domingo, 5 de dezembro de 2010

Os Ecos do Wikileaks, Assange e Keynes

Agamben nunca pareceu tão certo: O funcionamento dos mecanismos de dominação e controle de hoje parecem claramente superar os que existiam nos países fascistas da Europa dos anos 30. A reação contra Julian  Assange, diretor do Wikileaks, é uma prova difícil de refutar, nesse sentido:  Não foram poucos os políticos americanos que defenderam que ele fosse caçado ou simplesmente fuzilado - como fizeram a presidenciável republicana (deusmeu) Sarah Palin e o ex-presidenciável republicano Mike Huckabee; republicanos de todas as matizes, e até alguns democratas, vociferam insanidades nas quais o australiano Assange é acusado de traição aos EUA enquanto a administração Obama, sequestrada por um Departamento de Estado incontrolável, age de forma inequívoca para censurar o Wikileaks e, pasmem, até mesmo para intimidar seus universitários que ousarem postar algum cable no Twitter ou no Facebook.  

Em um primeiro momento, não há nada ali - nada -, enquanto prática de jornalismo, que já não tenha sido feito nos anos 60 e 70 nos EUA, durante toda efervescência da Guerra do Vietnã. A única coisa de nova que poderia ser apontada aqui é, mais até do que a quantidade de material, o alcance da difusão de sua publicação (e o modo como isso dá), fenômeno possível apenas com o uso da Internet. Não poderia ter sido mais feliz Antônio Luiz Costa, na reportagem de capa da última CartaCapital, ao lembrar do famoso caso dos "Papéis do Pentágono" no qual o analista militar Daniel Ellsberg vazou 14 mil páginas de relatórios sobre as atrocidades americanas no Vietnã. O mesmo jornais americanos que hoje se calam em relação ao Wikileaks, foram os mesmos que lutaram no judiciário americano pelo direito de publicar os relatórios - e venceram. Os agentes a mando de Nixon que tentaram vasculhar a vida de Ellsberg foram punidos enquanto ele mesmo foi absolvido judicialmente da acusação de traição. Isso foi no longínquo ano de 1971. Em menos de quarenta anos, a superpotência americana virou de cabeça para baixo, acusando definitivamente o golpe de sua decadência.

Não, meus caros, Julian Assange não faz parte de nenhuma conspiração comunista ou anti-capitalista. Ele mesmo se identifica como um libertário americano, isto é, uma espécie radical liberal, defensor de uma mercadificação total da economia como forma de garantir a liberdade. Em seu idealismo extremo, Assange beira o niilismo, construindo uma oposição entre empresas fechadas e corruptas e empresas abertas e honestas, numa busca por um capitalismo "ético" e "humano", o que, sem embargo, não passa de uma miragem no deserto, mercados articulam relações sociais e até políticas, não dirimem contradições - e tal afirmação só é possível se formos esquecer do fato de como dentro dos mercados se estruturam relações de poder sobre a população. Nada mais comum no nosso mundo internético, fundado sobre ideais não tão diferentes.

Assange é um Keynes às avessas. Se os meios escolhidos os separa, algo central os une, a saber, os fins: Em suas respectivas épocas, ambos estão tentando desesperadamente salvar o Capitalismo - que, no limite, eles nunca compreenderam bem - dele mesmo, ignorando  o quão inerente ao seu funcionamento são as próprias contradições que os ameaça. A compreensão do problema da realização do valor em Keynes, o fez elaborar uma teoria na qual o Estado, enquanto expressão legítima do poder público, acabaria por ter de intervir na economia para absorver o impacto das crises cíclicas, o que, na prática, acabou por instituir mecanismos de controle coletivo sobre o funcionamento do Capital - prática que levada ao extremo ameaçava sim o Capitalismo enquanto sistema, pois inibiria os mecanismos de reprodução incessante, o que, no fundo, é o que lhe dá identidade. 

Por meios opostos, Assange identifica como o Estado e empresas não éticas necessitam do encobrimento  de certas informações para exercerem seu mando, mas ele se perder onde se encontra, qualquer empresa, dentro de um sistema capitalista, está sujeita ao exercício do poder para poder realizar seu fim de permanente auto-reprodução, o que em outras palavras, as obriga a produzir um discurso no qual sempre é mais importante o que foi encoberto - e o mesmo vale na interconexão das mesmas no plano do Mercado. A construção de um mecanismo que tornam públicas informações estratégicas sobre a vida de todos, na prática seria uma ameaça a toda e qualquer unidade de produção capitalista ou do referente Mercado, pois instituiria um controle público sobre o que fazem ou deixam de fazer as empresas, submetendo ao interesse público o seu funcionamento.

Se Keynes, a seu tempo, tornou-se inimigo número um dos liberais, embora ele mesmo se afirmasse como liberal, isso não foi à toa: O ocaso do keynesianismo nos anos 70, aliás,  é um expressão da contradição elementar de sua teoria, enquanto ele via uma conciliação entre seu projeto de política econômica, o funcionamento do capitalismo e o bem-estar social, empiricamente demonstrou-se que havia uma contradição em termos aí, o que forçou os ideólogos capitalistas a projetarem algo para substituir seu próprio projeto: E esse projeto pôs o bem-estar social em função do Capitalismo de forma definitiva e clara, invertendo a premissa Keynesiana. Esse movimento estratégico simplesmente afirmou a noção de que o Capitalismo é mesmo anômico - e que qualquer tentativa de racionaliza-lo, salvando-o de si mesmo, vai produzir qualquer forma de socialismo porque, em último caso, ruma para o desaparecimento das relações que justificam a existência do próprio Estado como nós o conhecemos hoje.

Assange, por sua vez, entende que suas medidas estão implodindo esse Capitalismo ainda de Estado, no qual ainda reside a lógica de uma "costura vertical", evento pelo qual alcançaremos um "Capitalismo ético e livre", mas ele se esquece que todo Capitalismo é, no fundo, Capitalismo de Estado. Isso não parece claro devido ao discurso recorrente da própria esquerda não-anarquista de que vivemos sob a égide de qualquer tipo de "neoliberalismo", quando no máximo prática e instrumentais a serviço do próprio liberalismo são postas em prática pelos ideólogos e tecnocratas do Capitalismo - cuja relação com o Estado, desculpem, é um pleonasmo. Implodir o Estado, nesse sentido, levaria a dois caminhos: O primeiro, e mais provável deles, seria aquele que aponta para a construção de outro Estado pelos atores mais fortes - justamente os mais proeminentes agentes de Mercado -, que implodiriam os próprios mecanismos de difusão de informação e de transparência que acabaram com a velha ordem, ou a implosão do próprio Capitalismo, com redes colaborativas de produção se formando e substituindo o próprio Estado, posto que isso basicamente colocaria o modo de produção e troca a serviço do interesse coletivo. 

Não há como fugir disso, Assange pode não entender o que está acontecendo, mas se ele se tornou um verdadeiro homo sacer, isso não foi à toa: Que a intenção de sua crítica ao sistema é inofensiva para as linhas gerais da ordem, isso ninguém tem dúvidas, mas o ponto aqui são como as medidas que ele tomou via Wikileaks, colateralmente, acertam no alvo que certamente ele não gostaria de ter acertado. É por essa responsabilidade objetiva que ele está sendo caçado e, venhamos e convenhamos, não existe incoerência nisso, a menos que sejamos tão cândidos a ponto de não conseguir reconhecer, ainda, a relação entre esquizofrenia e Capitalismo.  

*imagem -- R7.com/tirada daqui

4 comentários:

  1. Não sei por que, mas esta questão do WikiLeaks me lembra de forma superficial o The Yes Men, Adbusters e Yo Mango!, mas de forma superficial do ponto de vista de que estas 3 "organizações" visam ter ações anti-capitalistas mesmo. Porém a ação do WikiLeaks consegue ser mais pé na porta do que os anti-capitalistas.

    Há de se pensar sobre isto...

    ResponderExcluir
  2. Luka,

    O Wikileaks chutou o balde contra dois descalabros específicos, Afeganistão e Iraque, para depois chutar o balde geral, mas a sua finalidade aparentemente, é aquilo que chamam de anarco-capitalismo mesmo, ou melhor, liberalismo radical ou libertarianismo. Coisa muito doida - e americana -, justamente porque atinge o sistema sem querer atingi-lo mesmo.

    beijo

    ResponderExcluir
  3. Interessante as analogias sobre o fim do Capitalismo e do Estado que estão embutidas na crítica de Assange, mesmo que seja gerando uma Utopia ética. Utopia maiúscula!

    Escrevi alguns textos em meu blog sobre o tema Wikileaks, mas focando na temática da Democracia e ações imperialistas como o boicote na Internet.

    Claro, este tópico tem sim respaldo em várias esferas, mas gostei muito de como você trabalhou a questão ideológica e política no Wikileaks. Gostei muito do texto! Parabéns

    ResponderExcluir
  4. Muito obrigado, DanDi e, sim, Assange é um utopista mesmo e o problema de todo utopista é que, no fim das contas, eles acabam topando com uma bifurcação que lhes obriga a escolher entre o autoritarismo e o fracasso, mas não raro, eles cumprem certa função ao denunciarem o que está posto: E aqui, o papel de Assange é primoroso.

    abração

    ResponderExcluir