sábado, 31 de dezembro de 2011

2012

Estamos a poucas horas da virada de ano. 2012 será um ano agitado, sem dúvida: as eleições municipais estarão em curso - cujos impactos, sobretudo em certas metrópoles, terão impacto no cenário nacional -, o desenrolar da crise mundial não será nem um pouco morno - sobretudo no que toca à Rússia e à União Europeia, mas também à China, que está sendo tratada como um monólito, coisa que nada nem ninguém é -, além do andamento do governo Dilma. Da minha parte, estarei por aqui firme no batente, com um desafio duplo de tocar as coisas do meu último ano na graduação e ainda estar novamente no Centro Acadêmico. Se 2011 foi ambíguo, creio que 2012 tende a ser desmedido e implacável. Estejamos a postos. Um feliz 2012 para todos!   

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

2011

Fuga -- Kandinsky
foi um ano esquisito, ou pelo menos me deixou com a mesma sensação esquisita que eu senti quando vi Terra em Transe, do mestre Gláuber, pela primeira vez - tardiamente, só no final do ano passado. O ano começou com a multidão nas ruas, nas praças e se espalhando, fazendo os idiotas da objetividade - de lado a lado - verem seus dogmas, certezas e caminhos únicos se desfazerem. Foi o ano da Primavera Árabe, dos movimentos occupy, da crise na União Europeia, da continuação da derrocada americana, dos vinte anos sem URSS acontecendo sob o abalo do império putinista, o primeiro ano do pós-Lula (e sua posterior doença) etc. 


Um transe varreu a terra em onda e a virou de ponta cabeça. O centro do mundo virou às avessas de modo a não haver mais novo centro - ou mesmo centro algum. Mas há algo de amargo nisso tudo, que só pode ser superado com algum bom humor - e aqui mora algo importante: a auto-ironia, a capacidade de rir de si mesmo antes de mais nada, é ponto central para se construir uma crítica e uma ética nestes tempos. Sem isso, faz-se um sátira na qual você mesmo acaba sendo protagonista involuntário de uma ópera bufa. Não resta dúvida, essa é a grande lição que eu aprendi neste ano em encerramento, em cima de todo seu legado ambíguo que será, possivelmente, a tendência da década recém-inciada - sim, nisso eu concordo com o Safatle.


Não, eu não gosto do modo como está posto o debate político no Brasil atual. De canto a canto. Tivemos nossas piores eleições presidenciais em 2010 e temos, hoje, o pior debate da nossa história recente. Existe, sem dúvida, uma efeito respiração suspensa como eu já falei por aqui. Isso vai para além do estilo gerencial de Dilma, mas do fato que a esquerda ainda não se tocou que o problema é mais do que isso, mesmo essa coisa do controle político da gestão estatal - que o peronismo pôs em prática antes do PT - é uma falácia. Ainda estamos discutindo como consertar a democracia representativa - e ainda não nos tocamos do lado B do welfare. Mas isso, eu deixo para um balanço do governo Dilma, para o imediato começo de 2012.


A blogosfera, no lugar de inovar, acabou ecoando (de forma histérica, ainda) essa crise e vai mal. Também não sei se eu consegui fazer daqui exatamente o que eu queria, construir um jeito melhor de dialogar, uma formulação de blog mais efetiva - até fiquei satisfeito, em Janeiro, depois, não sei. Ainda assim, os posts que eu mais gostei de escrever foram os que tiveram o melhor retorno, o que indica um caminho. Ainda assim, preciso pensar em algo novo para 2012, de alguma forma. Seja com for, fica um forte e sincero agradecimento aos que vieram aqui trocar ideia, fazer intercâmbios, polemizar e quetais. Vocês não têm ideia do quanto isso é gratificante. Tenhamos todos um grande 2012!


   

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

A Doença de Cristina, o Kirchnerismo e os Rumos da Argentina

Comemoração da vítória de CFK na Praça de Maio
Cristina Fernández de Kirchner, presidenta argentina, foi diagnosticada ontem com câncer na tireoide e será operada já no próximo dia 04 de Janeiro, com grandes chances de recuperação. Ela se junta ao batalhão de líderes sul-americanos que estão ou estiveram às voltas com um câncer nos últimos tempos, a exemplo da própria Dilma, de José Alencar, Lula, Chávez, Lugo.

Reeleita recentemente com 54% dos votos, em uma eleição com crescimento do quórum votante - e semelhante às (boas) médias brasileiras, de 80% de presença nas urnas -, Cristina governa o país na esteira de seu falecido marido, Néstor, emplacando o terceiro mandato consecutivo do que já se denomina Kirchnerismo, uma das tantas correntes do Partido Justicialista (o partido peronista).

Quando Néstor assumiu o país em 2003, já se passavam dois anos da grande crise de 2001, quando o país desmoronou sob a liderança débil de Fernando de La Rúa, depois de uma década sendo objeto de experimentos privatistas, de uma política externa subserviente aos EUA e da desconstrução da política pelas mãos de Carlos Menem.   

A Argentina, um país que no início do século 20º era comparável ou superior a muitas nações da Europa Ocidental, estava quebrada e sem rumo. Néstor reverteu a queda em espiral em pouco tempo, seja por meio do resgate da verve do discurso popular peronista ou por ter posto em prática medidas ousadas de cunho econômico.

Cristina, sua esposa, herdou esse legado. Embora tenhamos um estilo de governança semelhante ao do Lulismo no Brasil, plebeia e social-democratizante, o Kirchnerismo é marcado por uma postura mais ofensiva em matéria de política interna - seja em relação ao legado de sua ditadura, ao confronto com a velha mídia ou a luta pelos direitos civis - e uma política econômica mais crescimentista.

Nesse sentido, o Kirchnerismo, sobretudo no período de Cristina, se destacou por ter enfrentado os gargalos locais por meio de memoráveis confrontos no terreno da opinião pública - seja na homérica quebra de braço com os produtores rurais ou quando ela se empenhou pessoal e exitosamente pela aprovação do casamento gay no Senado.

Ironicamente, um governo peronista - e "peronismo" quer dizer muitas coisas na Argentina, do liberalismo de Menem a grupos revolucionários dos anos 70 - se assemelhou mais ao sonho de consumo dos petistas, pelo menos a militância habitual (e médio-classista), do que seu próprio governo, cordial e voltado a uma articulação à moda neo-sindical - como, talvez, fosse óbvio que fosse acontecer aos mais próximos ao partido da estrela, uma vez que os debates bizantinos entre as tantas correntes de militantes médio-classistas nunca chegaram a nenhuma conclusão de prática, enquanto seus sindicalistas, ali, sempre foram A prática.  

Também convém esclarecer que o peronismo, ao contrário do petismo, jamais se propôs revolucionário ou profundamente reformista, portanto, a vocação para a reforma do Kirchnerismo  se enquadra no âmbito de refundação do seu país, tomando a forma de um republicanismo popular e social que se sente em casa no Estado - ao contrário do petismo brasileiro, que governa instituições que renega, mas para as quais seus teóricos jamais formularam uma alternativa concreta e o seu núcleo duro sindical reage com uma acomodação pragmática.

O Kirchnerismo, de certa forma, alimenta as aspirações de uma classe média tradicional e intelectualizada do continente (nossa, inclusive), que sempre escapou ao conservadorismo de seus pares - mas que deseja ver uma democracia representativa funcional que faça o que é devido, alimentando certas ilusões comodistas em relação ao Estado de Direito e outras heresias idealistas. É claro que é no mínimo justo ponderar que os problemas sociais brasileiros são muitíssimo maiores do que os argentinos e talvez isso seja motivo para algum desconto.

Aliás, a luta por direitos civis ou pela regulamentação da mídia - que passa por um confronto com setores tão tradicionais e oligárquicos quanto os daqui - serve de cortina de fumaça para certas controvérsias comuns ao Kirchnerismo e ao Lulismo, mas que vem à tona aqui e não lá pela frustração de setores da nossa classe média quanto a essas demandas - tomem como exemplo a política de alianças kirchnerista e o escândalo de censura a um jornalista do Pagina 12 por denunciar um governador aliado da Casa Rosada

O confronto justo do governo argentino contra setores oligopolizantes da mídia, não raro, serve de cortina de fumaça para outros episódios nos quais o governo fez valer sua posição sobre a liberdade de imprensa - e ficamos aqui diante do velho uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra, tão difícil de ser entendido - que além do caso acima citado, também vale para a divulgação dos índices de inflação, coisa que o governo tomou para si, indo desde mudanças oportunas no instituto oficial de estatística até investigações contra jornalistas que divulgaram índices outros de inflação.

Aliás, sobre a controversa e galopante inflação argentina, estejamos diante dos 10%-12% do índice oficial ou dos mais de 20% dos índices extra-oficiais, o fato é que se tratam dos efeitos de uma política econômica claramente expansionista, pouco disposta a fazer uso de astúcias prudenciais como o Brasil. 

Em matéria de Capitalismo, que o Kirchnerismo jamais se propôs a transformar, políticas econômicas pró-trabalho e crescimento são respondidas com repasse dos ganhos sociais, sobretudo quando são muito rápidos, para os preços dos produtos como forma de reação silenciosa (ou nem tanto).  É o tipo de problemática para a qual Cristina e seu staff não tem resposta até porque não tem compreensão plena de sua natureza.

Também não podemos deixar de ressaltar que o Estado argentino, sob o Kirchnerismo, passou seu legado militar a limpo, seja pela punição dos torturadores ou pela abertura da memória histórica do período, coisa que apenas tateamos por aqui (e mal, ainda).

Como bem define Cesar Altamira, em um belo artigo sobre o Kirchnerismo para  o site da Uninomade no qual esmiúça as nuances da Argentina contemporânea, Cristina "encarna una visión postmoderna socialmócrata de la política", cuja práxis está petrificada por uma conformação pueril com as potencialidades de um agir centrado na mera gestão do Estado subordinada ao poder político - ao mesmo tempo em que ele afirma certo otimismo com o clima político vivo e multitudinário de seu país hoje, processo que se opera abaixo e à esquerda dessa acomodação frente às potencialidades de um "governo popular".

Ambiguidades e críticas, o fato é que a Argentina é um país muito melhor hoje do que há dez anos atrás, quando todos davam por certo sua submersão no cenário internacional - ou há oito anos atrás, quando os mesmos críticos que teciam loas a Menem, desacreditavam as medidas econômicas de Néstor. Junto com as mudanças no Brasil, as transformações argentinas tiveram um impacto firme sobre o resto do continente e, coincidência ou não, o fizeram caminhar na contra-mão do mundo (o que, hoje, é algo bem positivo).

Os desafios que se anunciam no horizonte, é claro, marcam uma nova rodada de entraves, depois de anos de uma improvável bonança na Argentina e na América Latina. Por isso, para além da torcida pela pessoa humana da simpatissíssima Senhora K, precisamos politicamente dela bem inteira. E estamos certos que ela estará tão logo.


terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Crescimento do Salário Mínimo: Trabalho, Vida e o Porvir

Carregadores de Café - Portinari
Dilma Rousseff assinou o decreto que eleva o salário mínimo de R$ 545,00 para R$ 622,00 para 2012. Trata-se de um reajuste dentro dos parâmetros que o governo Lula articulou, em acordo com as centrais sindicais há poucos anos: o salário mínimo passou a ser reajustado por um valor que engloba (i) a cobertura da inflação do ano anterior e (ii) o acréscimo da taxa de crescimento do PIB de dois anos anteriores - uma vez que os dados oficiais do PIB demoram a sair e o ajuste do salário mínimo precisa ocorrer no começo do ano. 

A valorização real do salário mínimo - usado como base de cálculo de grande parte dos salários e aposentadorias e pensões - foi um dos pilares da política social do governo Lula. Os ganhos do aumento do salário mínimo vão muito além do que parece: cada pequeno ganho para quem está em situação de miséria ou pobreza faz toda a diferença - o mesmo aumento proporcional nos ganhos de alguém de classe média não faria tanta diferença, uma vez que sua renda já cobre os custos do mínimo existencial.

O impacto biopolítico disso é grande, pois não falamos apenas em ganhos sociais, econômicos ou políticos, mas de produção, reprodução e autoprodução da própria vida. As multidões de famintos diminuem, desonerando formalmente sistemas de saúde, criando microcircuitos econômicos em cidades do interior ou periferias de grandes cidades - dependentes dos rendimentos de funcionários públicos, aposentados e pensionistas - pressionando a produção na direção de atendimentos de bens básicos para a sobrevivência - uma vez que quem está empoderado são pessoas que necessitam de insumos básicos - etc.

Cria-se, a partir desse processo, uma nova conjuntura política, na medida em que velhos tiranetes já não são mais eleitos, pois seu poder de chantagem habitual com as necessidades de sobrevivência alheia diminui. Na medida em que a vida é gradualmente mais garantida, o debate torna-se outro - e aqui não vai uma visão ingênua, ao contrário, a democracia representativa é sim uma mistura de salvacionismo, chantagem e comportamento de manada, como já dito neste blog, mas no instante em que não estamos falando da salvação da morte certa por inanição (e a chantagem em relação a isso, com doações eleitoreiras de cestas básicas em vésperas de campanha) e de um manada de famélicos, as coisas mudam sim de figura.   

Isso e políticas de renda redistributivas, como o bolsa família, que se associam à própria existência dos indivíduos e não do trabalho exercido por eles, mesmo que não seja ainda uma renda universal propriamente dita, ajuda, sem embargo a produzir uma coexistência para melhor de forma concreta. 

É claro que a valorização do salário mínimo pode ser capturada dentro de uma política de proletarização dos pobres, na qual tal mecanismo serviria para organizar a sociedade por meio do binômio capital-trabalho. No entanto, é preciso considerar que aumento de renda laboral gera um enfraquecimento da capacidade do capital ordenar as relações sociais - um problema que o capitalismo, desde tempos imemoráveis, não conseguiu resolver a seu favor -, ainda mais com a manutenção do bolsa família no núcleo duro das políticas de governo. 

Sinais preocupantes como as mudanças no seguro-desemprego este ano, no entanto, não deixaram de surgir. Tais mudanças obrigam os trabalhadores que largaram seus empregos a procurarem, tão logo, um novo emprego para não perderem o benefício. Isso, ao contrário do que parece, atenta menos para uma proletarização da plebe, que se opera apenas no curto prazo, do que para uma sobrecarga do sistema: isso não consegue proletarizar todos os setores não-proletários (como os índios) e, ao proletarizar outros tantos, força a demanda por repartição de renda do capital. 

Com isso, não se segue qualquer apologia ao etapismo, como se essa medida fosse, por decorrência lógica, produzir uma socialização da renda e consolidar uma transformação política (o só se opera pela liberação e não pelo aumento da sujeição em qualquer nível ou instância). Antes de mais nada, isso produz uma tensão política severa, que pode forçar o capital - diante dos sintomas sociais como greves, inflação etc - a surgir com uma solução (final?) para isso - fórmula clássica do bonapartismo, do fascismo histórico ou mesmo do conservadorismo "democrático", em suas variadas gradações ou composições. 

Diante dessa quebra de braço, podemos "vencer" a arena de disputa dada, mas as chances disso são sempre pequenas, pois o sujeito encontra-se em tal grau de fragmentação em relação a si mesmo e em relação ao seu meio, que ele dissocia o que está associado, por não lhe ser permitido viver o processo de produção  - inflação dissociada da forma como capital reage ao "pleno emprego", criminalidade como consequência da inclusão excludente etc. 

Para além do efeito laboral propriamente dito, é interessante pensar nos efeitos macroeconômicos, sobretudo, no que toca à grande polêmica do começo do ano: como reajustar o salário mínimo, uma vez que o ano de referência de crescimento, 2009, a economia brasileira não cresceu? Com efeito, poderíamos tirar a média aritmética do crescimento de 2009 - irrealmente baixo -e do de 2010 - irrealmente alto - e compensar os trabalhadores, mas o governo fez valer o acordo que ora ele repete, em circunstâncias outras. Por quê?

Diante das pressões inflacionárias do começo do ano, se em 2009 o país tivesse crescido 7%, teria o governo mantido o acordo? Talvez sim, desde que os ajustes das contas públicas lhe permitisse isso, mas é fato que o pequeno aumento de 2009, diante de uma economia superaquecida do início do ano, bem como o grande aumento de 2010, diante de uma economia desaquecida no início de 2012, lhe caíram como uma luva para honrar sua palavra. 

Isso alude a um terreno movediço, de uma economia baseada na confiança e em afetos passivos, que podem perfeitamente criar comportamentos de manada terríveis, com a inflação comendo o aumento real de um salário mínimo super-aumentado, na melhor das intenções. Nesse sentido, o critério lulista de reajuste é uma bela astúcia, pois como toda objetividade, ele expõe o quanto as economias são construções subjetivas, tal a forma que se quedam a entes ideológicos como a legitimidade e a segurança.

Certa crença na concretude das objetividades por parte de Dilma, como vemos na questão  do seguro-desemprego ou em outras - a "racionalização da máquina", "a faxina" - talvez seja a grande diferença entre ela e Lula, isto é, a diferença entre o racionalismo iluminista e moderno da primeira - agora como coluna vertebral e não mais como parte - frente à virtù renascentista do segundo. Eis aí como as sementes de uma restauração conservadora, no plano do representativismo democrático pátrio, podem acabar germinando.

É por essas razões e por outras que dizemos que a constituição do comum não passa pela lógica laboral do socialismo (ocidental ou oriental), sobretudo tendo em vista a natureza da economia do conhecimento contemporânea, cujo aumento da própria produtividade demanda uma liberação gradual do trabalho assalariado - e que está em plena tensão com um capitalismo cognitivo atolado, pois se ele insere uma lógica de instantaneidade extrema, simultaneamente, seus mecanismos de captura, como os direitos autorais, determinam uma lentidão que vai de encontro à própria velocidade que o sistema previamente ditou.

Nada do apresentado, frise-se, significa qualquer objeção ao programa de aumento do salário mínimo, pois, antes de mais nada, ele é uma medida humanitária que, reiteramos, libera os "sujeitos" do trabalho pelo empoderamento da renda e não o contrário. Embora só isso não baste, para bastar precisamos partir daí. Medidas que aumentam o vínculo empregatício, em desfavor da liberdade de trabalhadores e ex-trabalhadores, é que são problemáticas, como essas mudanças no seguro-desemprego - que entra em choque com o programa de aumento do salário mínimo, embora no ideário desenvolvimentista, ambas se apresentam como medidas harmônicas entre si, à moda de Keynes, fundadas na crença de um otimismo progressivista, cujo desmoronamento, infelizmente, está expresso na Europa contemporânea.


segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Brasil Sexta Potência de 2011: E Daí?

Pelo menos é o que se anuncia em relação ao ranking de Produto Interno Bruto (PIB) em termos nominais - isto é, usando o dólar americano como régua, sem considerar os valores internos de cada país, a chamada paridade de poder de compra (PPC). Ainda assim, mesmo pelo índice de PPC, é provável que o Brasil, agora, seja a sexta maior economia também, ainda que com posições diferentes (e com Índia na frente da França, certamente). Em relação a isso, surgiu um debate um tanto confuso sobre o tema.

Em primeiro lugar, uma obviedade: países são abstrações. Quando falamos em PIB - que é um dado econômico um tanto...bruto como o próprio nome do índice sugere -, falamos de todas as riquezas produzidas em um país, tenha ele 1,3 bilhão de habitantes (como a China) ou 10 milhões (como Portugal) - ou mesmo, uns 190 milhões como o Brasil. Essa unidade imaginária chamada "país" refere-se a áreas muito diferentes, com variadas populações, dispostas de formas bastante próprias.

Dizer que aquele país tem o sexto ou centésimo PIB do mundo é uma afirmação meramente quantitativa - no mesmo sentido que enunciamos o fato do Brasil ter a quinta maior população do planeta. O que significa o Brasil ter passado o Reino Unido? Que durante muito tempo ficamos atrás de um país cuja população é três vezes menor do que o nossa, mas que por questões históricas sempre ostentou uma riqueza muito acima da média mundial - e que ainda ostenta, embora muitos dos países pobres lhes tenham passado em termos gerais. 

Hoje, o Brasil tem um PIB por habitante próximo à média mundial, o que explica, ao passo que temos a quinta população, estarmos nos aproximando do quinto posto. Crescemos mais do que as grandes economias, exceção feita à China e a Índia, o que facilita o processo. Isso não significa que somos os sextos melhores - é preciso ponderar o tamanho de cada país e como essa riqueza é (mal) distribuída em cada um deles -, tampouco que o fato de estarmos em um período de crescimento não signifique absolutamente nada, uma vez que, indiretamente, o crescimento do PIB é um dos fatores de melhoria da qualidade de vida - desde que ocorra sob certas condições.

Sobre o último aspecto, eu aplaudo o processo atual pelo qual passa o Brasil, ainda que com algumas ressalvas, porque esse crescimento visto nos últimos anos foi positivo. Não, nós não crescemos tanto, embora relativamente à média estejamos bem. O ponto é que estamos crescendo com mais qualidade, distribuindo renda melhor - sendo que a regra, nos nossos vários boom do século 20º, era de crescermos com concentração de renda - e empoderando a renda dos trabalhadores - sobre esse último item, vivemos exatamente o inverso do que ocorria do golpe militar aos anos FHC e da tendência mundial desde os anos 90. 

O ufanismo em relação ao fato de estarmos em sexto lugar, portanto, não se justifica - seja pelo tamanho populacional que temos ou, também, por essa visão de crescimento como fim em si mesmo, em caráter meramente quantitativo. Por outro lado, dizer que os processos que conduziram a essa situação são desconsideráveis é outra bobagem sem tamanho, o tipo de crítica mesquinha e mal calculada que dá com os burros n'água, haja vista que não encontram qualquer âncora na realidade: sim, isso veio acompanhado de melhoras na nossa vida, sobretudo dos brasileiros mais pobres.

Precisamos estruturar uma crítica potente - e não reproduzir esse resmunguismo comodista e preguiçoso - que se volte a melhorar isso. Jamais pensar o crescimento como fim em sim mesmo, mas sim como meio, considerados como e para quem ele se dirige, para daí aprimoramos esse processo: isso diz respeito, hoje, à sustentabilidade ambiental e social (que andam abraçadas), o que,  em outras palavras, demanda a apropriação biopolítica da multidão em relação ao que ela mesma produz. Se hoje conseguimos crescer com distribuição de renda, é possível aumentar essa produtividade construindo práticas ambientalmente sustentáveis.



domingo, 25 de dezembro de 2011

Vinte Anos sem a URSS

Yeltsin e Gorbatchiov -- Artífices do fim da URSS
Hoje é Natal, mas não apenas: o fim da União Soviética também completa exatos vinte anos. A situação russa, neste exato momento, não é nada boa, como não era no começo dos anos 90. As manifestações massivas nas ruas de Moscou, ontem, são uma continuação da revolta contra as últimas eleições parlamentares, provavelmente fraudadas, realizadas no início do mês. Não só: elas aludem ao agravamento da crise pela qual passa o país.

O atual grupo dirigente da Rússia, liderado por Vladimir Putin, ascendeu dentro do caos dos anos 90, quando Boris Yeltsin implementou uma série de reformas econômicas liberais fracassadas, reagindo, depois, com mão forte contra os manifestantes e instaurando uma crônica instabilidade. A farsa de Yeltsin, feito herói no início dos anos 90 pela mídia mundial e por burocratas ávidos em tomar para si para o patrimônio estatal, caiu por terra em poucos anos.

Putin e os seus uniram as ilhas de poder do país, surgidas desde o fim do Partido como demiurgo geral do nação - os serviços secretos, as forças armadas, os oligarcas  (os antigos dirigentes comunistas que enriqueceram com a privataria local) e a burocracia do Estado. Dentro do mais puro dirigismo, inseriram o país na economia mundial sobretudo como exportador de hidrocarbonetos - e mesmo como um agente global duro, não deixaram, no fim das contas, de fazer o jogo do Ocidente, a União Europeia que o diga...

Depois de um breve período de euforia capitalista sob a liderança  de Putin, os russos assistiram ao esgotamento do seu modelo coincidir com o vendaval da crise econômica, que expôs definitivamente os pés de barro da new economy à qual a Rússia aderiu não mais como potência, mas sim como país periférico. A dependência externa, de um mercado mundial em crise, e a improdutividade causada por um sistema político autoritário fazem com que o arranjo de poder russo, como temos insistido por aqui há tempos está ferido de morte.

Nesse cenário, a figura de Mikhail Gorbatchiov reaparece. Se há vinte anos, ele, enquanto último líder soviético, conduziu o fim do país de forma controlada, hoje, ele emerge não mais para descer a bandeira vermelha do Kremlin, mas para pedir que Putin renuncie às ambições presidenciais em 2012. A voz do último líder soviético, no entanto, tem pouco ou nenhum peso em seu país, uma vez que ele é apontado como culpado da decadência russa, na medida em que suas reformas, além de não surtirem efeito algum, serviram como janela para os apparatchiks aumentaram mais ainda o seu poder, se apoderando das estatais que geriam. 

Se Gorbatchiov não é um problema relevante, por outro lado, não custa lembrar que já não é de hoje que Putin está em maus lençóis: suas negociações para tentar um terceiro mandato fracassaram e ele teve de optar pela saída de lançar seu braço direito, Dmitri Medvedev, como candidato presidencial em 2008 - com Putin, no entanto, chefiando o país, inconstitucionalmente, como premiê nos últimos anos. 

Isso ilustra o caráter farsesco das instituições russas: de repente, o semi-presidencialismo russo tornou-se um parlamentarismo porque era Putin o premiê. De repente, Putin não emplacou as reformas políticas que queria, mesmo tendo vantagem no parlamento naquele instante, porque para as instâncias reais de poder, era melhor se apresentar com uma aparência de "normalidade" para o Ocidente. 

A multidão que hoje lota as ruas de Moscou, por sua vez, é difusa e está alheia a isso. Ela é composta de neo-comunistas propondo um modelo chinês até nacionalistas falando abertamente em corporativismo, passando por anarquistas. Eles querem novas eleições parlamentares, uma vez que as fraudes no último pleito são evidentes e o Rússia Unida, partido de Putin, certamente não teve a metade dos votos que reivindica - ficando com maioria fraca (relativa) no parlamento ou atrás dos comunistas, cujos dirigentes, ao contrário de sua militância, estão por demais satisfeitos com o resultado manipulado de um pleito no qual eles foram os prováveis ganhadores, o que ilustra apenas a sordidez das relações entre os grupos políticos russos e o Kremlin putinista.

As novas eleições marcariam o fim da era Putin e, de certo modo, o fim da era Yeltsin também, uma vez que Putin é uma descontinuidade dentro da mesma linha. Putin, no entanto, é ainda o maior fiador desse esquema. Sem ele, qualquer substituto que tentasse manter o status quo estaria fadado ao fracasso. Isso lhe garante um bolsão de oxigênio, embora as chances dele sofrer um golpe estejam crescendo nas bolsas de apostas, pois seu personalismo pode fazer com que com sua queda, gatopardianamente, acalme os ânimos nas ruas - e dar tempo da elite russa negociar um novo arranjo para o esquema, o que, advirto, tem poucas chances de ser eficaz.

A finada União Soviética, aliás, ficou para trás mesmo de seus pares ocidentais pelo uso que deu à tecnologia espacial, incapaz que era, pelo seu sistema político, em avançar na  produção intensiva de tecnologias de informação e comunicação, justamente o ponto de virada dos anos 70, com a economia do conhecimento - que, no entanto, não parece tão conciliável com o Capital quanto proclamavam os profetas yuppies da new economy


O que determinou o fim da União Soviética não foi uma crise "natural", "objetiva" - que teria exposto a impossibilidade de qualquer opção ao capitalismo -, mas sim o fruto de contingências e de decisões políticas sobre o que e como produzir tal e qual os limites daquele sistema político e a opção de não reforma-lo - algo evidenciado, inclusive, pelo caráter de continuidade na forma de exercício do poder e de seus atores dos anos 80 para cá.

A ausência do Estado soviético no cenário global  tem um significado incerto; é claro que o fim de uma URSS, nos moldes imperiais dados por Stalin, facilitou o processo de constituição do  processo de globalização, cujo grande entrave tem sido, fundamentalmente, a tensão hegemonista norte-americana, sem hora nem lugar, uma vez que o capitalismo transcendeu, irremediavelmente, os limites de qualquer fronteira nacional. 

Em virtude disso, para ter sobrevido aos anos 90, o Estado soviético precisaria de uma reforma profunda. Tivesse acontecido isso e a pressão pela constituição de um multilateralismo entre Estados estaria em um estágio certamente mais avançado, pela impossibilidade do unilateralismo americano.

O fato é que as contingências da História puseram fim a um sistema de organização tirânico, ironicamente nascido do desvio de um processo revolucionário magnífico,  só que da pior forma possível, aprofundando-o em outros termos, o que, agora, está em crise novamente. A desestabilização russa é um dos grandes assuntos de 2012 e, sem dúvida alguma, precisa ser visto em paralelo com a crise da Europa, pois uma pode mudar decisivamente os rumos da outra. 



sábado, 24 de dezembro de 2011

O Fogo, o Moinho e a Imaginação

Prédio onde ocorreu o incêndio

Hoje, véspera de Natal, me dei ao luxo de tomar trem, e andar um cadinho debaixo do sol quente do verão paulistano, para ver a quantas estava a comunidade do Moinho. Há dois dias, ela foi vitimada por um incêndio, cujo saldo, até o presente momento, é de duas vítimas fatais,  algumas dezenas de feridos, quase 40% das casas destruídas e mais de 400 famílias afetadas direta ou indiretamente (mais da metade das mais de 700 ali residentes).

Postos de Doação
Nem o Prefeito, tampouco sua Secretaria de Habitação, se pronunciaram sobre o ocorrido até a manhã de hoje - embora a assistência imediata esteja sendo realizada de forma razoavelmente regular. A comunidade, com um histórico relativamente grande de lutas e resistência, se mostra profundamente organizada no gerenciamento das medidas de emergência. As doações, que estão sendo realizadas tanto na favela quanto ao seu lado (na Alameda Eduardo Prado, n.108), seguem a todo vapor, sob o impacto da data e da divulgação da mídia, mas todo empenho e boa vontade é preciso agora, porque passado o choque, a questão tende novamente ao esquecimento, logo, a carência de provisões é um problema imediato.
Entrada da Comunidade

De fato, Leonardo Sakamoto tem razão quando aponta que os problemas do Moinho vão muito além do incêndio que, por pouco, não lhe apagou do mapa. Há um inegável interesse higienista da atual administração em despejar os moradores de lá  - que só aumentaram desde que a gestão Kassab iniciou sua política de expulsão dos pobres do centro. Mas também há uma série de outras questões que vão desde ações  envolvendo a Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM) - que tem duas linhas suas passando por dentro do Moinho - até a ação de anulação do leilão mediante o qual a empresa proprietária do terreno, genericamente citada pelo Sakamoto, adquiriu o terreno da União.

Linha da CPTM que liga a Estação Júlio Prestes a Osasco
O caso do Moinho, portanto, é uma singularidade que ora se mostra o principal sintoma da crise de moradia na metrópole paulistana. Não que isso não se repita em outras cidades, formação metropolitana do Brasil recente é marcada pelo despejo de fluxos e mais fluxos de pobres vindos do nordeste ou dos diversos interiores para, simultaneamente, abastecer a indústria nascente com trabalhadores super-exploráveis e arrefecer a pressão por reforma agrária no campo. De todo modo, em São Paulo, conseguiu-se organizar uma cidade inteira pelo o esquema laboral - uma das principais características desse processo, certamente, a expulsão dos pobres para a periferia.

Cidades brasileiras são, em geral, profanas, uma vez que a vã pretensão de suas elites, em ver os pobres escondidos, só aparecendo trajados de servos, cai no ridículo de uma miséria evidenciada a cada esquina. Em São Paulo, essa segregação, por pouco, não foi perfeitamente feita realidade - existem bolsões aqui e acolá, os sem-teto que insistem em não-desaparecer, mas a higienização do núcleo da cidade aparece como horizonte possível de qualquer programa conservador. Em grande parte, isso se deve ao gigantismo do setor imobiliário local, que está para Secretaria de Habitação como as milícias estão para a polícia no Rio de Janeiro.

O jogo de imagens, e imagens sobre imagens, das imobiliárias - quase sempre articulado por gestões municipais - infla os preços de aluguéis e imóveis de forma onipresente. O rentismo sobre os imóveis determina a gestão dos espaços urbanos de São Paulo em uma escala assustadora. Não à toa, o nosso recorrente Spinoza, lá no distante século 17º, se mostrava obcecado em desenvolver um método que nos permitisse distinguir as imagens do que há de concreto: ele sabia que, desde tempos imemoráveis, a dominação se estruturava num truque no qual profetas (tal como seus sucessores atuais, os ideólogos) e tiranos confundiam propositalmente o imaginário com o concreto, desmerecendo o primeiro em detrimento do segundo, para fazer cortinas de fumaça parecerem barreiras intransponíveis. 

A astúcia do dominador está, portanto, em apagar o imaginário como instância, desqualificando o que não lhe é útil como tal e fazendo, no mesmo movimento, com o que é necessário aos seus fins seja apresentado como concreto para, aí sim, ser validado. Eis o estatuto das superstições: imagens representadas como entes concretos, em relação as quais não é permitido imaginar nada a respeito, uma vez que são concretas e só o concreto é real (logo, verdadeiro). Tal formulação, aqui, vale desde a naturalidade com a qual os preços de imóveis, e suas flutuações, são enxergados pelos paulistanos até o temor prévio com o qual são representados os pobres - criminosos, um perigo em potencial.

A referência a moinhos, na comunidade em questão, nos remete ao que de mais potente há sobre a imaginação na Literatura Universal, só que bem além da coincidência: a saída passa por dentro daquela instância. Conhecer o que há de concreto antever as tendências reais - e desdobra-las a nosso favor. Para além dos entraves burocráticos, os becos sem-saídas à la Kafka que são apresentados a todo momento no caso da Favela do Moinho, existem saídas incrivelmente simples para a vida daquelas e de tantas outras pessoas que vivem nessa situação limite. Afinal de contas, o Direito é uma ficção, um conjunto de imagens, que só tem utilidade se for para realizar nossas possibilidades em meio ao tecido complexo da Pólis - em suma, direito achado na rua e na praça pública, posto em função da produção (de metrópole, inclusive) e não da parasitagem. Façamos, pois, com que aquelas pessoas vejam um luz no final do túnel, e que isso, dessa vez, não seja um trem ou uma chama.


quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Ode à Favela do Moinho

O Incêndio/ Agência Estado
Hoje cedo, o funcionamento dos trens metropolitanos que passam pelo centro de São Paulo foi prejudicado. Em época de festas de final de ano, num lugar como São Paulo, isso gera uma confusão no mínimo razoável. Por outro lado, moradores das imediações do centro - ou até de um pouco mais longe -, se depararam com uma enorme coluna de fumaça negra. Era a Favela do Moinho, varrida do mapa por um incêndio de causas ainda não determinadas. 


E não falamos de uma favela qualquer: ela era uma das poucas concentrações habitacionais de pobres dentro do núcleo urbano de São Paulo, uma cidade na qual o funcionamento do poder foi hábil em segregar essa população em uma longínqua periferia - ou mesmo, deixa-la difusa nas ruas. O Moinho, aliás, era um pólo histórico de resistência urbana, na qual os moradores lutavam contra uma particularmente incessante violência policial e o arbítrio de um (des)governo municipal, alinhado, de forma plena e cordial, com a especulação imobiliária - além de ser espaço de disputa relevantíssimo onde movimentos sociais e organizações humanitárias confrontavam essa lógica urbana absurda. Será que agora, seus desamparados moradores, conhecerão a "presença do Estado" em um sentido que não a violência policial constante? 


Em meio a esse pedante enredo de final de ano paulistano, a mesmice das milhões gastos com uma decoração natalina pífia que remente a invernos que desconhecemos, esse incêndio acende de vez um debate que está dormente: São Paulo morre lentamente, vítima de uma crise (bio)política cujos sintomas são uma poluição insuportável, a falta da mobilidade urbana, e de tragicomédia de sua administração atual, encabeçada por Gilberto Kassab - sendo que a Prefeitura, hoje, não passa de um leviatã manco ocupado por boçais, que fazem um desgoverno no sentido em que dizemos que um carro está desgovernado. 


O desafio posto, para além do aspecto eleitoral que se anuncia para o ano que vem, é enormíssimo. Não é o caso de vir aqui com a platitude de que precisamos de um bom governo: precisa-se na capital paulista da  produção de um anti-governo, pois é preciso desmontar o esquema de poder como ele está posto, desfazendo a forma Estado, ao passo em que se constrói organismos garantidores da autonomia das comunidades na organização dos espaços - para fazê-las funcionar, a partir daí, a despeito de qualquer gestão de Prefeitura, coisa que a gestão Erundina, ao menos, se dignou a sonhar. 


O grande entrave para isso, hoje, é o esquema sombrio e invisível da especulação imobiliária, que faz alugueis e valores de imóveis crescerem absurdamente na Pauliceia. Não é o caso de pensarmos em abstrações, mas sim na concretude da metrópole, seus modos de produção, reprodução e autoprodução. Isso requer uma luta e uma articulação profundamente complexas.







domingo, 18 de dezembro de 2011

Barça campeão, Santos e o Novo 74

Barça campeão - do site do clube
Hoje pela manhã, o Barcelona deu um vareio de bola no Santos, na decisão do Mundial Interclubes: 4x0 e poderia ser mais. Desde que o futebol foi transformado em indústria na era da globalização, tornou-se recorrente a exaltação dos grandes times europeus, o que, geralmente, consiste nas mais ilusórias peças de propaganda e desonestidade crítica. Nesse sentido, não há exemplo mais definitivo e radical do que o Real Madrid "galáctico", um time montado para render dinheiro com a imagem de seus craques e, por conta disso, ganhar títulos e jogar a sério tornava-se um mero detalhe. O Barcelona contemporâneo, no entanto, é uma exceção à essa regra. Há qualquer coisa no clube catalão que o faz escapar desse destino triste - e daqui consideramos que a luta por emancipação e afirmação da cultura catalã, que o constitui e por ele é constituída, tem muito a ver com isso. Some-se isso ao trabalho sério em divisões de base, produção de novas concepções táticas e  a administração democrática do clube nos últimos anos e temos um verdadeiro fenômeno. Ainda assim, isso não tira a responsabilidade da derrota santista: o alvinegro, na mais ampla derrota da história de um clube brasileiro no mundial interclubes, demonstrou a crise do nosso futebol. A derrota de hoje, da melhor equipe brasileira de fato (e de longe) na temporada 2011, é semelhante à da Copa de 74, quando o Brasil foi derrotado pela legendária Holanda daquela ocasião: nossa Escola, aqui como lá, foi atropelada. No entanto, a situação atual nos parece um tanto pior do que a daquela ocasião, a larga derrota de hoje foi reflexo dessa grave crise geral do nosso futebol, que vai mostrando sintomas aqui e acolá. 2014 bate à nossa porta e a construção dos estádios é o menor dos nossos problemas.




quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

A Privataria Tucana, a Má Consciência e a Coisa Nossa

Privataria Tucana. É o sugestivo nome do bestseller da literatura política do momento, de autoria de Amaury Ribeiro Jr., ex-jornalista do Estado de Minas. Há anos atrás, Amaury esteve enfiado na investigação do processo de privatizações no Brasil dos anos 90, acumulou desafetos, tomou um tiro, juntou documentos. Eis que em 2007, ele foi incumbido de investigar a vida de José Serra, desafeto e rival direto de Aécio no PSDB, tarefa que ele executou com afinco - já munido do material que tinha -, adentrando no que há de mais profundo do terreno pantanoso nos bastidores da política nacional recente - até que a intervenção de forças ocultas impediram a publicação da reportagem e levaram a uma campanha de descrédito contra a figura de Amaury na mídia. Eis que agora tudo aparece compilado e na forma de livro.

Seu livro, apesar do nome escandaloso e aparência de factóide, é uma bomba.  E o é justamente porque traz uma quantidade incrível de documentos, provando grande parte do que fala. Mesmo as conjecturas, sobretudo a respeito da campanha de Dilma Rousseff  - o racha petista, a guerra interna etc - e o enriquecimento misterioso de figuras ligadas às privatizações durante os anos FHC, são, para quem acompanha a política brasileira de perto, no mínimo plausíveis... Não, eu ainda não cheguei a ler todo o calhamaço de 344 páginas - cuja edição eletrônica já gira pela Rede, uma vez que a primeira edição já se esgotou -, mas olhei seus pontos estratégicos e assisti às entrevistas do autor. É espantoso. Sobretudo como as pontas soltas entre os esquemas de favorecimentos com as privatizações, as empresas fantasmas, a espionagem de inimigos políticos internos de José Serra e o escândalo do Banestado se unem.

É curioso notar a reação das personagens centrais do livro. Até agora, todos acusaram o golpe, se fingem de desentendidos, soltam muxoxos ou, no caso dos jornais alinhados ao PSDB, silenciam. Dentro da cúpula petista, idêntico silêncio ou explicações confusas sobre as acusações contra Rui Falcão, atual presidente da sigla. Importante citar que durante a campanha, o PT foi acusado de usar Amaury para quebrar o sigilo da filha de Serra, Verônica, o que nunca foi provado, mas o fato é que o jornalista transitou pela campanha dilmista, possivelmente levado pelo mineiro Fernando Pimentel.  Tanto que Amaury tem informações da guerra interna no partido e acusa Falcão de ter vazado informações para a mídia com o intuito de destruir Pimentel - o que lhe vale uma queixa-crime do atual presidente petista. À época, os petistas, sob acusação, apontavam que o dossiê sobre Verônica tinha a ver com Aécio e não com eles - o que por uma questão cronológica faz sentido, mas é possível que o dossiê, e futuro livro, passou sim pelo furado "bunker" de campanha de Dilma.

Não resta dúvida que um enredo novelístico como esse desperta a atenção das nossas vidas monótonas. O que realmente importa no livro, entretanto, é que ele é o fecho de uma série de reportagens, acusações, bolas rolando na área e afins sobre o processo de privatização dos anos FHC  -o que o torna um quase Wikileaks, uma prova do óbvio - além de, também, desvelar a grande pasmaceira que se tornou a política nacional: o que há de mais interessante em termos de confrontos, hoje, se dá em guerras intestinas dentro dos grandes partidos, PSDB e PT, ainda mais no primeiro, cujos confrontos entre Aécio Neves e José Serra já beiram o cômico - para quem ainda duvida da decadência do partido tucano, como cantamos a bola aqui há tempos. A julgar pelos rumos de PSOL e PV, aliás, nos parece que esse último item pode ser visto até como tendência geral.

No entanto, a Privataria Tucana alimenta mais as más consciências desocupadas do que suscita algum debate efetivo sobre os rumos da nossa política, portanto, nos apropriemos das informações valiosas que ele traz, mas, por favor, isso não é O debate. O primeiro ponto é que a corrupção não foi, de longe, o maior problema das privatizações, mas sim o processo em si, fosse limpo ou não, na medida em que marcou quase uma lápide no tardio e ainda infante welfare que a Constituição de 88 tentou implementar - o ônus das privatizações, com empréstimos sendo tomados no mercado externo, a altas taxas de juros, para capitalizar as futuras compradoras e a maneira como, uma vez findo o processo, não só o Estado brasileiro estava mais preso ainda à dívida infinita como a gestão dos serviços mais elementares estavam nas mãos do capital, ponto quase um termo final na democratização do país. O segundo ponto é que o tom novelístico, e a repercussão dada, foge a outro aspecto central: a necessária crítica à democracia representativa, essa mistura de salvacionismo messiânico, chantagem e comportamento de manada que, pelo visto, chegou ao limite de suas potencialidades positivas aqui e em qualquer parte.

Sim, José Serra é pior do que parecia - e olha que, à época, quando eu apenas o acusei de ser um pretende a Collor cheguei a ser criticado - e o PSDB está esgotado, completamente esgotado - direi por aqui pela centésima vez. Sim, podemos dizer que o PT é ainda o pior partido do país com exceção de todos os outros, muito mais pelo (grande) esforço dos seus concorrentes do que do seu - uma vez que bons nomes como Paulo Teixeira precisam conviver com os falcões e seus projetos pessoais. Seja como for, essa é apenas uma parte do debate, longe de ser, sequer, a maior dele. A corrupção não é uma entidade maléfica que está em fulano ou beltrano, tampouco paira por aí, mas é, se muito, uma consequência óbvia do funcionamento dessa forma de fazer política. Não estamos em busca de pecadores nem de salvadores, mas de saídas para um mundo em crise, esse sistema, tal como está, é insustentável e precisa ser confrontado de todas as formas possíveis.



segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

A França e François

Hollande, pelo gerenciamento da dívida, contra Sarkô e Merkel
Há pouco menos de dois meses, François Hollande venceu as prévias do Partido Socialista Francês. Isso o tornou, imediatamente, o favorito das próximas eleições presidenciais de seu país, a serem disputadas já no primeiro semestre de 2012. Isso é parte do efeito dança das cadeiras, que é sentido em toda Europa, uma vez que os governos do momento estão sendo responsabilizados pela crise, embora tal processo se deva mais às semelhanças entre os partidos do que às suas diferenças.

E o governo Sarkozy, além disso, ainda é um prato cheio para a oposição. Ele possui todos os defeitos do governo Chirac com pouquíssimas de suas virtudes - leia-se: política externa, coisa que os franceses prezam muito, mas que Sarkô afundou com seu alinhamento automático aos Estados Unidos e sua postura tosca, ao lado de Angela Merkel, no gerenciamento da crise europeia.

A vitória de Hollande nas presidenciais poderia mudar a tônica da política europeia, pela possível saída da passividade artificial em que se encontram os franceses na atualidade. Nada indica que os socialistas, apesar de sua agenda rebaixada, irão à reboque dos alemães: aliás, os interessa salvar o Euro e eles sabem que, para tanto, precisam criar mecanismos de gerenciamento da dívida. Um debtfare? 

Sarkozy não consegue vislumbrar isso, enquanto Merkel, em seus rompantes sub-thatcherianos, assume uma posição de austeridade sistemática como se soubesse o que está fazendo, mas não está: a primeira-ministra alemã fica entre a impossibilidade de largar mão do Euro e a paralisia de fugir dele (ambas as hipóteses exigem uma virtù que Merkel não tem). Embora o plano B de retomar o Marco Alemão acalme a líder germânica, os franceses não tem essa opção em relação ao seu finado Franco.

Um outro governo que não seja alinhando a Washington, como Sarkozy é, não interessa a Obama - e o atual mandatário francês é um pássaro raro em seu país, seja à direita ou à esquerda.  Inclusive porque a tradicional política externa francesa é capaz de dizer não aos americanos, o que, caso se refira à desvalorização do Dólar sobre o Euro, pode fazer toda a diferença na crise atual.

Hollande, portanto, pode mudar o jogo não por lhe trazer algo novo, mas sim por ser um típico político francês de centro-esquerda - contando com uma historicamente atípica maioria no Senado para a centro-esquerda. Isso pressionará Merkel a mudar seus planos.

Mas a futurologia acaba no momento em que o Euro pode morrer, mesmo que queiram salva-lo, antes do novo mandato presidencial francês. E um agravamento da conjuntura russa, com severos impactos para o equilíbrio estratégico no Leste Europeu, Ásia Central e Oriente Médio não está descartado, simultaneamente a tudo isso. 

domingo, 11 de dezembro de 2011

Sobre Wikileaks e Facebook


A imagem acima já circulou bastante pela Rede. Nela, estão Julian Assange, criador de Wikileaks - a organização transnacional sem fins lucrativos que se prestou a desmascarar as tramoias da diplomacia americana pelo mundo - dizendo "Eu dou informação privada sobre as corporações para você de graça, e eu sou vilão" e Mark Zuckerberg - cabeça da popularíssima rede social Facebook - dizendo "Eu dou sua informação privada para as corporações por dinheiro, e eu sou o homem do ano"

Recentemente, eu vi essa imagem no blog do Bruno Cava, usada por ele para demonstrar o que é "capitalismo cognitivo" - sim, uma imagem vale mais do que mil palavras, e esse chiste poupa algum tempo de explicação sobre as formas de exploração contemporâneas. Se o pós-fordismo é marcado pela virada do capitalismo ocidental em desenvolver sistemas de comunicação - e reproduzir nas suas redes, sua forma particular de exploração-, pensar sobre Wikileaks e Facebook, e seu papel nisso tudo, é fundamental.

A Internet, aliás, nunca esteve tão "social" quanto agora. As redes sociais engoliram a velha rede baseada na navegação livre e anônima, nos prendendo a uma territorialidade, que é o nosso próprio "perfil real", isto é, à nossa identidade fora da rede, o que traz junto, por tabela, chefes, contatos, amigos, colegas de trabalho e escola/faculdade, além dos parentes - é a partir desse perfil que as pessoas passam a navegar, compartilhando links e fotos (suas vidas..), de tal modo que a navegação torna-se ancorada e identificada por definição.

Sempre se levantou a possibilidade de que os Estados, de repente, quisessem passar a identificar sistematicamente os usuários da Internet. Um temor com a sociedade disciplinar um tanto equivocado, uma vez que medidas desse tipo, quando aparecem, só o fazem como farsa - e nem possuem tanta efetividade assim, a julgar pela China. A sociedade de controle possui outros meios para regular o agir dos sujeitos, certamente, mais açucarados e sutis do que qualquer AI-5 Digital, embora elas devam ser combatidos também.

As redes sociais, de forma simpática e utilitária, colocam fim a necessidade do sistema identificar os usuários da rede de forma policialesca. E o Facebook é o top do top nesse esquema. Cada vez mais pessoas aderem à rede social de Zuckerberg e, diferentemente do fenômeno Orkut, não são apenas os mais jovens que estão usando o serviço, mas sim gente de todo o tipo.

O modo de exploração de Facebook volta-se à vida pessoal de seus usuários, seus afetos mais banais - aquilo que elas curtem, o que elas fizeram, quem elas amam etc -, tudo transferido para as corporações que, a partir de um perfil de consumo ultrafiltrado, vendem suas bugigangas. De repente, todas essas trocas de afetos desapareceriam se o site fechasse ou resolvesse apagar o que quisesse. Não existe produção explorada em um sentido clássico, mas a própria autoprodução do vivente em sua mais elementar sociabilidade.

Como qualquer mecanismo contemporâneo de exploração, até pela sua natureza de dispositivo de tecnologia de informação e de comunicação - como este blog, caro leitor -,  é possível explorar sua natureza, escapar às suas finalidades e subverter-lhe com muito mais facilidade do que um bem de capital industrial. Talvez por isso, a disciplina, enquanto representação, não tenha desaparecido por completo - nem o Facebook se escuse de fornecer o nome de seus usuários "incômodos" para os governos.

Aí, entramos em Wikileaks, grande novidade de um ano atrás. O papel desempenhado por Assange vai em um sentido precisamente oposto, divulgando informações privadamente tratadas pelos Estados acerca da vida e dos destinos comuns. O financiamento? Meras doações para a sobrevivência da organização. O empoderamento gerado foi enormíssimo. 

Não, não foi por conta de Wikileaks que aconteceu a Revolução dos Jasmins - faísca da Primavera Árabe -, mas por meio dele - do mesmo modo que o homem passou a andar a mais de 5 km por hora, não dependendo mais de carroças, não por conta da locomotiva, mas por meio dela por conta da necessidade de se deslocar. Isso, a velha esquerda não compreende - ou não quer compreender, frustrada como está por conta do declínio do vanguardismo.

Combater as formas de exploração contemporâneas passa pela fuga dos mecanismos de identificação do sistema, mas também por sua sobrecarga, voltando suas lanternas insistentes contra as faces dos perseguidores paranoicos com espelhos, como fez Wikileaks - é preciso esvaziar e saturar a identificação ao mesmo tempo. Se Zuckerberg, derrotado no voto popular por Assange, foi eleito, ainda assim, homem do ano pela Time em 2011, certamente, 2012 é o ano do homem Assange com as corporações e os Estados postos em xeque - de Moscou até Washington.


Atualização de 13/12/12 às 21:39: E mestre Bruno continuou a tabelinha lá no QdL, no pertinente e preciso Gentrificaram a Internet.