quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Comissão da Verdade e um Problema para Além do Direito

A Câmara dos Deputados Federais aprovou ontem o Projeto de Lei que instaura a Comissão Nacional da Verdade para esclarecer os crimes cometidos no período de 1946 a 1964. Agora, ele segue para aprovação no Senado. A proposta já se encontrava no polêmico Terceiro Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), tomou a forma do PL 7376/10 e sua aprovação é compromisso de campanha da Presidenta Dilma - apesar das estranhas (ou nem tanto) hesitações ao longo deste ano (como comentado aqui e aqui).

Basicamente, uma comissão composta por sete membros indicados pela Presidenta se destinará a, no prazo de dois anos posteriores à aprovação do PL (o que é bastante provável que ocorra), "examinar e esclarecer" o que houve no (inexplicavelmente) largo período de 1946 até 1988. A Comissão Nacional da Verdade não se voltará a fins judiciais, embora possa punir os militares convocados que se negarem a prestar informações. Ao fim dos trabalhos, deverá a comissão apresentação um relatório de suas atividades.

Falar da importância da existência de tal Comissão é desnecessário, não é de ontem que estamos falando, mas sim de hoje, de uma estrutura social "democrática" construída em cima de uma mal-explicada e obscura transição "pacífica" do regime militar para o regime atual. 

O recente e obtuso (de parte a parte) julgamento do STF que declarou a constitucionalidade da Lei de Anistia, deixou escapar o óbvio: mesmo aquela lei, uma anistia curta, específica e restrita, não anistiou "crimes de sangue" - e, por óbvio, fazia referência aos resistentes armados contra a ditadura e não aos seus agentes -, mas a ausência de investigação  e julgamento de crimes bárbaros cometidos pelos agentes do regime como homicídios, torturas e estupros os fez, a um primeiro olhar, prescrever - como apontou o Professor Túlio Vianna há dois anos.

No sistema constitucional brasileiro atual, os únicos crimes imprescritíveis são o racismo (art. 5º, XLII) e  a "ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático" (art. 5º, XLIV). Os tratados e acordos que o Brasil assinou sobre a imprescritibilidade da tortura - como o Pacto de San José da Costa Rica, são posteriores, portanto, não poderiam (juridicamente) fazer a lei brasileira retroagir (tornando imprescritível o que prescritível é, ainda, considerado), pois aí estariam restringindo um direito fundamental.

A questão chave, no entanto, é que não se tratam de crimes comuns. Foram crimes cometidos por agentes do governo brasileiro em um momento no qual o Estado brasileiro estava sequestrado por golpistas. E a nova ordem construída em 1988 silencia sobre a existência de tais crimes. 

Quase que por acaso, os crimes contra a humanidade realizados pelos agentes do regime, passaram ignorados do mesmo modo que o próprio golpe de 1964. E não é que isso não tenha sido capturado pelo direito; aquilo que foi capturado astuciosamente pela máquina providencial foi a livre manifestação política, tanto em 1964, quanto ao longo do regime militar, uma vez que se tornou incólume por outros meios quem desumanizou, com o Poder de Estado, aqueles que se levantaram contra o regime e, depois, silenciou sobre eles por 23 anos.

A teoria geral do direito privado e o direito administrativo, no entanto, apontam para reparações pecuniárias dos perseguidos e/ou torturados em virtude das construções ficcionais dos direitos personalíssimos - que não prescrevem nem decaem, uma vez que são declaratórios - e da responsabilidade objetiva do Estado pelos danos que ele causar. Em suma, o Estado brasileiro, genericamente e na figura da União, deve pagar indenizações para as vítimas do Regime.

Obviamente, não possuímos qualquer sanha punitivista, mas o fato - e isto é o ponto preocupante na questão - é que o enquadramento disso em um âmbito normativo-positivista - ou a busca de uma explicação jurídica para algo que não poderia (nem tomou) essa forma - é uma falácia de uma dimensão perigosíssima, uma vez que aquela violência praticada foi (propositalmente) "ignorada" e, portanto, autorizada pelo regime de exceção assim como suas consequências foram legitimadas pela ordem democrática nascente por meio de seu esquecimento. 

Por uma via negativa, operou-se a legitimação da dessubjetivação daqueles indivíduos, o que em outras palavras funcionou como legitimação do mecanismo que os identificou como elimináveis.

Não é que isso os faça ter direitos "naturais" ou "transcendentes" ao posto, é mais do que isso, isso expõe como a perspectiva de um direito fraturado da política que o concebe e tratado como se não existisse apenas, e tal somente, como ficção para servir à própria política pode servir absolutamente para tudo por meio da anestesia.

A questão de penalizar ou não os torturadores - e, mais importante ainda, seus comandantes, civis ou militares - não é impossível à luz do direito tal como ele é, haja vista que não há solução para o problema posto - e não é que não pode ser punido porque não existia previsão, é que poderia ser punido agora justamente por o que aconteceu não tinha sido imprevisto e não tem simetria com o que é -, mas sim porque a punição penal é ineficaz em todo caso.

A maior vitória que pode haver agora é, precisamente, a possibilidade de dar vazão à narrativa histórica interditada pelo monocromático verde-oliva - e pelo cinza dos ternos dos tecnocratas e aliados civis do regime - para, assim, desligar certos dispositivos ainda operantes por meio da história e não ao vazio das normas. Por mais improvável que isso pareça. 



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