutura das Forças Armadas,  a existência de uma Justiça Militar com jurisdição sobre civis em época de paz, a política desenvolvimentista implacável contra as minorias, a força de inúmeros políticos ligados à ditadura etc.

Poderíamos citar também a extrema-direita saudosa do regime militar, a qual vê no sistema atual apenas corrupção e degradação. Seria um “exagero” ou um “excesso” democrático. Mas, a rigor, isso é apenas uma forma de ver e praticar a primeira leitura -- isto é, o reconhecimento da existência de uma democracia plena, só que do ponto de vista de quem a odeia. A importância dessa peculiar forma de ver as coisas, na verdade, só tem importância para desconstruir o segundo discurso: por que justo os defensores da ditadura não veem continuidade alguma entre o regime militar e esta democracia, a ponto de fazerem marchas, escreverem blogs, atacarem os direitos humanos? Se justo eles reivindicam a volta da ditadura é porque há controvérsias quanto a continuidade linear de ambos os regimes.

É claro que isso poderia ser questionado: de repente, os setores golpistas e pró-ditadura preferem, hoje, a estratégia de estar nos bastidores de uma democracia de enfeite, ao contrário de uma extrema-direita alucinada. O ardil seria dissular dentro da ordem atual e corroê-la por dentro.  Há problemas, pois, de todo modo, se dispositivos de dominação originários da ditadura ainda existem, e operam, nem por isso eles operam da mesma forma -- tampouco esses democratas de ocasião não são obrigados a aceitar uma série de políticas que, olhando bem, eram impossíveis na ditadura e eles próprios não concordam.

Tanto o discurso da desconexão absoluta quanto o da continuidade razoavelmente linear da ditadura e da democracia são, pois, meras expressões da interesses subjetivos no mundo da política e da academia. Eles são menos até do que “ideologia”. E não é questão de afirmar um objetivismo qualquer, mas há uma diferença entre um discurso com rigor conceitual e wishful thinking. Em outras palavras, seria mais próximo da verdade falar em um grande pontilhado entre uma coisa e outra, com a localização dos dois processos dentro de um mesmo plano: se os cortes históricos têm clara relação, vejamos nós, com mudanças de forma de entender o tempo, talvez o único corte desse gênero seja muito anterior ao golpe de 1964, lá atrás, com a proclamação da República.

O tempo republicano era o da pressa e do sobressalto. Ao contrário do tempo da colônia e do império, uma paradoxal encontro entre uma monarquia europeia pré-industrial e a temporalidade dos índios e dos negros, agora a ordem era a insana marcha para o futuro. Não  à toa, do início da República até os dias atuais, a ideia de que o Brasil deveria se converter numa civilização “desenvolvida” o mais rápido possível -- e a qualquer custo -- resultou em períodos autoritários voltados a “desentravar” o programa assumido naquele instante: a bem da verdade, já na esteira do golpe de 1989, tivemos a república da espada -- de uma sanguinolência pouco lembrada --, a ditadura Vargas e, depois a ditadura militar.  No meio disso, períodos de regularidade institucional, a república velha, a primeira democracia e a atual democracia, nas quais o grau de abertura do regime variou conforme o êxito da luta política.

Sim, houve violência de Estado também no período de regularidade: durante a república velha, a primeira democracia e a atual, houve a mesmíssima marcha, com suas habituais vítimas, mas o modo de operação era oculto, à sombra da face pública e gloriosa da política, levada a banho-maria e, ainda, baseado em intervenções específicas e muito bem localizadas -- como, por exemplo, na guerra do Contestado (1912-1916). As ditaduras, sobretudo, a ditadura militar foram, pois, momentos extremos na qual as vilanias passam a ser realizadas pelo próprio senhor da casa, no máximo como segredo público -- ameaçando a todos de forma total.

A violência específica da ditadura militar residiu no fato de que, pela primeira vez, o movimento emancipatório conta com um fortíssimo devir-minoritário: até os segmentos da elite que se empenharam radicalmente na luta polítca estavam de tal forma enquanto minorias que, vejamos só, acabaram se tornando tão matáveis quanto os trabalhadores, negros, índios etc. Se a luta era comum, a repressão era total. Essa perspectiva de que não havia segurança no combate contra a ditadura, que ela estaria disposta a tudo, foi algo certamente inédito na nossa história, na qual mesmo nos piores momentos da ditadura Vargas ou do início da República, determinadas pessoas, feliz ou infelizmente, estariam a salvo.

Sim, qualquer Estado mantém, em latência, a possibilidade aplicar a exceção soberana e suspender garantias e direitos. Não é que ele deva, mas ele pode. Essa possibilidade de suspender o direito, no caso brasileiro, se dá pela dinâmica exploratória do “progresso” na forma como esta foi concebida no final do século 19º. Queremos um modelo de civilização impossível e nos tornamos uma caricatura tropical dos países europeus. Longe de maiores monarquismos, o fato é que, simbolicamente, o rei caiu, mas a nova ordem é uma monarquia sem rei: assim, as máscaras são a única face possível para um monstro sem cabeça, um monstro chamado República.

A relação entre ditadura militar e democracia não é imediata entre elas, mas entre as duas no sentido em que se situam no plano da tradição republicana brasileira. Sim, é possível que ocorra um novo golpe, mas a institucionalidade republicana pode muito bem, com os novos mecanismos de dominação biopolíticos, dispensa-lo. O controle territorial das favelas cariocas está sendo possível dessa forma: olhemos para o caso da presente ação dos fuzileiros navais, munidos de mandado de busca e apreensão coletivo expedido pela Justiça Militar, no Complexo da Maré, no Rio. Se essa tecnologia de poder falhar, por que não uma tecnocracia empresarial, judicial ou novamente militar? Tudo é possível.

No plano da lei, vivemos entre a exceção como regra e regra excedida. O problema do monstro, naturalmente, não é seu acefalismo, mas sim a insistência em ter uma cabeça novamente. E ela a encontra em toda parte, na política ainda semi-despótica ou no próprio capital. Na falta disso surgem as máscaras e a necessidade de deter o monopólio das mesmas.

Portanto, o tal Estado de Direito Democrático é, tanto mais, a resultante prática da Democracia contra o Estado. A democracia formal não quer dizer absolutamente nada. Muito, de fato, foi conquistado nos últimos anos, mas tudo isso se deu por fora e contra o Estado, no máximo, taticamente por dentro dele. Se o Estado é sempre uma máquina implacável, o republicanismo brasileiro só acirra isso.



Nada disso torna a análise de 1964 menos importante. Mesmo que estejamos falando de uma violência que excedeu a ditadura militar -- tanto no seu antes quanto no seu depois --, o golpe de 1º de Abril é o momento temporal e o local chave da luta brasileira no seu modo mais puro e evidente. Celebremos os nossos mártires partindo para o combate.

quinta-feira, 27 de março de 2014

São Paulo entre Adoniran e Maluf

Isso era São Paulo

A foto acima tem circulado pelas redes sociais e ilustra um artigo do Marcelo Rubens Paiva. A ilustração corresponde à São Paulo antiga, mais precisamente a uma parte do Centro que hoje é soterrada pelo famigerado "Minhocão", o elevado Costa e Silva. Embora eu pudesse começar pelo absurdo que é o nome do elevado ser uma homenagem a um dos ditadores militares brasileiros, o primeiro general da linha-dura, a verdade é que a obra faz jus ao nome que tem: nem seria o caso de mudar o nome do Minhocão, mas de implodi-lo mesmo só pelo desastre urbanístico que é -- e é justamente isso que o Marcelo propõe no seu artigo.



Para quem não conhece São Paulo, o elevado em questão liga à zona oeste próxima, a Barra Funda, ao Centro, passando por cima disso que vocês estão vendo. O artífice da obra, o ex-prefeito Paulo Maluf, sempre frisou a necessidade da obra: como chegaríamos ao Centro sem ele? A questão, no entanto, sempre foram outras duas: (1) qual Centro? e (2) quem chegaria, cara-pálida? Pois bem, a primeira se explica pela brutal degradação da zona central paulistana, cujo marco inicial foi justamente o elevado pela maneira como ele destruiu a cinelândia local; a outra é também muito mais simples, o "quem chegaria" são os proprietários de automóveis particulares. 

A submissão de São Paulo ao cinza do concreto e ao automóvel no lugar das grandes alamedas e do paisagismo foi o início do fim da Pauliceia. A questão é  que você não constrói uma cidade a partir do carro. São Paulo é péssima para moradores, pedestres, ciclistas, animais e plantas justamente por conta disso -- e objetivamente é pior para os próprios motoristas, mas dentro desse esquema, obviamente eles não percebem o problema, ou só sua exterioridade, o trânsito, o caos dos semáforos etc. O carrocentrismo malufista não construiu uma porcaria de cidade por si só, mas sim um absurdo urbano que é, também, um absurdo social, afetivo, ambiental e assim por diante. 

Interessante é o contraste disso com uma outra São Paulo, que ainda existe um pouco, a São Paulo  que ainda tinha garoa, samba e a figura de um tipo particular de malandro: estético como um italiano, lúdico como um brasileiro. Era o Adoniran Barbosa. O cara que mandava o progresso do Getúlio às favas. Uma espécie de pessoa capaz de desprezar o trabalho, por mais que estivesse na capital do discurso da dignificação via labor. Aquela coisa das cantinas do Bixiga, da Mooca, do samba no Brás, das gentes brancas e mestiças que conviviam mais com os povos dos antigos quilombos urbanos de São Paulo do que com os quatrocentões.

De uns tempos para cá, ou desde Maluf, a única coisa que escapou à destruição desse típico malandro paulistano -- uma destruição que só pode começar  pelo seu habitat -- foi em parte a Rua Augusta -- na parte do Centro -- e, talvez, a Vila Madalena. Isso até a gentrificação, que na Augusta começou tem poucos anos e que na Vila vem dos anos 90, subindo de Pinheiros. A Augusta, aliás, só foi "diferente" no momento em que esteve "abandonada", até ser retomada há pouco pela especulação imobiliária: e a questão não é o moralista, o "que bom que a prostituição está saindo da Augusta", porque, na real, a prostituição saiu de lá para os discretos flats, nos quais a exploração feminina pode ser bem maior, justamente por ser mais invisível.  Na Vila, apenas chegou aquilo que vinha de Pinheiros, capturando o ar autêntico  e genuíno do bairro, enlatando-o e pasteurizando -- enquanto os aluguéis sobem, eliminando lugares legais e expulsando os pobres.

A coisa, é óbvio, não é o Maluf pessoa, mas o Maluf histórico e político, responsável por dar vazão a um projeto nefasto desde muito. A verdade é que, por ora, Maluf venceu, ou venceu politicamente: a rigor, ele conseguiu fazer o que quis e isso prevaleceu por inércia, embora algumas medidas que contradigam sua lógica tenham sido tomadas em determinados momentos. Mas no interior do seu ser, São Paulo permanece malufista. Quem defende uma outra São Paulo, como a esquerda que ocupa e já ocupou a Prefeitura algumas outras vezes, só conseguirá mudar isso no momento em que entender que a saída para essa desgraça está, vejam só, mais na jinga de um Adoniran do que na dureza germânica dos escritos frankfurtianos.


quarta-feira, 26 de março de 2014

A Grande Beleza: O Vazio e a Cosmética do Pós-Moderno

Por Hugo Albuquerque e Isabella Eid,

Vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro, o italiano A Grande Beleza de Paolo Sorrentino (2013) é um belo, vibrante e inquietante espetáculo estético que lança questões importantes sobre a pós-modernidade e a Europa atual – além de apresentar algumas respostas que, antes de tudo, merecem ser entendidas. O protagonista, Jap Gambardella (Toni Servillo), é um escritor sexagenário, uma versão dândi do homem (pós-)moderno: um eu central que é fio de ligação para inúmeros retalhos de memórias, circunstâncias e sensações em um mundo no qual o vácuo e o nada se tornam dolorosamente presentes; autor de apenas uma única – e aclamada – obra publicada há décadas, ele está sempre confrontado com o fato de não ter escrito mais nada, enquanto promove festas de arromba, ajuda amigos falidos e trabalha como jornalista cultural.

A Grande Beleza traz a carga dramática, um ar de decadência elegante que é, certamente, uma das formas de se enxergar o momento europeu. É a decadência vista de dentro, não do continente, mas do ponto de vista do europeísmo na forma em que ele tomou no “fim da História”. Se a História acabou e não chegamos à utopia, é certo que o futuro faliu “conosco” dentro. E o “conosco” certamente se refere aos europeus, rifados neste mundo cheio de turistas asiáticos, consumidores árabes muçulmanos e assim por diante – que aparecem às revoadas em cenas específicas. É possível sentir um fundo melancólico, comum a outras obras recentes como Um Castelo na Itália de Valéria Bruni Tedeschi, também de 2013 – a Europa não mais se pertence, a desterritorialização promovida pela globalização arrancou o solo histórico europeu.

Mas antes de qualquer julgamento, ou acima de qualquer tentativa de julgar, é preciso entender. E a persona de Jap, desenhada por Sorrentino, ainda que acuse o estado da arte do paradigma [de supremacia] europeu é uma entidade trágica – o que torna a película trágica, mas não pelos motivos que o autor dela talvez desejasse. Não é a tragédia da cultura e da civilização europeia face à invasão dos bárbaros, da passagem do tempo em que a doce foi a vida – quando Jep e uma de suas musas passa do lado da Fontana de Trevi, um marco óbvio de Roma e do cinema italiano – , mas a da própria condição trágica em si de estar nessa situação, precisando apelar, talvez inconscientemente para esse recurso, para essa muleta.

Há, contudo, algo de relevante quando o filme escapa à Europa, e que interessa, quando ele aporta no pós-moderno em si. E aí, ele passa a interessar mais nas linhas do que nas entrelinhas. É a bem desenhada expressão do kitsch pós-moderno, feito de baladas tecno, da miscelânea estética pronta à “surpreender” – tanto que resta absolutamente previsível –, do torpor. E aí poucos filmes foram tão bem-sucedidos na exposição estética dessas formas. É difícil sair do cinema sem a sensação de termos nos dado conta do óbvio; antes de dar a pensar, algo se faz sentir, mas é possível criar experiências que estejam no sensível em um grau maior: e aqui, depois de se deparar com as festas incrivelmente animadas e vazias, da alegria triste do nosso tempo, é impossível não se dar conta de quantas situações parecidas não vemos em qualquer parte: festas de formatura, baladas, carnavais. Pura casca sem conteúdo.

Difícil não lembrar também de uma obra como O Homem sem Conteúdo, de Giorgio Agamben, que já no início dos anos 1970, dissecando “a estética moderna” já antevia o aprofundamento de uma produção artística desprovida de carne, um objeto morto produzido pela subjetividade absolutamente livre de “um artista”. É certo que Agamben talvez entenda a estética com uma cosmética, mas superado esse ponto, é exatamente essa sensação que se tem quando nos deparamos, nessa película, com o vazio aleatório da performance de um artista que, nua, choca sua cabeça contra as paredes de uma ruína.

Enquanto isso, Jap se vê engolfado pela presença de presenças femininas fortes; uma recém-falecida ex-namorada, que sempre o amou -- apesar dele só ter descoberto isso após a morte dela -- torna-se objeto constante de suas lembranças; a filha de um amigo (Sabrina Ferilli) que se dedica a ser stripper de luxo e a quem este lhe confia os “cuidados”; uma velha conhecida de círculo intelectual que lhe desafia por sua inércia artística.

Em duas cenas, temos um complemento interessante: a editora de Jep, uma simpática anã, lhe serve uma sopa quando lhe trata pelo diminutivo; indagada do porquê daquilo, ela responde sobre a importância dos amigos fazerem uns aos outros se sentirem crianças novamente; no outro flanco, quando depois de uma de suas festas, Jep confessa que não escreveu mais nada porque “nem Flaubert foi capaz de escrever sobre o Nada”. O devir-criança e um pessimismo niilista aparecem lado a lado no paradoxo constitutivo de uma Europa, uma Itália e um tempo na encruzilhada.

No fim, aparecem um pomposo cardeal papável e uma centenária missionária considerada “santa”, os quais trazem o filme para a zona das respostas, ou da tentativa de fazê-las; e elas apontam, de um lado, para crítica à decadência da Igreja pelo abandono da espiritualidade em detrimento da glória mundana na figura do cardeal e, por outro lado, para o valor da espiritualidade “verdadeira” na forma de uma volta às “raízes” – que é a única coisa que a velha monja diz comer, justamente por “saber da sua importância”.

Cabe apontar, quanto a esta aura tradicionalista que envolve a zona de respostas do filme, que a estética do homem, enquanto maioria, é vítima do retorno do Mesmo. Explica-se: O ser do homem médio racional, desapegado de qualquer elaboração cultural, ou de qualquer manifestação sensível, equivale ao espírito majoritário que norteia, também, o homem pós-moderno – flashs, luxúria, música alta, luzes, dinheiro, dinheiro!  --, ambos possuem um liame secreto e mais potente do que parece.

Se seguíssemos essa lógica cíclica, não seria impossível antever a sucessão de uma sociedade voltada a preservação da tradição, da família e da religião, a tendência à estrutura simples ou à ilusão da pulsão de morte como resposta ao exaurimento hedonista -- exaurimento este como uma das possibilidades do Moderno.

O filme aponta  para esta reação como uma saída, mas não deixa de mostrar outro aspecto: o retorno da humanidade, da paixão, do sensível. Se analisarmos a escola romântica, verificamos que esta representou uma volta de valores tradicionais e medievalistas -- o herói burguês perfeito, forte, lindo e corajoso e honesto -- mas também, paradoxalmente, da paixão e do singelo. E isso, apesar dos pesares, isso se aplica aqui, ao mesmo tempo em que ele se fecha, também se abre a algo pré-moderno que resiste ao pós-moderno -- e mesmo decidindo pela captura no final, a questão é que aqui é deixado um em-aberto que tem lá sua potência.

No fim, no entanto, não há como sublinhar a conclusão definitiva: em um mundo vazio, nos quais as certezas, incontestavelmente, se chocaram no rochedo, a resposta final seria a religião, a tradição e a privação como âncora necessária – algo capcioso, sobretudo em um momento no qual um Putin reconstrói a Rússia justamente calcado nesses valores, isto é,  se apresentando como condutor de um reduto conservador face a um mundo em caos. Se é isso que nos resta nessa ida para o futuro, o que será de nós? Como ser felizes se a solução ao alcance seria, apenas e tão somente, um refúgio interior e deslocado no passado? 


sexta-feira, 21 de março de 2014

Claudia tinha um Nome...e não Merecia (ser arrastada por um camburão até) Morrer

Imagem daqui
Arrastar. É uma ideia comum no nosso falar. Nós nos indignamos só de pensar em "arrastões". Mas o que dizer de nós, a sociedade brasileira, esta maravilha coletiva -- que ou apóia ou não se indigna o suficiente com a violência de Estado -- diante de uma vítima de uma brutalidade sui generis que envolve o "arrastar", só que em uma situação inversa: Cláudia Silva Ferreira -- negra, mulher, mãe, tia, amiga, pobre, vizinha, um ser humano -- foi arrastada no asfalto por uma viatura policial em movimento, que a "socorria", depois de ter sido baleada em (mais) uma ação desastrosa da mesma polícia. 

Há várias nuances. Como as novas maneiras de usar as tecnologias tira absurdos como esse da invisibilidade seria uma delas, o caso foi documentado em um vídeo feito pelo celular de um motorista, mas o buraco é mais embaixo. Importa aí a maneira como a sociedade brasileira parece tentar eximir os policiais, a novilíngua da mídia "livre" que trata Cláudia como a "mulher arrastada" ou, até mesmo, a denúncia voluntarista de parte da esquerda -- que num impulso trabalhista -- lembra que Cláudia era "trabalhadora" e não merecia isso -- mesmo inconscientemente, dizer isso é como dizer que quem trabalha poderia morrer, ou seria mais matável, menos digna de proteção.

A meu ver, a questão central, o nó górdio dessa conversa, é precisamente o nome. E eu tenho me debruçado sobre a questão há algum tempo. A invisibilidade, o grunhido do pelotão de linchamento, a retórica da mídia, o trabalhismo, tudo isso precisa, no calor dos fatos, iniciar seu discurso com uma âncora, o nome. E Cláudia, um ser humano multifacetado e bem real, perde assim o esplendor da sua diferença em relação ao mundo para, de repente, ser reduzida a um nome genérico, homogenizador: a vítima dos policiais bonzinhos -- a baixa "colateral" --, a "arrastada", a trabalhadora são reduções que visam sujeitar a complexidade de uma humana às regras de um discurso de poder.

A aparente ausência de um nome específico não equivale ao anonimato. A condenação a pertencer a um "nome genérico", um nome de apropriação, é da ordem do Poder, ou melhor, é a pedra de toque do Poder: e tudo vira número em uma estatística ou uma figura, um modelo. Tudo perde a carne. O Poder foge à regra -- porque ele faz as regras -- sempre que ameaçado, eis que ele busca a carne -- a qual negligencia, mas sabe muito bem que existe -- e se suas vítimas nunca têm nome próprio, os seus inimigos possuem -- ou devem possuir -- nome, rosto, RG, CPF, tipo sanguíneo.

Não causa espanto, a bem da verdade, que grande parte do discurso antagônico ao sistema, em certa medida, aqui, ali ou bem longe daqui, capitule à mesma lógica dos seus algozes. Possuem a mesma lógica interna o discurso da mulher trabalhadora -- que não merecia morrer por isso e por isso -- e o do protesto que "não teve trabalhador" e que, por tabela, merece ser desqualificado: isso alude a uma ideia utilitarista, para a qual tudo é traduzido numa linguagem de hierarquias escalonada conforme a [suposta] importância para a produção. O produtivismo como chave de explicação do porquê as esquerdas mundiais, em grande medida, preferem caiar a senzala (pós-moderna) a libera-la.

O confronto em questão, do qual Cláudia foi uma baixa bastante incidental, é parte da guerra não declarada contra as minorias, os diferentes, da sociedade global. Repercute aqui, ali em todo canto. Mas se discutir política exige, antes de tudo, fugir da discussão sobre quem tem culpa no cartório, é preciso enxergar, para além do mal, que nós que falamos, falamos muito e fazemos pouco ou quase nada. 






quarta-feira, 19 de março de 2014

Crimeia e Rússia: Liberdade ou Anexação?

Conferência de Yalta: Churchill, Roosevelt e Stalin, os líderes aliados
A Crimeia é um dos centros de equilíbrio das rússias. Agora, com o referendo que a retirou do controle da Ucrânia e a tornou parte da Federação Russa, ela é destaque dos noticiários globais. Ou melhor, reapareceu no centro do jogo geopolítico mundial. Não nos esqueçamos que foi lá onde ocorreu a famosa derrota russa para as forças ocidentais, com o apoio turco, na guerra que definiu a sorte do Império tsarista em meados do século 19º: a derrota em Sebastopol, e a consequente redução do país a uma potência secundária no plano internacional, foi a pedra de toque para os eventos que culminaram na efervescência política e social que desaguou na Revolução Russa -- a submissão aos ditâmes do capitalismo industrial franco-britânico, o fim da servidão feudal para a proletarização dos ex-servos e o resto da história, bem, todos conhecemos. Ainda, na Segunda Guerra, na cidade de Yalta, localizada na península, foi realizada a famosa conferência  que contou com as maiores lideranças dos aliados: Churchill, Roosevelt e Stalin, na discussão sobre os espólios da guerra.

Conquistada pelos russos nos fins do século 18º, a península com litoral tanto para o pequeno Mar de Azov quanto para o Mar Negro, é área estratégica para a marinha russa, seja no que envolve o acesso a águas quentes ou no que diz respeito à eventual atuação no Mar Mediterrâneo. Em 1954, quando o líder sovietico Nikita Khrushchiov passou, por decreto, seu controle para a então R.S.S. da Ucrânia, não houve maiores problemas para Moscou -- até o desmembramento da União Soviética, quando o Kremlin manteve a base naval e o controle de facto de uma região que, formalmente, era ucraniana. 

A Crimeia é habitada desde tempos remotos, tendo passado pelo controle de cimérios, citas, gregos, venezianos, mongóis, turcos, tártaros, russos e tantos outros povos. O que poderia ser chamado de povo autóctone de sua pequena população de dois milhões de habitantes são tártaros da Crimeia, os quais são minoritários -- quase 60% dos locais são russos étnicos, em geral resultado de migrações planejadas no período soviético. Aliás, os tártaros locais foram acusados de colaboração com os nazistas na guerra, o que lhes valeu uma deportação interna -- a exemplo do que se passou com os chechenos por outras razões --, em um processo que só foi interrompido nos anos 1960 e, por fim, revertido com a Perestroika -- o chamado Surgun

Sob a liderança de Mustafá Dzemilev, os tártaros da Crimeia apoiaram fortemente Viktor Yanukovich nas últimas eleições presidenciais (2010). Entre os russos étnicos, nem se fala. Em uma eleição profundamente acirrada, na qual as graves divisões regionais já se faziam sentir, a Crimeia só forneceu menos votos para o ex-presidente, pró-Rússia, do que regiões como Donetsk e Lugansk: no total quase 80% dos votos da Crimeia no segundo turno, enquanto nas duas outras regiões esse número chegou à casa dos 90%. E, agora, com a derrubada do governo pró-russo em Kiev, e a realização de um referendo fortemente apoiado pela máquina de propaganda do Kremlin, não é espantoso que mais de 95% dos votos tenham sido favoráveis à "passagem" da região para a Federação Russa enquanto "República Autônoma".

2010: Quanto mais para Leste-Oeste, mais  partidário de um lado ficava o eleitor
Se nas eleições de 2010, a divisão do país expressa no mapa eleitoral já era escandalosa -- com Tymoshenko e Yanukovich tendo os votos quase absolutos de, respectivamente, Oeste e Leste --, por outro lado, ainda havia um grau mínimo de legitimidade para o governo eleito -- fosse qual fosse, certamente não haveria um consenso sólido, o que não equivalia, contudo, ao desmembramento do país. O fracasso objetivo do governo Yanukovich levou, no entanto, à erosão dessa frágil unidade nacional. E esse fracasso veio não só com os resultados sociais e econômicos insatisfatórios (a economia do país registra o terceiro ano de estagnação depois do baque de 2009), as óbvias e vergonhosas concessões feitas a Moscou, mas, sobretudo, com o resultado da repressão às manifestações favoráveis à aproximação do país com a União Europeia -- o que certamente foi mais relevante, em termos da derrubada de Yanukovich, do que a querela pró ou contra adesão à Europa.

De todo modo, se mesmo no século 19º, a velha geopolítica explicava muito mal o processo em curso, no século 21º menos ainda. Os imperialismos variados só podem ser considerados como arcaísmos, como máquinas de escrever, que se ainda existem, devem sua existência a condições específicas que demandam certa consistência. No caso, existe os interesses do bloco de poder burocrático do departamento de Estado americano de um lado, os euroburocratas no meio e o putinismo em curso. Não que o Império Global, com a profunda interconexão de fluxos de capital possa tolerar uma guerra efetiva. Quem está separado, ainda, são as pessoas comuns na Rússia, Ucrânia, Europa ou nos Estados Unidos, não suas respectivas elites políticas e, tampouco, suas elites econômicas.

Apesar da Crimeia, nesse contexto, parecer a vitória do Kremlin, ao contrário, ela retrata o fracasso do projeto de liderança regional elaborado por Putin, onde os membros da antiga União Soviética funcionariam, ainda, como satélites. A própria Ucrânia, mesmo antes da Revolução Laranja (2004), jamais ratificou o tratado da Comunidade dos Estados Independentes (CEI), a forma pela qual Moscou pretendia manter essa influência. Os países bálticos jamais fizeram parte do arranjo. Yeltsin ou Putin não conseguiram elaborar um sistema de poder que, de um lado, fornecesse algum bem-estar ilusório ou, mesmo, no pior sentido, criasse redes funcionais de oligarquias regionais. O Kremlin foi incompetente no bom e no mal sentido de se criar uma zona de influência.

Nesse sentido, do mesmo modo que na guerra vencida pela Rússia contra Geórgia em 2008, a vitória militar pontual não resultou na volta do ex-satélite ao controle do Kremlin, mas na criação de "repúblicas autônomas" controladas pela Federação Russa -- no caso da Geórgia, a Abkhazia e a Ossétia do Sul, no da Ucrânia, por ora, a Crimeia -- que se tornam enclaves militares. Não que o "ocidente", ou seja, a parte do arranjo imperial talvez majoritária, consiga prover, do outro lado, o bem-estar dessas populações -- vide que os líderes da Revolução Laranja, certamente um movimento "menos espontâneo" do que este, foram deixados a ver navios por Washington e Bruxelas em momentos dificílimos, sobretudo quando da eclosão da presente crise mundial -- a Ucrânia não se recuperou até hoje da queda de quase 15% do PIB em 2009, fato talvez decisivo para a ala pró-Moscou ter voltado ao poder, muito embora ela também não tenha dado um jeito na confusão.

O fato ocorrido na Crimeia, no entanto, não pode ser interpretado como "anexação" -- termo  popularizado pela máquina de propaganda nazista para, assim, justificar sua política expansionista na Europa dos anos 30 --, do mesmo modo que o levante pró-UE na Ucrânia não  foi uma conspiração gigantesca, mas antes de tudo, uma expressão de inconformismo contra uma situação econômica e social realmente ruim, além da vontade de autonomia dos ucranianos -- e ainda que haja manipulações para cá ou para lá, é fato que, antes de tudo, é preciso ter matéria-prima para tanto, isto é, muita gente insatisfeita, o que era precisamente o caso.

A solução para o caos da região pós-soviética está longe de ser alcançado. Mas ainda que uma dose de afirmação de diferenças culturais seja bom, pelo menos como antídoto, é preciso a conexão das forças democráticas de canto a canto nas rússias. Uma tarefa difícil que exige, afinal de contas, o desmonte da estrutura burocrática criada pelo stalinismo que tanto Putin quanto  seus aliados, e até adversários, na região ainda se usam -- ainda mais onde isso gera um efeito de "estabilidade" como na Bielorrússia.  Os nacionalismos de canto a canto -- e o nacionalismo ucraniano, em suas facções extremistas, restou fortalecido só no momento em que o cerco putinista se desenhou -- apenas dividem aquilo que precisa estar unido (de verdade).